domingo, 11 de fevereiro de 2018

“O Sacrifício de Isaac” II




“O Sacrifício de Isaac”
Akedat Yitzchak - Parte 2


William Blake, Abraão e Isaac (1799-1800), Yale Center for British Art, 
New Haven, Connecticut.


      Na piedade judaica a Akedah é o paradigma do martírio judaico; o povo judeu está pronto, em todos os tempos, a dar a vida pela santificação do divino nome (Kidush Ha-Shem). Os judeus, quando consideraram o motivo sacrificial para além dos limites do texto, fizeram-no como consolação à perseguição de que eram alvo, como defesa à insegurança, à catástrofe e à blasfémia. Em suma, fizeram-no para justificar o seu martírio.

     Contudo, de uma forma geral para os pensadores judeus a posição de Deus relativamente à Akedah está previamente definida: o sacrifício não realizado é reduzido a uma questão hipotética, um teste a que Abraão é submetido, não implicando Deus no acto ritual. Mas enquanto o Judaísmo lê a história como o drama de um homem religioso, o Cristianismo, além de o ler assim, implica Deus, o Próprio, no drama. Para os teólogos cristãos o sacrifício não realizado pressagia a Paixão, o sofrimento e a crucificação de Jesus, que define a natureza do Cristianismo.

     De acordo com Santo Agostinho, Isaac representa Jesus na sua disposição em se encaminhar para a morte, na forma como carrega a lenha para a pira, tal como Jesus carregou a cruz, e ainda na expectativa, atribuída a Abraão, da sua ressurreição. O cordeiro preso nos ramos de um arbusto simboliza a coroa de espinhos, adivinhando Jesus entregue ao suplício. 



Marc Chagall, Abraão e Isaac a caminho do lugar do sacrifício, 1931, 
Musée National Marc Chagall, Nice.


    Chagall, talvez o pintor judeu mais notável do século XX, é perturbador na forma sombria como trata a subida de Abraão e Isaac ao Monte Moriah. Ainda na escuridão da noite, Isaac carrega ao ombro um saco com a lenha para o seu sacrifício; ao seu lado Abraão segura uma faca na mão direita, e na esquerda uma vela que ilumina o caminho. A Akedah, tradicionalmente associada ao martírio judeu — o supremo acto de sacrifício e expressão de lealdade na Aliança com Deus —, é um tema recorrente na obra de Chagall.



Marc Chagall, O Sacrifício de Isaac, 1964-66, Musée National 
Marc Chagall, Nice.


       No seu quadro “O Sacrifício de Isaac”, em contraste com as cores sombrias da peça de 1931, Chagall emprega cores como o azul e o vermelho, com toques de dourado. Isaac é representado nu, com o corpo alongado, numa atitude passiva; Abraão, de faca em punho, é interrompido por um anjo; outro anjo (talvez o mesmo, segundos depois) aponta para o cordeiro enredado, não nos ramos de um arbusto, mas no tronco de uma árvore, evocando a verticalidade da madeira, tão central para a imaginação cristã; em cena de fundo há uma crucificação e figuras que choram o crucificado.

     Chagall usou a figura do crucificado pela primeira vez em 1908, sugestionado pela violência dos pogroms na sua Rússia natal. Mas é em 1938, depois da Kristallnacht, que surge a muito controversa “Crucificação Branca”.



Marc Chagall, Crucificação Branca, 1938, Art Institute of Chicago


     A obra representa Jesus, o Judeu, rodeado, à esquerda, de soldados comunistas que atormentam uma aldeia e, à direita, de nazis que incendeiam uma sinagoga. O Crucificado, coberto abaixo do ventre com um talit, ou xaile de oração, está içado no meio, vítima de ódios, à esquerda e à direita, de igual modo. Para Chagall, Jesus na cruz representa a situação de todos os judeus, humilhados, perseguidos, enfim, vilipendiados num mundo aparentemente esquecido de Deus.


Isaac ou Ismael?


Qesas-e Qor’ãn ou Qesas al-anbyiâ — “Histórias do Corão ou História dos profetas e dos reis do passado” (fol. 40), O Sacrifício de Abraão, c.1595, 
Qazvin, BNF, Paris


     Abraão (Ibrahim), «o amigo de Deus», ocupa um lugar importante no Corão. No Corão o episódio bíblico do Sacrifício do filho é mencionado, sem, no entanto, mencionar o nome de Isaac. Sujeito a longos debates entre os comentadores muçulmanos, a opinião dominante é que se trata de Ismael (o primogénito de Abraão e de Agar), a quem a tradição islâmica atribui a fundação do santuário de Caaba, em Meca, juntamente com seu pai.





