A
coexistência entre a Comunidade Judaica e a Catedral de Viseu
Por Anísio Miguel
de Sousa Saraiva
Centro de História
da Sociedade e da Cultura - UC;
Centro de Estudos
de História Religiosa – UCP
anisio@sapo.pt
Viseu,
vista da cidade.
(…)A história da comuna judaica viseense
inicia-se, portanto, nos finais do século XIII e, tal como sucede com a
esmagadora maioria das localidades portuguesas, o seu estudo depende
exclusivamente das informações constantes nas fontes cristãs, uma vez que desta
comunidade não chegaram quaisquer testemunhos escritos a respeito da sua
constituição ou do seu funcionamento. A imagem que hoje podemos construir dos
judeus de Viseu é, assim, limitada ao resultado de uma leitura realizada de
fora para dentro, ou seja, a partir do exterior deste grupo e circunscrita aos
registos que a maioria cristã deixou nos seus centros de produção documental.
No caso particular de Viseu, a base para o estudo da comuna hebraica
encontra-se na chancelaria régia, mormente no que diz respeito à centúria de
Quatrocentos[20], e, sobretudo, no rico repositório informativo do cartório do
cabido da Sé viseense, de onde provém a esmagadora maioria das fontes para a
história da presença judaica na cidade, agora por nós elencada e que compreende
uma cronologia que se estende dos finais do século XIII até aos inícios do
século XVI[21]. É especialmente através dos documentos produzidos ou recolhidos
pelo cabido da catedral que se torna possível perscrutar as características e
as linhas de inserção da minoria hebraica, numa leitura que se entrecruza,
inevitavelmente, com a vida económica desta instituição eclesiástica, a mais
importante de Viseu e de toda a região da Beira. A Sé, na condição de detentora
de grande parte da propriedade urbana e peri-urbana da cidade, funcionou como
um dos principais interlocutores no relacionamento entre judeus e cristãos, e
exerceu uma forte influência nos mecanismos de organização sócio-espacial
daquela minoria, o que desde logo se pode compreender se tivermos em conta o
facto do cabido ser o proprietário de muitas das casas e dos bens habitados e
emprazados por judeus[22].
Sé de Viseu,
fachada © DGEMN
Cientes desta estreita ligação estabelecida
entre o cabido da catedral e a comuna, examinemos então com mais pormenor as
fontes e analisemos o que elas nos têm a dizer.
Situa-se em pleno reinado dionisino e a poucos
anos do final do século XIII, mais concretamente em 1284, a primeira referência
a um judeu habitante de Viseu,
Mais antiga
referência documental a um judeu habitante em Viseu, 1284 (Janeiro) © DGARQ /
ADVIS (Pergaminhos, m. 26, n. 16).
de nome Abraão e antigo proprietário de casas
no Soar[23], que em 1293 foi indiciado pela justiça do rei, acusado de cobrar
mais do dobro do montante de um empréstimo que concedera a um cristão da
cidade[24]. Abraão residia com sua mulher Donti Dona numas casas em Cimo de
Vila, na entrada sul do arrabalde de Viseu[25], junto das quais o casal possuía
uma outra habitação com sobrado, que optou por alienar a um cónego da Sé, em
Março de 1305[26].
Locais de fixação
dos primeiros judeus de Viseu, sécs. XIII-XIV © Anísio M. S. Saraiva (2009).
Como testemunha do contrato de compra e venda
deste imóvel aparece um outro judeu, chamado Bento, que, por certo, e
juntamente com a família de Abraão, terá convivido com Abricio, também membro
da comunidade judaica e morador, pelo ano de 1303, junto ao terreiro da ermida
de S. Domingos[27]. Mostram-nos estas referências, apesar de esparsas, alguns
dos nomes dos primeiros hebreus de Viseu que, na transição do século XIII para
o XIV, se fixaram no arrabalde da cidade, mais concretamente junto a Cimo de
Vila e a S. Domingos, habitando um espaço urbano também ocupado pela população
cristã e situado numa zona privilegiada de acesso ao eixo viário que fazia a
ligação a sul, em direcção a Coimbra[28]. Infelizmente, nada mais se conhece
desta primeira comunidade hebraica, tão pouco o documento régio que
eventualmente terá sancionado a sua formação[29]. Os registos documentais do
século XIV mostram-se parcos em informações sobre este grupo, revelando-nos
apenas sinais de aproximação à maioria religiosa, de que são exemplos o caso de
um judeu convertido ao cristianismo[30] e alguns indícios de agitação entre os
cristãos e esta minoria semita, ocorrida durante o reinado de D. Afonso IV.
