Damião de Góis
Damião de Góis, Anónimo, Escola Flamenga
Figura maior do humanismo europeu, Damião de Góis distinguiu-se como cronista e músico. Foi agente comercial e diplomata ao serviço de D. João III de Portugal, servindo a Coroa portuguesa com elevado sentido de patriotismo. Mas acima de tudo, foi um exemplo de tolerância religiosa, regendo-se por ideais de concórdia. No seu epitáfio tumular, escrito pelo próprio em 1560, podemos ler:
“Deus Todo-Poderoso. Cavaleiro português outrora fui; em negócios peregrinei por toda a Europa; sofri vários trabalhos de Marte; as musas, os príncipes e os varões doutos amaram-me com razão. Agora em Alenquer, aonde nasci, estou sepultado nesta campa até que aquele temível dia acorde estas cinzas.”
Damião de Góis nasceu em Alenquer, em 1502. Era filho do nobre Rui Dias de Góis, valido do Duque de Aveiro e da sua quarta esposa Isabel Gomes de Limi, de descendência flamenga.
Erasmo de Roterdão, Hans Holbein, o Jovem, 1523
Em 1511, então com 9 anos de idade, Damião entra para o Paço da Ribeira como pajem do rei D. Manuel I. Nesta qualidade recebe uma educação aprimorada. Entre 1523 e 1532 é escrivão da Feitoria Portuguesa da Flandres, em Antuérpia. Viaja por toda a Europa, tendo oportunidade de contactar com os grandes humanistas do seu tempo, como Erasmo de Roterdão, de quem se torna amigo. Conhece personalidades como Lutero ou Melanchton.
Propomos agora um momento musical, com uma das peças mais famosas da música renascentista – Propiñan de Melyor. A interpretação, de excelente qualidade, é acompanhada de belos exemplos da pintura do Renascimento.
Propiñan
de Melyor, Anónimo, Cancioneiro da Colombina
Lisboa, Braun &
Hogenberg, 1572
Em 1533, Damião de Góis é chamado a Lisboa para ocupar o cargo de
tesoureiro da Casa da Índia; conseguindo escusar-se, parte em peregrinação para
Santiago de Compostela.
Durante a sua breve estadia em
Lisboa, conhece o embaixador etíope, o bispo Zaga-Zabo, a quem convidou a
redigir um tratado sobre os dogmas e práticas da cristandade na Etiópia.
Já em 1534 inscreve-se na
Universidade de Pádua, para completar os seus estudos humanísticos, publicando
entretanto várias obras em latim.
Estimulado por outros
humanistas, toma a iniciativa de traduzir para o latim o relato do religioso
africano Zaga-Zabo, que resulta na obra Fides,
religio Moresque Aethiopum, publicada em 1540.
Bet Giyorgis, igreja
de Lalibela
Os cristãos etíopes, muito embora rodeados por muçulmanos e isolados do
resto da cristandade, são perseverantes na sua fé. Ainda no século XIII esculpiram
na rocha vulcânica o santuário de Lalibela, como alternativa de peregrinação aos
cristãos impedidos de visitar Jerusalém, que tinha sido conquistada pelos
muçulmanos. Na prática cristã etíope convivem ritos cristãos com observâncias
judaicas, como a circuncisão, ou a guarda do Sábado. Neste quadro, Damião de
Góis defende que é essa coexistência de observâncias judaicas com a doutrina
cristã, a chave para conseguir a integração dos Judeus na Europa Ocidental, em
vez de os perseguir e queimar. Claro está que o Cardeal D. Henrique, que tutelava
a Inquisição, proibiu a circulação de Fides
em Portugal.
Damião de Góis em
desenho de Albrecht Dürer (detalhe)
Em 1539, Damião de Góis casa com a flamenga Joana van Hargen e frequenta
de novo a Universidade de Lovaina. Em 1542 participa na defesa da cidade, então
sitiada por Francisco I de França; oferecendo-se como mediador entre defensores
e sitiantes, acaba por ser feito prisioneiro. Resgatado dois anos depois por D.
