segunda-feira, 31 de março de 2014

O Édito de Expulsão dos Judeus de 1492



O Exílio de Sefarad


A Rendição de Granada, Francisco Pradilla, 1882


   Com a rendição de Granada em 1492, Al-Andaluz, nome dado à Península Ibérica pelos seus conquistadores islâmicos no século VIII, conheceu o seu fim. Foi a 2 de Janeiro de 1492 que o rei muçulmano Boabdil entregou as chaves de Granada, o último reino mouro da Península, aos monarcas vencedores, Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

     A guerra de Granada (1482-1492) havia adquirido conotações internacionais, já que para a Europa, perdida Constantinopla em 1453, era imperioso travar o avanço islâmico. Quando finalmente a vitória foi alcançada, a Cristandade celebrou com júbilo. Em reconhecimento de tal feito em defesa da fé cristã, o Papa Alexandre VI viria a conferir o título de Reis Católicos a Fernando e Isabel.

     No vilancete Levanta Pascual, Juan del Encina expressa o entusiasmo do povo espanhol perante a notícia da conquista de Granada pelas forças cristãs.


Levanta, Pascual, levanta,/ aballemos a Granada, /que se suena es tomada.



La Capella Reial de Catalunya∙HESPÈRION XXI∙direcção de Jordi Savall


    Se para os cristãos o momento foi de alegria, já para os mouros foi de imenso pesar. O poema Alhambra, do poeta argentino Jorge Luis Borges evoca a última tarde do rei Boabdil na cidade de Granada que, perdida para sempre, entregou a Fernando e Isabel. 



Pátio do Alhambra no tempo dos mouros, Edwin Lord Weeks, 1876


(…)
Gratos los finos labirintos del agua/entre los limoneros/grata la música del *zéjel
Grato el amor y grata la plegaria/dirigida a un Dios que está solo,/grato el jazmín
(…)
Grato sentir o presentir/rey dolente/que tus dulzuras son adioses
Que te será negada la llave/que la cruz del infiel borrará la luna
Que la tarde que miras es la última.


Jorge Luis Borges, Alhambra, Granada, 1976



Fernando de Aragão e Isabel de Castela, Anónimo, séc. XV


    A 31 de Março de 1492, no Palácio de Alhambra, os reis de Espanha assinaram o Édito de Expulsão dos judeus de todas as terras espanholas. Os judeus tinham de abandonar as suas cidades no prazo de três meses ou aceitar o baptismo. O decreto proibia-lhes regressar a território espanhol, ameaçando-os de pena de morte e confiscação de bens; ameaçava igualmente confiscar todos os bens aos cristãos que tivessem a veleidade de ajudar os judeus. Ao sair de Espanha, os expulsos não podiam levar nem ouro nem prata. 



Ea, judíos, a enfardelar


     Foi neste ambiente de desespero, quando milhares de pessoas arrancadas às suas vidas, despojadas de tudo e, como se não bastasse, alvo de injúrias de vizinhos que se alegravam com a sua partida, que se tornou popular em terras castelhanas uma canção da qual só se conservam os primeiros versos: “Ea, judíos, a enfardelar/Que mandan los reys que passeys la mar”. O grupo musical Brigada Victor Jara interpreta este tema, criando uma atmosfera de grande densidade dramática. Vamos ouvir: 




Ea, judíos a enfardelar∙Brigada Victor Jara




Dom Isaac Abravanel (1437-1508)


   Entre os que saíram, estava Dom Isaac Abravanel. Na sua capacidade de ministro dos reis de Espanha, e apesar dos seus esforços, não conseguiu evitar a expulsão. Muito embora tivesse uma autorização especial para ficar, preferiu acompanhar os seus irmãos de fé nos caminhos do exílio. 



Expulsão dos judeus de Sevilha, Joaquín Turina y Areal (1847-1903)


     Escorraçados, os judeus caminhavam para todas as fronteiras. Uma grande parte dirigiu-se para Portugal e o Norte de África, por serem mais acessíveis. A diáspora sefardita espalhou-se por Itália, Navarra, Provença, Holanda, e sobretudo por terras do Império Otomano.

    Os descendentes dos judeus expulsos de Espanha conservaram uma identidade própria, para já falando uma língua comum herdada dos seus antepassados: o ladino ou judeo-espanhol. Muitos, com uma indizível nostalgia, conservaram as chaves das suas antigas casas em Sefarad. Desta nostalgia nos fala o poema “A Chave em Salónica” de Borges. 