Referimo-nos a queixas que os oficiais do concelho fizeram chegar ao monarca
reclamando da conduta do corregedor quando estanciava em Viseu, por
frequentemente tomar para si e para a aposentadoria dos seus homens roupas e
camas aos vizinhos cristãos, em vez de o fazer aos vizinhos judeus, como,
aliás, mandava o costume antigo da cidade[31].
Localização da
Judiaria de Viseu, segunda metade séc. XIV © Anísio M. S. Saraiva (2009).
Se estes primeiros dados apontam para a
presença judaica no arrabalde citadino, pelos inícios do reinado de D. Pedro I
(1357-1367) essa tendência de fixação mostra-se ter invertido, em favor da
centralidade imposta pela Praça, na confluência da qual se situava a Rua da
Triparia, que ligava aquele largo à não menos central e animada Rua das
Tendas[32], onde, pouco antes de 1359, se regista a morada de um judeu chamado
Jacob[33]. De facto, este dado leva-nos a suspeitar que, pelo começo da segunda
metade de Trezentos, o bairro dos judeus já tivesse abandonado o arrabalde
deslocando-se para este núcleo estratégico do centro urbano[34]. Prova disso
surge anos mais tarde, em 1379, ao registarmos a primeira referência documental
à sinagoga de Viseu, localizada nas imediações da Praça e da Triparia, mais
precisamente numa das quelhas que partiam da rua das Tendas[35], por certo não
muito afastada da Rua da Judiaria, documentada também pela primeira vez, em
1386[36]. Estas duas importantes referências permitem-nos, assim, inferir que
este novo pólo de reunião e da vida da comuna judaica já se encontrava
perfeitamente definido e organizado nesta zona privilegiada da cidade, entre os
últimos anos do reinado de D. Fernando (1367-1383) e o princípio da governação
de D. João I (1385-1433)[37]. O que, aliás, vem ao encontro das determinações
das cortes de Elvas realizadas por D. Pedro I em 1361, que impuseram às
comunidades semitas, entre um vasto conjunto de obrigações segregacionistas, o
dever de se organizarem em judiarias, constituindo assim uma identidade
espacial própria, definida em torno do seu centro ordenador formado pela
sinagoga[38]. Se a isto ainda levarmos em conta que a construção deste templo,
símbolo da vida espiritual e religiosa da comunidade, pressupunha a autorização
do rei[39], fácil será concluir que a deslocação da comuna de Viseu para esta
área da cidade e a consequente formação de uma nova judiaria terá sido um
processo intencional, que mereceu o devido consentimento por parte da Coroa.
Deste modo ter-se-á concretizado mais um
capítulo da história social e urbana de Viseu medieval que decorreu num período
muito particular, profundamente marcado pela crise demográfica e cerealífera,
agravado pelas sucessivas reincidências do trágico surto da Peste Negra, a que
se juntaram, durante o reinado fernandino, três guerras com Castela, além da
consequente crise dinástica portuguesa, dirimida durante a Crise de 1383-85, e
do prolongamento das hostilidades com o reino vizinho até aos inícios do século
XV. Foi sem dúvida um período de forte instabilidade e conflito, que se
reflectiu na destruição e no despovoamento de Viseu, tragicamente atingida
pelos saques e incêndios perpetrados pelas forças castelhanas em 1372, em 1385
e em 1396[40].
