Uma obra de António José da Silva, o Judeu
Procissão de auto-da-fé, saindo dos Estaus e desfilando
pelo Rossio (J. A. Colmenar, 1707)
António José da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1705, numa família de cristãos-novos. Os pais, presos pela Inquisição, são obrigados a vir para Lisboa, onde chegam em Outubro de 1712 com os três filhos, Baltasar, André e António.
Na primeira metade do século XVIII, a Inquisição, que já se tinha apossado dos bens dos cristãos-novos na Metrópole, avança para o Brasil, onde o número de prisões aumenta exponencialmente.
Portugal, naquela época, era um país atrasado, onde a alta aristocracia, parasitária, se confundia com o alto clero. Num clima de intolerância, intriga e denúncia, a toda-poderosa Inquisição perseguia o menor sinal de desenvoltura intelectual, mas acima de tudo perseguia os cristãos-novos. António José da Silva, brilhante comediógrafo, e homem marcado pelo Tribunal do Santo Ofício, é acusado de relapso, acabando por ser garrotado e queimado num auto-da-fé, realizado em Lisboa, no dia 18 de Outubro de 1739.
Nesta homenagem singela ao poeta, escritor e dramaturgo, considerado o principal responsável pela renovação do teatro português no século XVIII, vamos falar um pouco daquela que é considerada a sua obra-prima – “Guerras do Alecrim e Manjerona”.
“Guerras do Alecrim e Manjerona” estreou no Teatro do Bairro Alto, no Carnaval de 1737. É uma ópera joco-séria, ou seja, uma comédia em prosa entremeada de canções, cuja autoria é atribuída a António Teixeira, um compositor celebradíssimo da época. As óperas de António José da Silva eram executadas por actores/cantores, que não apareciam em cena, mas antes acompanhavam marionetas (bonifrates), que eram a forma exterior de representar os espectáculos.
A linguagem da peça constrói-se em torno de uma “jocosa” crítica social a diversos aspectos da sociedade portuguesa da época, tais como a decadência moral dos fidalgos, os avarentos, uma medicina retórica e balofa, ou uma justiça inoperante.
Sinopse da peça
Os jovens D. Fuas e D. Gilvaz, pretendentes de D. Nise e D. Clóris, sobrinhas do avarento D. Lancerote, reconhecem as meninas, que andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma, um ramo de alecrim, outra, um ramo de manjerona.
Os galantes conseguem conquistar os favores das damas, mas sobre o romance paira esta ameaça: D. Lancerote já tem intenções de casar uma das raparigas com D. Tibúrcio, seu sobrinho, pedindo-lhe que escolha uma das duas para sua esposa.
Ajudadas pelo gracioso Semicúpio, um criado cheio de genica, as meninas conseguem encontrar os seus amantes e acabarão por casar-se com eles. Semicúpio casará com a criada Sevadilha, e tudo terminará em felicidade.
Excerto da peça “Guerras do Alecrim e Manjerona”
Bonifrates – D. Tibúrcio e D. Lancerote
A acção passa-se entre D. Tibúrcio, Semicúpio e D. Lancerote. Nesta cena, António José tem como objectivo pôr a claro os médicos intrujões, que pouco sabiam de medicina e muito de retórica.
Eis que chegam D. Tibúrcio, a queixar-se de cólicas, e o criado Semicúpio, disfarçado de médico:
D. Tibúrcio
«Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Senhor Doutor!»
Semicúpio
«Agora vou a isso. Ora diga-me: que lhe dói?»
D. Tibúrcio
«Tenho na barriga umas dores mui finas.»
Semicúpio
«Logo as engrossaremos. E tem o ventre túmido, inchado e pululante?»
D. Tibúrcio
«Alguma cousa.»
Semicúpio
«Vossa mercê é casada ou solteira?»
D. Tibúrcio
«Porquê, Senhor Doutor?»
Semicúpio
«Porque os sinais são de prenhe.»
D. Lancerote
«Não, Senhor, que meu sobrinho é macho.»
Semicúpio
«Dianteiro ou traseiro?»
D. Lancerote
«Ui, Senhor Doutor! Digo que o meu sobrinho é varão.»
Semicúpio
«De aço ou de ferro?»
D. Lancerote
«É homem! Não me entende?»
Semicúpio
«Ora acabe com isso. Eis aqui como por falta de informação morrem os doentes; pois, se eu não especulara isso com miudeza, entendendo que era macho, lhe aplicava um cravo; e, se fosse varão, umas limas; e, como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe há-de fazer.»
D. Lancerote
«Eis aqui como gosto de ver os médicos: assim especulativos.»
(…)
A Dança, Painel de Azulejo do século XVIII, Portugal
Terminamos com um excerto muito bem-humorado de uma Ária em dueto, gravada em Outubro de 2006, no Festival de Música Barroca de Pontoise, em França. São protagonistas, D. Lancerote e a criada Sevadilha, que num apelo desesperado à justiça, discutem acerca de um capote.
Guerras
do Alecrim e da Manjerona (1737) - Ária a Duo - Les Caractères
Direção:
Xavier Julien-Laferrière
Solistas:
Miriam Ruggeri & Rémi-Charles Caufman
Este, foi mais um artigo elaborado pela nossa amiga
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada
Beijinhos
Fontes:
http://purl.pt/922/1/
- António José da Silva, Cronologia,
Biblioteca Nacional
SANTARENO, Bernardo, O Judeu, (excerto do 3º acto), Edições Ática
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