A Chave em Salónica



Abarbanel, Farias ou Pinedo
atirados de Espanha por ímpia
perseguição, conservam todavia
a chave de uma casa de Toledo.

Livres agora da esperança e do medo,
olham a chave ao declinar do dia;
no bronze há outroras, distância,
cansado brilho e sofrimento quedo.

Hoje que sua porta é poeira, o instrumento
é cifra da diáspora e do vento,
como essa outra chave do santuário

que alguém lançou ao azul quando o romano
com fogo temerário acometeu,
e que no céu uma mão recebeu.

Jorge Luis Borges,
in El Otro, El Mismo, 1964




Um Outro Caminho


     A História da humanidade está cheia de violência, de ódio, de preconceito. Mas se é verdade que não podemos modificar o passado, podemos aprender com ele. Durante a guerra civil na antiga Jugoslávia (1992-1996), a comunidade sefardita de Sarajevo decidiu lutar contra a intolerância ditada pelos senhores da guerra, que pretendiam segregar a população por grupos étnicos.

     El Otro Camino é um pequeno filme com cerca de 12 minutos – uma co-produção entre a Espanha, a Turquia, a Bulgária e a Sérvia -, que nos fala da corajosa iniciativa daquela pequena comunidade, que em memória dos seus antepassados expulsos 500 anos antes de Sefarad, se recusou a trilhar o caminho do ódio. Ao invés decidiu trilhar um caminho de coexistência, de entreajuda com os seus vizinhos, quer fossem muçulmanos ou cristãos. 



1492 EL OTRO CAMINO




Este artigo foi elaborado e oferecido pela nossa querida,
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Beijinhos




*zéjel – Forma tradicional de poesia estrófica oral, trazida pelos Omíadas para Al-Andaluz.

Nota:
A população muçulmana foi obrigada ao baptismo ou ao exílio, pela Pragmática de 11 de Fevereiro de 1502.
Imagem de Dom Isaac Abravanel: ilustração de Brockhaus & Efron Jewish Encyclopedia (1906-1913)



Fontes:

MALKA, Edmond S., FIEIS PORTUGUESES JUDEUS NA PENÍNSULA IBÉRICA, Edições Acrópole
Leon-De-Smet-xx-Vase-of-Flowers-xx-Private-Collection

quinta-feira, 27 de março de 2014

Cartas de Lisboa | Tzaria


Tazria

A primeira Mitzvá dada conjuntamente a todo o Povo Judaico foi a Mitzvá de calcular os meses e de estabelecer o Roch Hodesh - o início de cada novo mês lunar.


Neste Chabat, o Povo Judaico em todo o mundo vai ler na Torá acerca desta Mitzvá. Após a habitual leitura semanal da Torá, será aberto um segundo rolo e escutaremos a leitura dos preceitos relativos a esta Mitzvá.



O verso começa com "Hahodech hazeh lahem", o que em português significa: "Este mês é para vós (o primeiro mês de todos os meses).”



"Este mês” refere-se, naturalmente, ao mês de Nissan, o mês em que se celebra Pessach. E é esta exactamente a razão pela qual a parte da Torá em que esta Mitzvá está incluída é lida na semana que antecede o início do mês de Nissan.

No Tzror Hamor, o Rabino Avraham Saba, numa das suas lições mais conhecidas, centra-se na palavra “lachem”, ou seja, “para vós”.

Porque é que a Torá inclui esta palavra aparentemente supérflua? Se não é “para vós” - para o Povo Judaico - para quem poderia ser?

O Tzror Hamor explica que a Torá nos está aqui a ensinar o valor que devemos atribuir às coisas que adquirimos.




Os bens materiais, diz o Rabino Saba, pertencem, em última análise, “a outrem”. Ainda que tomemos temporariamente posse de coisas materiais, no fundo, é como nos diz a Mishná: “quanto mais posses materiais possuirmos, mais preocupados nos sentimos.”






Ainda que possamos encontrar satisfação e mesmo sentir orgulho em acumular bens materiais, fazemo-lo meramente “por conta de outrem” e não os adquirimos de forma permanente.

Apenas algo que seja espiritual pode ser permanente. E é por esta razão que a Torá diz que este mês é “para vós”.

Assim, nesta primeira e tão crucial Mitzvá, a Torá oferece-nos uma perspectiva de como encarar todas as Mitzvot que se seguem.

