terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A Inveja segundo José Gil


O Medo de Existir
 
 


O ressentimento e o ódio alimentavam o queixume, num discurso recorrente até à exaustão: «este país é uma merda», «está entregue aos bichos», etc. E, de cada vez, o sujeito da enunciação excluía-se do conjunto nomeado, como se não lhe pertencesse. Era uma maneira (um gesto linguístico mágico) de se separar, de se diferenciar de todo aquele mal detestado em que se encontrava mergulhado. Por outro lado, nomeava-se assim o inominável: o mal, a doença metastásica que atacara o país.




É neste contexto de forque se deve situar a inveja.
 
 
Forças poderosas de ressentimento resultantes do esmagamento das forças de vida e da sua transformação em forças de morte. Com uma semi-reviravolta: não se voltaram inteiramente contra si mesmo, encolheram-se, comprimiram, adaptaram-se à escala da humilhação – e puseram-se a circular enclausuradas, sob as formas várias do ressentimento, da abjeção, da inveja.

Formou-se deste modo uma sociedade paradoxal, em que um dos aspetos importantes dos laços de sociabilidade consistia em recusar esse mesmo aspeto da relação política. Em guerra espiritual e verbal contra o país, os indivíduos juntavam-se como cidadãos para conspurcar o país. E assim mantinham a comunidade nacional cada vez mais coesa. Tubo de escape perverso que dava a volta para se conectar de novo com o motor, alimentando-o com os seus gases venenosos. (Complementar, inverso e simétrico deste, um outro fenómeno se desenvolveu ao mesmo tempo, nas camadas cultas da população: a crença na genialidade pessoal, com as mais diversas expressões megalómanas. O número de artistas, escritores, pintores, estudantes, intelectuais que se julgavam génios durante o salazarismo era incontável. Fenómeno de compensação imaginária, habitual em todas aa ditaduras, ao que parece: nos países de Leste, recentemente libertados, os génios imaginários pululam, como ainda hoje em Portugal.)

Situar a inveja neste contexto significa considerá-la dentro de um meio em que todas essas forças (de ressabiamento, de queixume, de ódio) se contaminaram umas às outras. É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior. Na «democracia afetiva» do salazarismo, o nivelamento fazia-se sempre por baixo: o sentimentalismo definia o ser humano reduzido, pequeno, infantilizado. Compreende-se assim que o 25 de Abril tenha aberto uma panela de pressão de invejas e ressentimentos subitamente prontos a cultivar-se e aplicar-se sem entraves. O salto brusco do estatuto social, sem passar pelas etapas intermédias habituais, que as revoluções ou mudanças profundas de regime político permitem, ia lançar toda uma série de gente na corrida aos postos superiores, aos «tachos», aos privilégios de toda a ordem; e atrás dela, como flechas certeiras, seguiam milhares de invejas.
Mais precisamente, a generalidade da ação da inveja em Portugal é tão vasta que, tal como o medo, constitui um sistema. Não se trata, pois, de uma relação a dois (que pode também ocorrer e ser decisiva), mas de uma relação coletiva implicando, de cada vez, um número variável de indivíduos pu de grupos. Os efeitos do sistema das invejas não são visíveis: ora paralisante, ora desacelarador de uma dinâmica, ora descarrilador, provocando acidentes em catadupa, adiamentos sucessivos, etc.
 
 
 
Como é que a inveja pode ganhar uma força tão grande que chega a entravar o trabalho de um grupo?
 
 
 
Note-se, antes de mais, que a inveja implica uma relação de forças. Joga-se, na inveja, uma luta pelo poder de que sairá um dominante e um dominado. Por isso a inveja entra na categoria das «relações de influência».

Uma condição prévia deve existir para que a inveja seja eficaz: que a futura vítima se encontre em estado de recetividade inconsciente, quer dizer, de vulnerabilidade particular (o que a terminologia da feitiçaria portuguesa designa por «ter o corpo aberto»). Como se diz comummente, o indivíduo «não sabe o que quer», ou «não tem uma personalidade firme». Ou ainda: o seu poder sobre si é frágil, pouco definido; o seu poder de afirmação não se manifesta: a sua vontade de poder é débil, etc. Resumindo, é alguém facilmente influenciável.
(o autor discorre sobre condições propícias ao desenvolvimento da inveja. Aqui vou apenas apontar uma situação que se prende com a inveja no grupo).
Primeira condição, o fechamento do grupo. Voltado para si próprio, sem «fora», o seu ar estagna e a sua atmosfera homogeneiza os comportamentos latentes, prontos para o ressentimento e a agressividade. A diversidade, o imprevisto e o acaso desaparecem. O grupo ganha uma atmosfera específica (com as características próprias de densidade, viscosidade, velocidade de partículas, vetores de fluxos) que permite denominá-lo grupo de invejas. Existindo na atmosfera, agora a inveja subsiste por si, ataca por si. Como um vírus.

Como sair deste sistema? Como fazer para começar a fazer? A uma questão semelhante que lhe punha um bailarino (que queria saber como realizar tal gesto aparentemente impossível), o coreógrafo americano Merce Cunningham respondeu apenas: «Fazendo».



Não há outra resposta. Há sim, também, a construção das melhores condições para que o fazer se faça, para que nasça o desejo irreprimível de fazer, deixando de falar inutilmente da necessidade de ação. Cabe aos que nos governam essa tarefa – já que eles têm por imperativo decidir -, desde obrigar ao cumprimento da lei à criação de tudo o que possa contribuir para que, na comunidade, um encontro seja uma ocasião de alegria.

In Portugal Hoje: O Medo de Existir

Artigo enviado pela minha querida amiga Sónia Craveiro




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