     Esta pintura realizada na Corte *safávida de Qazvin pertence ao manuscrito da “História dos Profetas”, e é um exemplo do requinte e da riqueza das miniaturas devidas a vários artistas. A intensidade dramática da história é reforçada na expressão amargurada de Abraão que, contrariamente às convenções, encosta a faca ao seu ombro, como se quisesse virá-la para si mesmo; o olhar do filho é impassível, como que perdido algures, numa atitude de total obediência.


***
     Cada uma das três tradições — judaica, cristã e islâmica — faz uma leitura própria do Sacrifício de Isaac (ou Ismael para a maioria dos muçulmanos), desenvolvendo uma narrativa de acordo com a sua identidade particular. Mas há uma mensagem que é partilhada pelas três religiões: a fé de Abraão.


Lech Lechá (Vai por ti) — E o Eterno disse a Abrão: “Vai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. E farei de ti uma grande nação (…); e serão benditas em ti todas as famílias da terra.” (Génesis 12:1-3)


     Obedecendo a um comando de Deus, Abraão (ou Abrão, como então era chamado), com 75 anos de idade, parte para o desconhecido, deixando para trás as suas referências, a casa paterna e a sua terra natal. Ao não se comportar de uma determinada forma, porque era assim que as pessoas ao seu redor agiam, nem se conformar com os costumes do seu tempo, Abraão teve a audácia de ser diferente, de “estar de um lado, enquanto o resto do mundo estava do outro.” [1]

     Apesar das inseguranças, da velhice e de tantos outros obstáculos que pareciam tornar impossível a realização da promessa que Deus lhe fizera, Abraão seguiu corajosamente a sua jornada. A vida de Abraão foi longa e atribulada, mas sempre guiada pela voz de Deus. Talvez toda ela, e não apenas o episódio do Sacrifício de Isaac, seja um apelo para ouvirmos a voz de Deus, para O deixarmos entrar nas nossas vidas.



Este artigo foi uma oferta da,
Sónia Craveiro


Muito obrigada J


*Safávidas: dinastia muçulmana de obediência xiita que reinou no Irão de 1501 a 1786.
[1] Bereishit Rabbah 42:8

Fontes:

Bíblia Hebraica, Editora e Livraria Sêfer Ltda, São Paulo, Brasil, 2006
Livres de Parole, Torah, Bible, Coran, Bibliothèque Nationale de France, 2005

https://www.firstthings.com/article/2014/04/the-christ-of-marc-chagall
https://www.theway.org.uk/back/s097Mulrooney.pdf
http://shma.com/2011/09/the-binding-of-isaac-or-his-sacrifice-christian-and-jewish-perspectives/
http://rabbisacks.org/inner-directedness-lech-lecha-5778/

sábado, 10 de fevereiro de 2018

“O Sacrifício de Isaac” I




“O Sacrifício de Isaac”


Akedat Yitzchak - Parte 1



Marc Chagall, O Sacrifício de Isaac (detalhe), 1964-66, Musée National Marc Chagall, Nice.


«Chegou o tempo em que Deus quis experimentar Abraão. E disse-lhe: Abraão!» E respondeu: «Eis-me aqui!» E disse: «Toma o teu filho, teu único filho Isaac, a quem amas, e vai à terra de Moriah, e oferece-o ali como oferta de elevação, sobre um monte que Eu te vou indicar.» (Génesis 22:1-2)


         Isaac, filho de Sara e de Abraão, está no centro de uma das histórias mais intrigantes da Torah: “O Sacrifício de Isaac”. O episódio dramático em que Abraão quase sacrifica o filho — conhecido entre os judeus por Akedah, os cristãos por “Sacrifício de Isaac “, e os muçulmanos por Dhabih —, é um tema maior da Bíblia, comum às três fés abraâmicas.

     A narrativa do Livro de Génesis (22: 1-19) conta-nos como Abraão, obedecendo a um comando de Deus, estava disposto a oferecer o seu filho Isaac em sacrifício. Pai e filho viajam durante três dias até Moriah, o lugar do sacrifício, onde constroem um altar. Abraão amarra Isaac, coloca-o sobre uma pira de lenha e pega numa faca para o imolar. No último momento, surge um anjo que lhe roga para não fazer mal ao filho, e um cordeiro, que se encontrava ali perto preso pelos chifres num arbusto, substitui Isaac.



