Judeus
portugueses em Ferrara em meados do Sec. XVI.
Em 1600, o judaísmo italiano tinha-se reduzido
a pouco menos de 21.000 pessoas. Para acompanhar a política anti-judaica da
península ibérica, os governantes das cinco maiores cidades italianas: Nápoles,
Milão, Palermo, Génova e Bolonha escolheram a estratégia da expulsão dos judeus;
enquanto os governantes de Veneza, Roma e Florença, preferiram a segregação nos
guetos.
Os judeus remanescentes confluíam para as
terras de refúgio, lugares especiais inseridos entre os maiores componentes do
sistema geopolítico italiano. Estes territórios ofereciam uma solução para a
instalação da população judaica italiana, garantindo sua continuidade no país,
e pelos judeus expulsos de seus países de origem, como os espanhóis em 1492, os
portugueses em 1498, e os alemães em 1530, que se refugiaram neles. Foi criada
então, nos Estados Estenses, uma comunidade judaica forte e organizada.
A saída da Espanha e de Portugal sem dúvida
constituiu, para os judeus ibéricos, uma penosa etapa, que nem todos cumpriram
da mesma forma. Os caminhos trilhados pelos "Senhores do Desterro de
Portugal", das margens do rio Tejo às margens do rio Pó, foram muitos e
variados, mas nem sempre fáceis de acompanhar. De qualquer forma, estes judeus
seguiam uma direção constante: o Império Otomano, com os portos seguros de Salónica,
Constantinopla, Adrianópolis, Sarajevo, Valona e Belgrado e, em um segundo
momento, Esmirna e Alexandria. A Itália serviu então, em muitos casos, como uma
ponte entre a Península Ibérica e o Oriente.
O duque Ercole I D'Este, em 1492, havia convidado
para Ferrara os judeus exilados da Espanha, prometendo que poderiam ter seus
líderes espirituais e juízes, praticar o comércio e a medicina e lhes
concedendo redução dos impostos. O grupo de judeus que aderiu à sua chamada
formou uma pequena comunidade que fez reviver as antigas tradições culturais e
religiosas do judaísmo sefardi e que se atribuiu o nome de Nação Portuguesa. Estes judeus mantiveram um bom relacionamento
com os outros núcleos da Nação Portuguesa instalados nos grandes centros
comerciais da Europa Ocidental, no Norte da África e no Império Turco ou que
tinham permanecido na Península Ibérica. Mais difícil foi seu relacionamento
com os judeus italianos residentes no lugar, devido aos privilégios que lhes
eram oferecidos, como a isenção de impostos e a possibilidade de residir fora
dos guetos. Estas hostilidades derivavam também do fato de que entre os
refugiados sefarditas existia um discreto número de cristãos novos -
provavelmente mercadores - que utilizavam a própria identidade judaica instrumentalmente,
apresentando-se como judeus quando a ocasião era propícia, mas assumindo uma
identidade cristã na maioria das vezes. Desculpavam este fato declarando que a
dissimulação era de vital importância para sua sobrevivência.
Os cristãos novos portugueses tinham em toda a
Europa uma inconfundível e inequívoca identificação no âmbito profissional, a
dos grandes mercadores internacionais, e se não faltaram os médicos, os homens
da lei, os agricultores, os que constituíram diferentes corporações - com os da
lã, seda e diamantes - e até os empregados mais humildes, todos eles faziam
parte do quadro comercial dominante.
Este fato explica como os exilados tiveram,
como um dos seus primeiros pontos de chegada, a Antuérpia, uma grande cidade
portuária à sombra da Coroa Espanhola, com livre acesso ao comércio em todo o
mundo. Mas nos anos 30 do século 16, apesar da proteção política dada pelo
governo aos mercadores que nela operavam, o governo espanhol não transigiu no
plano da ortodoxia católica e a Inquisição tornou-se tão cuidadosa e rigorosa
como em Portugal.
