O relato do Rabino Kruger
Na Polónia já estou acostumado ao anti-semitismo e não me espanta que, no
outro lado, na Alemanha, Hitler tome o poder. Pelas ruas de Berlim judeus são
perseguidos, espancados e mortos - é que nos escrevem, é que nos dizem, é o que
lemos, oi gewalt. O meu nome é Chaim
Kruger e sou rabino numa klein
statle, num pequeno povoado. “A guerra é inevitável”, prevejo, “e em breve
os nazis estarão aqui”. Não é fácil mas, com economias feitas penosamente, com a
minha mulher e as nossas seis crianças, em 1938 conseguimos escapar de Varsóvia
para Bruxelas.
Em 1939 os alemães invadem a Polónia e, logo a seguir, os Países Baixos.
Com a minha família, outra vez estamos em fuga. Chegamos a Paris mas logo
abalamos para sudoeste porque os alemães já estão a invadir a França. Milhares,
dezenas de milhares de refugiados, judeus e outras minorias, pejam os caminhos;
são antinazis franceses e belgas e holandeses e checos e alemães, também algumas
famílias ciganas. Uma, ou duas vezes por dia, caças alemães mergulham em voo
picado sobre as estradas e metralham os caminhantes. Há dezenas de mortos nas
bermas, todos eles ensanguentados. Ainda ouço os gritos, choros, lamentações, oi wais mir. Quis Deus que eu, e os
meus, tenhamos escapado sempre ilesos, graças a Deus, dank main Got.
Para fugir à hecatombe, agora a nossa esperança é chegar à fronteira,
atravessar a Espanha, entrar em Portugal e dali embarcar para América, onde
parentes nossos esperam por nós.
Chegamos a Bordéus em Maio de 1940 e a cidade está repleta de fugitivos.
Procuro o Consulado espanhol para obter o visto no passaporte da minha família
mas um funcionário diz-me que sem antes obter o visto português não conseguirei
o espanhol. Saio meio atordoado com a informação, não entendo o que se passa. Cá
fora um francês, também ele refugiado e, ao que suponho, comunista,
explica-me:
-
Rabi, Franco foi ajudado pelos nazis durante a guerra civil espanhola. É por
isso que não quer no seu território fugitivos do nazismo. Só os deixa passar se
forem rumo a Portugal. Salazar,
o primeiro ministro português, está entalado. Portugal tem uma aliança
antiquíssima com a Inglaterra e um pacto recente com a Espanha. Se hoje pender
para os Aliados, será invadido pelos alemães através de Espanha. Se pender para
os alemães, a Inglaterra desembarcará tropas em Portugal. É claro que a simpatia
do fascista Salazar
vai
para Hitler. Mas tem que fingir uma estrita neutralidade para evitar a
intervenção quer do Eixo, quer dos Aliados. Por isso estou em crer que
Salazar
lava
as mãos e vai impedir a entrada de refugiados em Portugal. Aliás o Dr. Mendes já
me disse que tem enviado centenas de telegramas para Lisboa, pedindo autorização
para dar vistos e até agora não obteve qualquer resposta.
- Quem é o Dr. Mendes?
- É o Cônsul de Portugal em Bordéus, Dr. Aristides de Sousa Mendes.
Mendes, Mendes... O nome bate-me nos ouvidos, reconheço-o, é marrano, é
judeu. Tenho que falar com o Dr. Mendes.
Dirijo-me ao Consulado de Portugal. O jardim e as ruas vizinhas estão
repletas de refugiados, todos a aguardar vistos para seguirem viagem, são
milhares em desespero. Identifico-me, peço para falar com o Dr. Mendes. Três
horas depois sou recebido. É um cavalheiro muito distinto, porém com feições
angustiadas. Deve estar a viver uma grande tragédia, bem posso imaginar qual
seja ela. Apresento-lhe a minha mulher e os meus filhos, conto-lhe do nosso
êxodo de Varsóvia até Bordéus. Entende o meu sofrimento porque também ele tem
muitos filhos, acho que doze. Convida-nos a pousar em sua casa para darmos algum
descanso às crianças. Aceito, agradeço e pergunto-lhe se também ele é judeu.
Sorrindo, esclarece:
- Rabi, não se iluda com o meu apelido Mendes. Até onde eu posso rastear, a
minha família, há pelo menos cinco gerações, é de católicos fervorosos. Se, por
acaso, tivemos um ancestral judeu, não é nada que nos desmereça, mas disso não
temos conhecimento.
Errei o alvo, main mazle, má
sorte a minha,... Não sei como continuar a conversa. Engasgo-me. Depois ouso
perguntar-lhe quando podemos contar com os vistos para seguir viagem para
Portugal. Acabrunhado, diz-me que nada pode garantir, ainda não tem a necessária
autorização do seu Governo.
- Então, Dr. Mendes, vamos ficar aqui em Bordéus à espera da
matança?
Levanta-se. Amargurado, segura-me o braço.
- Rabi, tenha fé, nem tudo está perdido, confie na Divina
Providência.
Conduz-nos a sua casa, que fica no Quai Louis XVIII, por trás do Consulado.
Apresenta-nos à sua esposa, D. Angelina, e a três dos seus filhos mais velhos.
Indica os aposentos que nos destina. Deseja-nos um bom descanso. Apesar de
gentio, apesar de goi, este Dr.
Mendes is a Mensche, é realmente um
Homem.
É
um espanto, este Dr. Mendes. Na manhã do dia 17 de Junho de 1940 avisa-me:
- Rabi, sossegue, vou passar vistos a toda gente.
Nos
dias 17, 18 e 19, ele e dois dos seus filhos mais velhos trabalham sem parar,
nem sequer para almoçar ou jantar, exaustão. Passam milhares e milhares de
vistos, os refugiados já organizados em filas. Os passaportes são colectivos,
familiares. No meu constam oito nomes, o meu, o da minha mulher e os dos meus
filhos. Assim acontecendo com quase todos, calculo que o Dr. Mendes, nesses três
dias, tenha passado uns 30 mil vistos, dos quais 10 mil a judeus, pelo menos.
Não
se dá por contente. Obedecendo às instruções que recebera de Lisboa, o Cônsul de
Portugal em Bayonne recusa-se a passar vistos aos refugiados de guerra. Porém o
Dr. Mendes é seu superior. Desloca-se a Bayonne, que fica junto da fronteira
franco-espanhola, e é ele-mesmo quem, mais uma vez, passa milhares de
vistos.
O
mesmo acontece com o Consulado de Portugal em Hendaye. Também aí o Dr. Mendes
passa milhares de vistos.
No
dia 24 de Junho o Dr. Mendes mostra-me e traduz-me um telegrama que acabara de
receber. É chamado imediatamente a Lisboa e acusado por Salazar, o Primeiro Ministro
português, de “concessão abusiva de vistos em passaportes de estrangeiros".
Depois de 32 anos de serviço, o Dr. Mendes vai ser demitido sem receber qualquer
reforma ou indemnização, e 12 filhos tem ele para criar. Já teve 14, mas
morreram 2, o segundo e o último, se não estou em erro. Cuidar de 12 filhos é
obra! Eu que o diga, que só tenho 6 e bem sei como custa criá-los. Compadeço-me,
voz embargada, ihre mazle, má sorte a
sua. Mas é ele quem atalha, quem me anima:
-
Rabi, se tantos judeus sofrem por causa de um demónio não-judeu, também um
cristão pode sofrer com o sofrimento de tantos judeus.
A grosse Mensche,
um
grande Homem!
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