O restabelecimento da paz, nos alvores de
Quatrocentos, tornou possível que a cidade se lançasse à ambiciosa tarefa do
seu repovoamento e da sua reconstrução, carenciada de gente e de investimento
capaz de a reerguer e de restabelecer o seu dinamismo económico e social. E
aqui tudo leva a crer terem os judeus desempenhado um papel decisivo, pois
muitos terão sido aqueles que vieram habitar a urbe viseense, provavelmente
vindos de outras aldeias e vilas beirãs ou da vizinha Castela, escapando assim
ao movimento antijudaico que há décadas grassava neste reino[41]. Disso mesmo
nos dão conta os registos documentais quatrocentistas, que atestam um aumento
exponencial do número de judeus em Viseu, bem como o empenho do cabido da Sé em
reactivar a gestão da sua base patrimonial, através de uma firme política de
emprazamentos de casas e pardieiros, dispersos um pouco por toda a cidade,
procurando, em grande medida, reconstruir os seus imóveis e dinamizar a
empobrecida economia capitular e urbana. O bairro judaico de Viseu fazia parte
dessa rede imobiliária, razão por que encontramos, nestes primeiros anos do
século XV, o cabido a emprazar a judeus umas casas na rua que dava acesso à
sinagoga[42], ou a receber em doação um pardieiro na Judiaria, cuja localização
as fontes passam a situar, com mais pormenor, nas imediações da rua das
Tendas[43], a par da torre dos sinos da Sé[44] (no espaço que hoje corresponde
à Rua da Senhora da Boa Morte).
Rua da Judiaria
(actual Rua da Senhora da Boa Morte) © Anísio M. S. Saraiva (2009).
A proximidade espacial entre a catedral e a
judiaria e os vínculos de natureza económica estabelecidos entre cristãos e
judeus afiguram-se por demais evidentes. A Viseu de Quatrocentos ressurgia
assim como um espaço dinâmico e multi-étnico, ao mesmo tempo que se reerguia
das ruínas deixadas pela guerra e prosseguia a reorganização da sua malha
urbana em função dos interesses de quem detinha a propriedade. Um dos episódios
mais significativos deste processo reformador ocorreu logo entre 1415 e 1418,
com a deslocalização da judiaria para uma zona contígua, igualmente bem
situada, entre a Praça e a Rua das Tendas, mas mais afastada do perímetro da Sé
(e que hoje corresponde à Rua da Senhora da Piedade)[45]. A razão desta nova
mudança talvez a encontremos no crescimento da comunidade judia e na
necessidade desta se arruar num espaço de maiores dimensões. Ao que também
podemos acrescentar as relações de poder estabelecidas entre uma comuna mais
numerosa e influente e uma maioria cristã também interessada em com ela
coexistir, porque empenhada em ter o seu contributo na reconstrução da economia
da cidade.
Localização da
Judiaria Nova de Viseu, inícios séc. XV © Anísio M. S. Saraiva (2009).
Na verdade, se em 1415 os cónegos recebiam um
pardieiro na rua da Judiaria, identificada junto à Torre dos Sinos[46], três
anos depois, em 1418, o cabido emprazava a um clérigo uma casa nessa mesma rua,
mas desta vez com a indicação de aí ter sido o antigo espaço de morada dos
judeus[47]. Motivo pelo qual a partir desta data passou a ser identificado por
rua da Judiaria Velha[48], em oposição à nova que então se organizava e
edificava, em grande medida em terrenos de propriedade da Sé, e para onde se
transferiu a sinagoga, agora também aí referenciada[49]. Só assim se explica
que muitas das casas desse espaço, agora afecto à nova judiaria de Viseu,
fossem exploradas e alvo da atenção do cabido da Sé, naturalmente atraído pela
disponibilidade económica dos seus ocupantes e pela consequente perspectiva de
obter um bom rendimento nas rendas a cobrar[50]. Este interesse patrimonial dos
cónegos no novo bairro judaico, também conhecido noutras cidades episcopais,
como Braga, Lamego e Évora, não impediu que alguns hebreus mais abonados
tivessem acesso à propriedade, comprando e vendendo as suas casas de habitação,
como aconteceu com Isaac Franco ou com Samuel Navarro[51].
Rua da Judiaria
Nova (actual Rua da Senhora da Piedade) © Anísio M. S. Saraiva (2009).
No entanto, importa sublinhar que a mudança da
judiaria, da rua contígua à Torre dos Sinos para este novo espaço, terá sido um
processo gradual, caracterizado pela progressiva ocupação por cristãos das
casas até aí ocupadas por judeus[52], enquanto alguns destes ainda aí
permaneceram durante mais alguns anos. Lembremos os exemplos do ourives
Mordafay ou de Jacob Catarribas, que os documentos do cabido referenciam, entre
1428 e 1439, como moradores na Judiaria Velha, junto das escadas traseiras da
catedral e da Torre dos Sinos (depois chamada Torre do Relógio, por entretanto
ter recebido esse mecanismo)[53]. Mas não só aqui registamos a morada de
judeus; apesar de congregada num novo local a população hebraica espalhou-se
pontualmente por zonas cristãs da cidade[54], seja nas movimentadas e
comerciais Rua das Tendas[55] e Rua da Triparia[56], aliás próximas da
judiaria[57], seja nas mais afastadas Rua da Vela de S. Domingos[58] ou na Rua
das Quintãs[59], onde, inclusive, existiam casas de propriedade da comuna[60].