Miscelânea Hebraica, Akedah, folio 521b, 1277, Norte de França, 
British Library, Londres.


          Sabemos que no Mundo Antigo não era raro oferecer crianças em sacrifício aos deuses. Era uma prática pagã. Mas o Tanach vê o sacrifício humano como uma coisa hedionda. Muitos estudiosos da Bíblia interpretam esta história como um protesto contra o sacrifício humano, sendo o ponto nevrálgico o momento em que o anjo intervém para prevenir o assassínio, que Deus, ao contrário dos deuses pagãos, condena enquanto um acto obsceno, e nunca quis, realmente, perpetrar.



Bíblia Hebraica, Akedah (detalhe), 1739, Veneza. 
Gravura de Francesco Griselini. Colecção Braginsky



«O temor a Deus é o princípio da sabedoria e o conhecimento do Eterno é 
a porta do conhecimento» (Provérbios 9:10)


      Outra leitura da Akedah a partir da passagem «Chegou o tempo em que Deus quis experimentar Abraão» (Génesis 22:1), é mostrar que Deus estava a testar Abraão, pondo à prova o seu amor por Ele. Mas porque razão precisaria Deus de “testar” Abraão, quando é certo que Ele conhece o coração humano melhor que nós? De acordo com Maimónides (Guia dos Perplexos 3,24), Deus não precisava que Abraão provasse o seu amor por Ele. Antes, através do teste, Deus fez de Abraão um exemplo destinado a afirmar por todos os tempos até onde a humanidade se deve comprometer na sua devoção e amor por Ele. O “temor a Deus”, identificado em muitas passagens bíblicas como uma virtude religiosa vital, é, segundo Maimónides, um mandamento positivo que exprime o sentimento da pequenez humana face à contemplação das “grandes e maravilhosas acções e criações” de Deus.


Isaac – “Ele riu-se”

  No romance “O Último Cabalista de Lisboa”, de Richard Zimler, Abraão Zarco, um judeu clandestino de Lisboa, dá-nos uma interpretação do      Sacrifício de Isaac, construída a partir da palavra Isaac, que em hebraico quer dizer «ele riu-se» (uma alusão à grande alegria de Abraão por ser capaz de gerar um filho aos cem anos de idade (Gen.17:17).


  “O Último Cabalista de Lisboa”

     Em “O Último Cabalista de Lisboa” (1996), o primeiro de uma série de romances sobre as várias gerações de uma família de judeus portugueses — a família Zarco —, Zimler começa por nos revelar a descoberta, em 1990, numa cave de Istambul, de vários manuscritos do século XVI escritos por um cabalista português chamado Berequias Zarco.

      Berequias, entretanto, exilado em Constantinopla (como era então conhecida Istambul no mundo cristão), compôs no espaço de vinte e três anos, que vão de 5267 a 5290 do calendário hebraico, ou seja de 1507 a 1530 da era cristã, um conjunto de manuscritos redigidos na escrita hebraica angular judaico-portuguesa (um português antigo escrito no alfabeto hebraico).

     Zimler afirma que, embora “O Último Cabalista de Lisboa” seja uma obra de ficção e não uma reconstituição histórica, se manteve rigorosamente fiel à crónica de Berequias Zarco.



António de Holanda. Detalhe do Castelo de São Jorge e das muralhas da cidade no panorama geral de Lisboa. “Crónica de D. Afonso Henriques”, por Duarte Galvão. 1505. Museu-Biblioteca de Castro Guimarães, Cascais.    


     A acção de “O Último Cabalista de Lisboa" decorre em 1506, no reinado de D. Manuel I, entre os judeus forçados à conversão ao cristianismo. Em Abril desse ano, durante as celebrações da Páscoa, cerca de 2000 cristãos-novos foram assassinados num pogrom em Lisboa e muitos deles foram queimados no Rossio. A veracidade destes acontecimentos é corroborada por diversos relatos da matança que chegaram até nós, entre outros, documentos da Igreja e da Coroa portuguesa.