João III, é-lhe concedido brasão e armas pelo imperador Carlos V.
Em 1545 regressa
definitivamente com a família a Portugal. Nomeado por D. João III para mestre
do príncipe D. João, Damião de Góis é indiciado pela Inquisição (ainda que sem
sucesso desta vez) e o rei desiste da nomeação.
Gravura contemporânea
sobre o massacre de Lisboa, de 1506, Anónimo, Torre do Tombo
Em 1548 é feito guarda-mor da Torre do Tombo, onde pôde encontrar
condições favoráveis para escrever a Crónica
do Príncipe Dom João e a Crónica do
Felicíssimo Rei Dom Manuel (Lisboa, 1566-1567). É nesta última que Damião
aborda a questão judaica sem rodeios. Referindo-se à passagem das famílias
judias de Castela para Portugal (1492), e à matança dos cristãos-novos em
Lisboa, em1506, não hesita em criticar os actos violentos cometidos. No primeiro
caso, condenou os mestres das embarcações, que ao invés de garantirem o
transporte de judeus para fora do reino, tiraram proveito da situação,
explorando, violentando as mulheres, e humilhando todos; no segundo, classificou
a acção da «turma de maos homens e dos frades» como «maldade com mor crueza»,
«feo e inhumano trato», elogiando o rei pelo castigo exemplar dos culpados.
O humanista Damião de Góis
acreditava que todos, independentemente da sua confissão religiosa, tinham
direito à sua dignidade; bateu-se, sobretudo, pelo ideal de que os cristãos
deviam reger a sua vida pelos valores evangélicos. Em 1571 foi preso pelo
Tribunal do Santo Ofício, sob a acusação de heresia, e condenado a prisão
perpétua. Veio a falecer na sua casa de Alenquer em 1574, ao que parece
assassinado.
Tentação de Santo Antão, Jerónimo Bosch (c.1500), MNAA
Sabe-se que Damião de Góis adquiriu algumas pinturas de Jerónimo Bosch,
estando duas referenciadas - as Tentações
de Job e as Tentações de Santo Antão.
De resto, Damião de Góis apresentou como um dos argumentos de defesa contra a
acusação de heresia que lhe foi movida pela Inquisição, o facto ter comprado e
oferecido pinturas de Bosch; isto pela aceitação e apreço de personalidades
insuspeitas, como o catolicíssimo Filipe de Espanha, que coleccionava obras
daquele pintor.
No romance “A Sala das
Perguntas”, dedicado a Damião de Góis, Fernando Campos leva-nos a uma viagem
pelo interior do mundo fantástico do Tríptico de Santo Antão, de Jerónimo
Bosch, que o escritor ilustra com versos de Gil Vicente. Para terminar este
artigo, escolhemos uma passagem, referente às cenas abaixo expostas, que
passamos a transcrever:
…dedilhando
cítara, um ser corcunda tapa as faces com a queixada de um chibo.
Encapuçado,
montado no corpo depenado de uma galinha a que já haviam cortado a cabeça, do
pescoço oco da montada, tombado por terra,
a
pele enforma-se em capuz de frade de onde espreita a cabeça de um peixe à beira
do charco.
Um
que foi amancebado/alcoviteiro provado,
e
um frade rafião…
Este artigo foi elaborado e oferecido por
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Beijinhos
Fontes:
Dicionário Enciclopédico da
História de Portugal,
Volume I, Edições Alfa;
Dicionário do Judaísmo
Português, Editorial
Presença;
BEAUMONT,
Maria Alice, As 50 Melhores Obras de Arte
em Museus Portugueses, Chaves Ferreira – Publicações, S. A.
CAMPOS,
Fernando, A Sala das Perguntas, DIFEL
Imagens:
Música:
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