Localização de
habitações judaicas, séc. XV © Anísio M. S. Saraiva (2009).
Pelas informações disponíveis percebemos estar
perante uma comunidade judia numerosa e activa, dedicada a diferentes
actividades económicas que animavam a cidade, como se depreende da variedade de
ofícios mecânicos a que muitos dos seus membros se dedicavam, com particular
interesse nas actividades de ferreiro[61], gibiteiro[62], ourives[63],
sapateiro[64], tintureiro[65] e tecelão[66], em consentâneo com a não menos
importante ligação ao sector agrícola, principalmente na exploração de
vinhas[67], lagares e alguns olivais, também estes de propriedade da catedral e
situados na área peri-urbana da cidade, sobretudo em Jugueiros[68], mas também
na Arroteia[69], em Ranhados[70], na Mouta[71], em Sás[72], na Alagoa[73] e
junto do rio Pavia[74].
Rei D. Duarte ©
Anísio M. S. Saraiva (2006).
Neste entrecruzar de espaços habitados e no
bulício dos afazeres dos mesteres e dos trabalhos do campo, executados por
cristãos e judeus, encontramos a génese do pulsar da nova cidade em que se
tornou a Viseu de Quatrocentos. Porém, o quadro de coexistência pacífica que
terá caracterizado o relacionamento destes dois grupos, assente na tolerância
da maioria face à minoria, acabou por ganhar outros contornos ao longo do
século XV como consequência do aumento da pressão segregacionista imposta pela
política antijudaica da época[75]. Na verdade, se houve momentos em que a
comuna de Viseu obteve a protecção e o patrocínio da Coroa, como aquele em que
recebeu a confirmação dos seus privilégios, foros, liberdades e costumes,
outorgada pelo rei D. Duarte, em 1433[76], outros houve em que foi o alvo das
queixas da maioria cristã interessada agora em reforçar a secundarização da
minoria judaica no quadro sócio-económico da cidade. A reclamação mais forte
foi apresentada nas cortes realizadas em Évora, em 1444. Queria o concelho de
Viseu aproveitar o facto de a cidade começar finalmente a ser amuralhada para
solicitar ao rei a transferência da judiaria para um lugar mais afastado dentro
do perímetro do muro, de forma a evitar o grande inconveniente de ter o bairro
judaico em pleno centro urbano[77]. O infante regente D. Pedro concordou com o
pedido, mas só quando a cidade estivesse efectivamente toda murada, o que ainda
estava longe de ser uma realidade, razão por que a mudança da judiaria nunca se
chegou a efectivar[78].
Antiga Praça de
Viseu (actual Praça D. Duarte) © DGEMN
Anos mais tarde, em 1460, o concelho voltaria a
reclamar em cortes, de novo reunidas em Évora, pedindo para que as vendas
feitas por cristãos a judeus se realizassem primeiro na Praça da cidade e não
na Judiaria, porque, em contrário, alegavam que as mercadorias quando chegavam
ao mercado, depois de passarem pela rua dos judeus, já iam “çujas e dampnadas”[79].
Novos sinais de crispação e antagonismo foram dados oito anos depois, em 1468,
desta vez pelos procuradores de Viseu às cortes de Santarém. Queixavam-se agora
de haver judeus a habitar fora da Judiaria e do facto das casas deste bairro
terem portas e janelas que tanto davam serventia para a própria Judiaria como
para as casas de cristãos, resultando daí grande prejuízo e dano à cidade. Por
essa razão solicitaram ao monarca que ordenasse aos judeus o encerramento de
todas as portas e janelas que confrontassem com propriedade cristã, pedido a
que o rei D. Afonso V prontamente anuiu[80]. O bairro judaico de Viseu ganharia
assim a sua definitiva configuração, de espaço reservado, vedado aos olhares da
cidade cristã, ao mesmo tempo que não permitia aos judeus a livre vizinhança
com os demais elementos da maioria religiosa. À imagem do isolamento das casas
judaicas juntava-se a do encerramento da rua da Judiaria, atestado desde 1455,
através da colocação de portas em cada uma das suas extremidades, uma delas, aliás,
situada na esquina da Rua da Triparia, junto a uma travessa que dava passagem
para a Sé[81].
