O Medo de Existir
O ressentimento e o ódio alimentavam o queixume, num discurso recorrente até à exaustão: «este país é uma merda», «está entregue aos bichos», etc. E, de cada vez, o sujeito da enunciação excluía-se do conjunto nomeado, como se não lhe pertencesse. Era uma maneira (um gesto linguístico mágico) de se separar, de se diferenciar de todo aquele mal detestado em que se encontrava mergulhado. Por outro lado, nomeava-se assim o inominável: o mal, a doença metastásica que atacara o país.
É neste contexto de forque
se deve situar a inveja.
Forças
poderosas de ressentimento resultantes do esmagamento das forças de vida e da
sua transformação em forças de morte. Com uma semi-reviravolta: não se voltaram
inteiramente contra si mesmo, encolheram-se, comprimiram, adaptaram-se à escala
da humilhação – e puseram-se a circular enclausuradas, sob as formas várias do
ressentimento, da abjeção, da inveja.
Situar a inveja neste contexto
significa considerá-la dentro de um meio em que todas essas forças (de ressabiamento,
de queixume, de ódio) se contaminaram umas às outras. É dentro de um banho de
ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se
achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior. Na
«democracia afetiva» do salazarismo, o nivelamento fazia-se sempre por baixo: o
sentimentalismo definia o ser humano reduzido, pequeno, infantilizado.
Compreende-se assim que o 25 de Abril tenha aberto uma panela de pressão de
invejas e ressentimentos subitamente prontos a cultivar-se e aplicar-se sem
entraves. O salto brusco do estatuto social, sem passar pelas etapas
intermédias habituais, que as revoluções ou mudanças profundas de regime
político permitem, ia lançar toda uma série de gente na corrida aos postos
superiores, aos «tachos», aos privilégios de toda a ordem; e atrás dela, como
flechas certeiras, seguiam milhares de invejas.
Mais
precisamente, a generalidade da ação da inveja em Portugal é tão vasta que, tal
como o medo, constitui um sistema. Não se trata, pois, de uma relação a dois
(que pode também ocorrer e ser decisiva), mas de uma relação coletiva
implicando, de cada vez, um número variável de indivíduos pu de grupos. Os
efeitos do sistema das invejas não são visíveis: ora paralisante, ora
desacelarador de uma dinâmica, ora descarrilador, provocando acidentes em
catadupa, adiamentos sucessivos, etc.
Como é que a inveja pode ganhar
uma força tão grande que chega a entravar o trabalho de um grupo?
Note-se, antes de mais, que a
inveja implica uma relação de forças. Joga-se, na inveja, uma luta pelo poder
de que sairá um dominante e um dominado. Por isso a inveja entra na categoria
das «relações de influência».
Uma condição prévia deve existir
para que a inveja seja eficaz: que a futura vítima se encontre em estado de
recetividade inconsciente, quer dizer, de vulnerabilidade particular (o que a
terminologia da feitiçaria portuguesa designa por «ter o corpo aberto»). Como
se diz comummente, o indivíduo «não sabe o que quer», ou «não tem uma
personalidade firme». Ou ainda: o seu poder sobre si é frágil, pouco definido;
o seu poder de afirmação não se manifesta: a sua vontade de poder é débil, etc.
Resumindo, é alguém facilmente influenciável.
(o autor discorre sobre
condições propícias ao desenvolvimento da inveja. Aqui vou apenas apontar uma
situação que se prende com a inveja no grupo).
Primeira condição, o fechamento
do grupo. Voltado para si próprio, sem «fora», o seu ar estagna e a sua
atmosfera homogeneiza os comportamentos latentes, prontos para o ressentimento
e a agressividade. A diversidade, o imprevisto e o acaso desaparecem. O grupo
ganha uma atmosfera específica (com as características próprias de densidade,
viscosidade, velocidade de partículas, vetores de fluxos) que permite
denominá-lo grupo de invejas. Existindo na atmosfera, agora a inveja
subsiste por si, ataca por si. Como um vírus.
Como sair deste sistema? Como fazer para começar a fazer? A uma questão semelhante que lhe punha um bailarino (que queria saber como realizar tal gesto aparentemente impossível), o coreógrafo americano Merce Cunningham respondeu apenas: «Fazendo».
Não há outra resposta. Há sim, também, a construção das melhores condições para que o fazer se faça, para que nasça o desejo irreprimível de fazer, deixando de falar inutilmente da necessidade de ação. Cabe aos que nos governam essa tarefa – já que eles têm por imperativo decidir -, desde obrigar ao cumprimento da lei à criação de tudo o que possa contribuir para que, na comunidade, um encontro seja uma ocasião de alegria.
In Portugal Hoje: O Medo de Existir
Artigo enviado pela minha querida amiga Sónia Craveiro
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