A origem dos estabelecimentos judaicos nos
Estados Estenses está estreitamente ligada aos bancos de empréstimos sob penhor
com juros baixos, ou, como se dizia naquele tempo, com "módica
usura". Era difícil que a condução de um banco fosse entregue a uma única
pessoa, mesmo nas cidades menores; mais frequentemente, a gestão era assumida
por dois ou mais sócios, chamados "prestadores principais". O
banqueiro principal tinha o direito de escolher até seis sócios, podendo
revogar suas nomeações e substituí-los por outros. Os mais importantes clientes
dos bancos judaicos eram constituídos por três entidades: o senhor, o município
e a Igreja.
Os prestadores eram acompanhados por suas
famílias, funcionários e domésticos. Muitas vezes estava presente também um
professor particular com cultura rabínica que, além de exercer as funções
religiosas da comunidade, era também tutor dos filhos, sobrinhos e netos dos
banqueiros. Às vezes fazia parte do grupo um maestro de música e dança.
Apesar da profissão dos chefes da nação
portuguesa ser declaradamente mercantil, muitos dos mercadores eram eruditos.
Tratava-se de intelectuais, médicos, juízes e escritores que, além das relações
de negócios e dos capitais de suas empresas, levaram consigo a Ferrara um vasto
e diferenciado património de conhecimentos. No clima de fervor cultural e de
fidelidade à religião de seus ancestrais, se insere a edição de Ferrara da Bíblia en Lengua Española.
No fim do verão de 1549, a peste
explodiu no Grão-ducado Estense com graves consequências para os judeus
portugueses, que foram expulsos.
Os portugueses foram levados, de noite, até o
porto, provavelmente no rio Pó, e daí até o mar Adriático, onde antes de serem
embarcados foram roubados de seus pertences. Outros portos italianos não os
deixaram desembarcar, apesar de ninguém mostrar sintomas da peste. Alguns
deles, depois de atacados e pilhados pelos corsários, dirigiram-se para a
Turquia.
Nada menos que 320 judeus foram expulsos. Os
que permaneceram em Ferrara foram mercadores e industriais amparados por seus
privilégios. Apesar disso a comunidade portuguesa reconstituiu-se depois de
alguns meses. Dois códigos de particular importância regulavam a vida dos
judeus sefarditas nos Estados Estenses: o Livro de Corame Vermelho (promulgado por Francisco I, que
reunia todos os privilégios concedidos até aquele momento pelos vários
príncipes italianos e pelo próprio Duque de Modena) e o Livro das Deliberações da Nação
Judaica de Reggio Emília, que
constituiu, na prática, o diário oficial daquela Comunidade no período entre
1652 e 1672.
A lista dos refugiados judeus em Ferrara é
muito longa e inclui alguns entre os nomes mais conhecidos da diáspora judaica
sefardita, como o de Dona Grácia Nasi.
Merece particular relevo a família de Don Isaac
Abrabanel (1437-1508), que, saindo da Espanha após a expulsão, estabeleceu-se
no reino de Nápoles, acolhida pelo rei Ferrante.
Quando os judeus foram expulsos do Reino,
Isaac, depois de vários acontecimentos e migrações, refugiou-se em Veneza, onde
viveu até sua morte. Seus três filhos, Judah, filósofo conhecido como Leão
Hebreu; José, médico, e Samuel, importante banqueiro, representante da
comunidade judaica de Nápoles, que havia casado com sua prima Benvenida,
transferiram-se para Ferrara. Abraham Usque, estudioso e editor, imprimiu em
Ferrara, além de trinta livros em hebraico, a Biblia
en Lengua Española.
No campo dos estudos judaicos, podemos
mencionar os poetas Jacob Fano e Abraham Dei Galicchi Jagel; os médicos Amatus
Lusitanos, Moses e Azriel Alatino; o cronista Samuel Usque. Destes conversos
que voltaram ao judaísmo nas terras de refúgio italianas, hoje são conservados
muitos e variados testemunhos, em geral restaurados: antigos guetos, sinagogas,
cemitérios e museus (como em Bologna, Ferrara e Sorana). Além disso, há também
uma grande quantidade de objetos rituais e manuscritos.
Existem ainda escritos e documentos que
testemunham as falas com as quais os judeus sefarditas se comunicavam entre si,
misturando termos hebraicos, o espanhol e o português, com os dialetos
italianos da região. Estas falas, que hoje estão sendo recuperadas, tinham até
nomes particulares como o dialeto
ghettaiolo (dialeto do
gueto) de Ferrara.
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