Rua da Judiaria
Nova (actual Rua da Senhora da Piedade) © Anísio M. S. Saraiva (2009).
Os tempos anunciavam assim o eminente virar de
página na já longa história de coexistência entre cristãos e judeus. O fim da
convivência étnica em Portugal precipitava-se em resultado da conjuntura
peninsular. O assalto sangrento à Judiaria Grande de Lisboa, ocorrido em
Dezembro de 1449[82], pré-anunciou os ecos anti-semitas que mais tarde chegaram
de Espanha, com a expulsão dos judeus da Andaluzia, a implantação da Inquisição
em Castela e a consequente expulsão dos judeus, em 1492, facto que provocou
sérias repercussões no equilíbrio sócio-político do nosso país[83]. Numerosos
contingentes de judeus procuraram abrigo no reino português e colocaram o rei
D. Manuel I perante a inevitabilidade de seguir a corrente antijudaica
espanhola, mormente quando confrontado com uma imposição político-matrimonial
que o levou a publicar, em 1496, o decreto da expulsão dos judeus que não
aceitassem a conversão[84]. Desde esse momento muitos foram aqueles que
abandonaram o reino e muitos foram os que se subjugaram à conversão ao
catolicismo.
Em Viseu cedo estas mudanças ganhariam rosto,
impondo transformações na topografia da cidade e nos elos de sociabilidade nela
estabelecidos, durante os dois séculos de história da presença semita. A partir
de 1498, a até então Rua da Judiaria abandona esse nome, passando a chamar-se
Rua Nova, tendo muitos dos seus antigos moradores sido expulsos ou alvo de
conversões forçadas[85]. A lembrar estes novos tempos da perseguição e da
diáspora judaica ficou-nos o elucidativo testemunho de um emprazamento
realizado pelo cabido da Sé, em Novembro de 1499. Nesse contrato os cónegos
emprazaram a Diogo Henriques umas casas na Rua Nova que antes fora Judiaria,
nas quais tinha vivido o seu pai, o judeu Josepe Rodriga, casas essas que
confrontavam com outras habitações em que agora vivia Fernão Lopes, que em
tempos se chamou Salomão Adida, e com casas de Henrique Lopes, que antes tivera
o nome de Mosé Adida (cf. Fig. 15)[86].
Emprazamento de
umas casas na Rua Nova «que foy Judaria», a Diogo Henriques, filho de judeus,
1499 (13 de Novembro) © DGARQ / ADVIS (Pergaminhos, m. 33, n. 26).
A alteração toponímica e onomástica bem patente
no teor deste contrato converte-se em memória viva da profunda transformação
por que passou a ocupação humana e territorial das nossas cidades, vilas e
aldeias nestes finais de Quatrocentos. Daqui em diante, o rumo da sua história
haveria de ser, irreversivelmente, outro.
Conclusão
Durante a Idade Média Viseu pontuou entre as
demais cidades episcopais portuguesas como um espaço urbano de média dimensão,
caracterizado pelo seu dinamismo económico e social, em muito potenciado pela
sua localização privilegiada e pelo seu estatuto de centro eclesiástico,
político e comercial. Ao carácter dinâmico, a cidade acrescentou o perfil
multi-étnico da sua população, composta por cristãos mas também por judeus, de
cuja presença em Viseu os primeiros testemunhos datam dos finais do século
XIII, tendo como ponto de fixação o arrabalde citadino, nas imediações do
principal eixo viário que ligava a cidade ao sul. Neste espaço a comunidade
judaica foi-se enraizando e estabelecendo vínculos de natureza económica com o
cabido da Sé, na qualidade de principal detentor da propriedade urbana da
cidade, convertendo-se este num importante interlocutor no relacionamento entre
a maioria cristã e a minoria judia durante todo o período medieval. A
localização da comuna judaica na topografia da cidade viria a sofrer uma
primeira e importante alteração nos inícios da segunda metade do século XIV, ao
deslocar-se do arrabalde para o centro da urbe, sempre junto das principais
vias de circulação mas agora mais perto do centro religioso, político e
comercial citadino, delimitado pela Praça, pela catedral e pela Rua das Tendas.
