De volta
a Sefarad
Meio milénio depois da expulsão,
descobertas em terras espanholas remontam o longo passado dos judeus na
Península Ibérica. Que eles tratavam por Sefarad.
No norte da África, ainda há judeus guardando a
antiquíssima chave da casa da cidade espanhola onde seus antepassados viveram.
Trata-se de uma façanha de preservação, passada sucessivamente de pai para
filho. Afinal, vale lembrar que os judeus foram expulsos da Espanha em 1492 - o
mesmo ano da descoberta da América. Lá se vai, portanto, mais de meio milénio. Dentre aquele que, ao cabo de muitas gerações, conseguiu
manter a chave no baú, a maioria o fez ciente de estar conservando uma relíquia
de valor histórico, mas, sobretudo, familiar. Uma preciosidade sentimental,
enfim. Mas narra-se, também, que alguns desses judeus continuam confiando na
serventia prática da tal chave. Em outras palavras: aquele enferrujado metal
ainda abriria a porta da remota residência da família na Espanha.
O mais incrível: algumas daquelas casas dos guetos
judaicos, de fato, foram mantidas tal e qual há mais de 500 anos. Desde aquele
período, nenhum outro ser humano havia entrado nesses lares, erguidos ainda nos
idos medievais.
Assim aconteceu em Girona, na Catalunha, uma das 17
comunidades autónomas da Espanha actual. Estacionado no tempo, como se meio
milénio de História fosse mero hiato, lá está - intacto! - um trecho inteiro do
antigo bairro judeu da cidade. Essa área esquecida pela especulação pode ser
vista através de uma das janelas do Museu D'Història dels Jueus - um dos dois
museus do país que narram a saga judaica na Espanha; o outro fica em Toledo.
Sonhadores, esses judeus imaginam que malgrado o peso de
cinco séculos, o domicílio estaria de pé, assim como foi abandonado, às pressas
e à revelia, no raiar da Idade Moderna.
Há apenas três anos,
escavações em Barcelona revelaram ruínas de uma das primeiras sinagogas da
Europa.
Quem encosta o nariz no vidro da tal janela observa,
assombrado, as casas estreitas, de dois ou três pavimentos, desafiando o
desdobrar dos séculos. Essas residências permaneceram inalteradas na Cidade
Velha, em meio às vielas e labirintos do call - ou bairro judeu, na língua
catalã. A razão da invulgar preservação?
Os sefarditas eram, na Idade Média,
um povo essencialmente urbano. Foram proibidos de posses agrárias.
Ao intento da Rede de Juderías, cabe registar, que vai além
de reconstituir o passado dos sefarditas - ou seja, dos judeus de raízes
ibéricas, ao passo que os judeus radicados na fracção oriental da Europa são
chamados de asquenazitas. Outro dos sólidos objectivos da associação é
estabelecer um seguro roteiro histórico e religioso. Dessa maneira, procura-se
abrir uma perspectiva prática para que novas gerações de ascendência sefardita
viajem para a Espanha e conheçam in loco as origens de uma cultura que, a
despeito de seguir com fidelidade os preceitos e dogmas comuns aos hebreus,
firmou suas especificidades.
A começar pela língua, enquanto os asquenazitas (Asquenaz
quer dizer Alemanha, em hebraico) desenvolviam o ídiche, os judeus radicados na
Península Ibérica se comunicavam por intermédio do ladino, idioma também
conhecido por judezmo, espanyol ou didjio. Grosso modo, era uma adaptação do
espanhol antigo, enxertado por uma amálgama de palavras hebraicas, árabes,
turcas e portuguesas. Detalhe: uma comunidade isolacionista de Salónica, cidade
na Grécia continental, ainda conversa no dia-a-dia nessa língua medieval,
constituindo um caso raríssimo de conservação semântica. Por maiores os esforços da Red de Juderías, urge uma
ressalva. Embora descobertas como o intacto call de Girona tenham gerado
justificado arrebatamento, a própria entidade leva em conta um intransponível
limite: o maior quinhão do património sefardita no país não sobreviveu aos
nossos dias.
EM TOLEDO, HERANÇA NOTÁVEL
Impedidos, por uns e por outros, de se candidatar a cargos
militares ou, mesmo, do direito à posse agrária, os sefarditas tornaram-se um
povo de essência urbana, dedicado a ofícios tais como tecelagem, alfaiataria,
tinturaria, curtume e ourivesaria. Eles foram, no frigir dos ovos, os
precursores da pequena burguesia. Só os mais afortunados - uma minoria, diga-se
a bem da verdade - chegariam mais tarde a trabalhar como cobradores de impostos
e banqueiros. Ocupações que, como se verá adiante, também seriam sua ruína.
UM TEMPLO HISTÓRICO
A
bela Sinagoga del Tránsito foi transformada em igreja cristã no século 15. Só
nos anos 1970 teve restituída a sua religião original
Um dos redutos onde o património sefardita ainda se conserva notável é Toledo, a 70 quilómetros de Madrid (e a meia hora de distância pelo recém-inaugurado comboio AVE). Na razão directa dessa herança, a cidade acolhe um daqueles dois museus dedicados à memória de Sefarad. Embora reúna hoje só 12 mil moradores, Toledo foi de vital importância na Idade Média. Aliás, manteve-se, na era seguinte, como capital da Espanha até 1531, quando o déspota Felipe II transferiu o centro de decisões para Madrid. No auge da cidade medieval, 10% da população que vivia dentro das muralhas de Toledo era constituída por judeus, contingente calculado pelos historiadores em 350 famílias. A cidade contava então com 12 sinagogas, várias construídas no atraente estilo árabe mudéjar - pois os mouros eram, então, os manda-chuvas na arquitectura. Restam hoje dois desses templos judaicos. Ambos foram transformados em igrejas cristãs, ainda no século 15.
A sinagoga mais antiga de Toledo, erguida três séculos
antes disso, é a Igreja de Santa Maria Blanca, que, como informa o nome,
permanece administrando ritos católicos, embora sua decoração revele signos
hebraicos. Há duzentos anos atrás, a Sinagoga del Trânsito foi restituída à
religião original somente nos anos 1970. Muitos de seus visitantes ficam pasmos
ao notar, no teto e nas paredes, escritos religiosos com grafia tanto em
hebraico (salmos, mais amiúde) como também em árabe (saudações do Corão).
Singular nesse sentido, também, é a estrela-de-david que o mestre-de-obra judeu
Bertrand de La Borda esculpiu no claustro da igreja católica de Seu Vella, na
cidade de Lérida (ou Lleida, em catalão), em meados do século 14.
Lembranças arquitectónicas como essas serviram para forjar
um mito divulgado com frequência por apressados historiadores de várias etnias:
aquele, segundo o qual, a Idade Média na Península Ibérica teria sido um
luminoso - e inédito - período em que os seguidores das três maiores religiões
monoteístas conviveram, sem atritos, em absoluta e sacrossanta paz.
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