     A trama do romance gira à volta de uma família de cristãos-novos residente em Alfama, cujo patriarca, Abraão Zarco, é um iluminador e membro da célebre escola cabalística de Lisboa. Depois do pogrom, ele e uma rapariga são encontrados mortos na cave da residência da família Zarco, com a porta fechada por dentro. Este o mistério que será resolvido por Berequias Zarco, sobrinho de Abraão e seu discípulo no estudo da Cabala.


O Sacrifício de Isaac, segundo Abraão Zarco


Haggadah de Sarajevo, Akedah, c. 1350, Catalunha, Museu Nacional 
da Bósnia-Herzegovina, Sarajevo.


    No Capítulo VIII, pág. 128 e 129, de “O Último Cabalista de Lisboa”, Berequias Zarco narra como o seu irmão mais novo, Judas, ainda criança, se sente perturbado com o pedido de Deus (de sacrificar Isaac), que lhe parece injusto, pois acredita que Isaac é inocente. Seu tio, o cabalista Abraão Zarco, então explica-lhe: «— Muita gente pensa que esta história quer dizer que por vezes é necessário fazer sacrifícios por Deus — começou o meu mestre —. Um sacrifício tremendo, se preciso for. E até certo ponto têm razão. Abraão estava disposto a sacrificar o seu filho. E também há pessoas que acham que não estava certo que Deus exigisse tal coisa a um homem. E não estava certo que esse homem tivesse aceitado. Talvez tenham também razão. Até eu muitas vezes penso o mesmo. Mas é aqui que está o segredo… — Meu tio inclinou-se mais sobre a mesa, até o seu rosto ficar a tocar o de Judas. Os seus olhos cintilavam. Levando um dedo aos lábios, ciciou: — Não te esqueças de que Isaac quer dizer «ele riu-se». Isto é a prova segura de que a Torah fala por metáforas, por enigmas muito particulares. Isaac não é o filho de Abraão neste mundo. É uma espécie de filho do próprio interior de Abraão. É um filho nascido do riso e da mágoa de Abraão, da sua cólera e da sua ternura, dos seus medos e dos seus sonhos. Então o que é que Deus lhe pediu? Que renunciasse a isso. Que renunciasse às suas emoções e pensamentos mais íntimos, aos seus bens mais preciosos. Que desatasse os nós do seu espírito. E porquê? Para que dentro dele se pudesse abrir uma porta por onde Deus pudesse entrar.

     Meu querido Judas, esta história é um apelo para te abrires a Deus e nada mais. (…) O amor de Deus por ti é tão grande que não hesitou em contar uma história terrível e deixou que pensasses mal d’Ele. Tudo para que um dia O possas encontrar dentro de ti. Tudo o que Ele pretende é poder abraçar-te. Está bem?»



Mishneh Torah, Lisboa, 1472, fol. 11v, barra inferior com dragão (direita), pavão (centro) e leão (esquerda), British Library, Londres


    A noção de que a narrativa bíblica (e todas as situações da vida real) encerra, simultaneamente, diversas camadas de significado, está inscrita no pensamento judaico. Por outras palavras, no pensamento judaico a narrativa bíblica está deliberadamente escrita para ser entendida a diferentes níveis, conforme o nosso desenvolvimento moral e espiritual. Há uma primeira leitura de significado directo, ou óbvio, e depois há leituras mais profundas, que só compreendemos quando atingimos um certo grau de maturidade.


Este artigo foi uma oferta da,

Sónia Craveiro

 
Muito obrigada J



Fontes:
Bíblia Hebraica, Editora e Livraria Sêfer Ltda, São Paulo, Brasil, 2006
ZIMLER, Richard, O Último Cabalista de Lisboa, Quetzal Editores, Portugal, 1996
GREEN, Arthur, Estas são as Palavras, Um Vocabulário da Vida Espiritual Judaica, SOLOMON Editores, Brasil, 2014

http://www.jewishpress.com/judaism/torah/vayeira-the-binding-of-isaac/2014/11/06/0/
http://shma.com/2011/09/the-binding-of-isaac-or-his-sacrifice-christian-and-jewish-perspectives/
http://www.koltorah.org/ravj/Akeidat_Yitzchak_1.html
http://www.jewishvirtuallibrary.org/akedah
http://www.myjewishlearning.com/texts/Bible/Torah/Genesis/The_Binding_of_Isaac.shtml
http://portugal-mundo.blogspot.pt/2008/04/o-ciclo-sefardita-de-richard-zimler.html