Iniciado o século XV e passadas as três décadas de guerras e destruições que
deixaram a cidade praticamente em ruínas, Viseu lançou mãos a um intenso
processo de reconstrução e de repovoamento do seu tecido urbano, no qual a
comuna judaica também participou de forma activa. Tanto assim foi que, no
seguimento deste movimento reconstrutivo impulsionado sobremaneira pelo cabido
da catedral, a judiaria mudou pela segunda vez de localização, desta feita para
uma rua maior, contígua à anterior e igualmente bem situada, entre a Praça e a
Rua das Tendas, apenas um pouco mais afastada do perímetro da Sé e com maior
possibilidade de expansão. Passou a ser neste espaço fechado em torno de si
próprio que viveu a grande maioria da comunidade judaica viseense durante a
centúria de Quatrocentos, até o decreto régio de 1496 sentenciar a sua
expulsão. Aqui, na Judiaria Nova, a comuna viseense atingiu a sua maior
expressão enquanto grupo minoritário inicialmente tolerado pela maioria cristã,
mas que ao longo do século XV viu ser transformado esse padrão de coexistência
e até de cooperação entre as duas comunidades num relacionamento declaradamente
segregacionista, o que de todo não impediu a comunidade judaica de participar
activamente na revitalização da economia e de cooperar com o cabido da Sé no
processo de reconstrução e de reanimação do tecido urbano de Viseu ao longo do
século XV.
Fonte:
Fontes
manuscritas:
Arquivo Distrital
de Viseu (ADVIS)
Pergaminhos, m. 00
(n. 4, 44, 58, 161, 185, 328, 337); m. 09 (n. 12, 14); m. 15 (n. 15, 46); m. 16
(n. 39); m. 18 (n. 09, 72, 76, 109); m. 19 (n. 19 verso, 79); m. 20 (n. 91); m.
21 (n. 74); m. 22 (n. 04, 20); m. 23 (n. 49, 67); m. 25 (n. 18b); m. 26 (n.
16); m. 28 (n. 55); m. 30 (n. 10); m. 32 (n. 22, 37); m. 33 (n. 07, 08, 26,
44); m. 34 (n. 06, 44); m. 35 (n. 17, 26, 27, 45b); m. 36 (n. 50); m. 37 (n.
04); m. 38 (n. 36a, 50); m. 39 (n. 06, 12, 15); m. 40 (n. 31); m. 41 (n. 11,
32); m. 42 (n. 03); m. 43 (n. 06, 24, 32, 33, 35, 46); m. 44 (n. 14, 18, 24,
31); m. 46 (n. 14, 35); m. 47 (n. 18, 19, 29, 35); m. 48 (n. 07, 36, 47, 48,
50); m. 49 (n. 11, 12, 15, 17, 63); m. 50 (n. 31, 81).
Arquivo Nacional
da Torre do Tombo (ANTT)
Leitura Nova,
Beira, Liv. 2.
Sé de Viseu,
Documentos Régios, m. 1 (n. 23).
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Chancelarias
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INIC-CEH/UNL, 1990.
Chancelarias
Portuguesas: D. Duarte. Vol. 1, Tomo 1. Org. João José Alves Dias. Lisboa:
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Chancelarias
Portuguesas: D. João I. Vol. 1, T. 1. Org. João José Alves Dias. Lisboa:
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Caro Sr. Saraiva!!
ResponderEliminarSaudações a partir do Brasil. Tenho buscado, sem muito sucesso, informações sobre famílias de judeus que viveram em Viseu pelos século XVI a XIX. O senhor saberia informar se existe uma lista de membros da Sinagoga de Viseu ou mesmo dos moradores da Rua da Judiaria?
Grato desde já,
André Menezes
Caro Sr. André Menezes, desde já grata por visitar o meu blog, mas como pode verificar nas fontes, este não é o original, pelo que para contactar o autor do mesmo, deverá tentar este link que está mais acima mencionado: http://ucp.academia.edu/An%C3%ADsioMigueldeSousaSARAIVA
ResponderEliminarEspero ter sido útil.
Ziva David