Ao cumprir esta Mitzvá, bem como todas as outras, é-nos garantido que estas serão verdadeiramente eternas para nós próprios, como expressões da verdade que sempre teremos connosco.




Cortesia do Rabino
Eli Rosenfeld

Shabbat Shalom!
chabadportugal.com


Fontes das imagens:
2 Foto: Pintura de Alex Levin

quarta-feira, 26 de março de 2014

Libelo de Sangue



Libelo de sangue é declarado falso 
(1817)


Anti-semitismo: Gravura alemã do livro Crónica de Nuremberg, publicado em latim e em alemão em 1493, representando o dito martírio de um menino italiano chamado Simão de Trento, supostamente pelas mãos de judeus maliciosos.


A 24 de Adar, o Czar Alexandre I da Rússia declarou o Libelo de Sangue – a infame acusação de que judeus assassinavam crianças cristãs para usar seu sangue na confecção das matsot para Pêssach, pela qual milhares de judeus foram massacrados no decorrer dos séculos – como falso. Apesar disso, quase cem anos depois a acusação foi oficialmente levantada contra Mendel Beilis em Kiev.


Mendel Beilis


Por Eli Rubin

No dia seguinte a Tisha B’Av, no ano de 1911, Menachem Mendel Beilis foi subitamente preso e levado para a sede da polícia secreta do Czar, em Kiev, Okhrana. Depois de mais de dois anos de prisão, ele foi julgado por falsa acusação de assassinato ritual – libelo de sangue - num caso que atraiu a atenção internacional. O julgamento começou dois dias antes do Yom Kippur, no dia 25 de Setembro de 1913. Segue agora a história do julgamento, contada em 20 fotos.



A caverna em que foi encontrado o corpo mutilado de Andrei Yushchinsky, com treze anos de idade. Ele foi morto por membros de um gangue criminoso liderado por Vera Cheberiak, que suspeitava que Andrei a havia traído denunciando-a à polícia.


Vera Cheberiak, a criminosa, que foi responsável pelo assassinato de Yushchinsky, tornou-se a principal testemunha contra Beilis. Procuradores da República e investigadores colaboraram com ela no fabrico de falsos testemunhos e evidências.


Zhenya Cheberiak era o filho de Vera, e o companheiro de brincadeiras de Andrei Yushchinsky. Ele foi provavelmente a última pessoa a ver Andrei antes de este ser assassinado.

Zhenya ficou doente e alguns meses depois, quando tentou transmitir o que ele sabia aos investigadores, a mãe traiçoeiramente “cobriu-lhe a boca com beijos”. Depois da morte do seu filho, Vera estava apenas preocupada em falsificar o testemunho que Zhenya tinha dado.


Esta era a casa de Mendel Beilis, situada no recinto da fábrica de tijolos Zaitsev, e a uma curta distância da caverna. Como um dos poucos judeus com permissão para viver na área, os antissemitas locais determinaram que Beilis era o alvo mais fácil para a acusação do libelo de sangue.


Gregory Zamyslovsky, foi um membro da Duma imperial e um personagem chave na conspiração para colocar na prisão Mendel Beilis. Foi ele que falsamente acusou o tzaddikim Schneersohn, os líderes da corrente Chabad-Lubavitch do Chassidismo, de estar por trás de cada caso de assassinato deste suposto ritual judaico no império russo.


Nikolai Krasovsky, foi um detetive da polícia também apelidado de "Sherlock Holmes da Rússia." Depois de se recusar a calar sobre o assassinato de Beilis, Krasovsky, ainda determinou que Vera Cheberiak era realmente a responsável pelo assassinato. Krasovsky pagou caro pela sua honestidade: ele foi removido de seu posto e processado pelo governo.


Mendel Beilis, aqui nesta foto com o uniforme da prisão. Ele é escoltado do tribunal depois de receber a sua segunda acusação, que ele carrega num rolo. A primeira acusação foi abandonada depois dos legisladores concluírem que não havia nenhuma possibilidade de o condenar com uma base tão frágil. A segunda acusação, foi emitida quando eles determinaram que seria muito constrangedor largar o caso depois de um período tão longo de prisão e investigação.


Na foto acima podemos ver Ivan Sikorsky, um psiquiatra famoso e bem conceituado, que lecionou na Universidade de Kiev. A sua reputação azedou quando o seu antissemitismo o levou a abandonar os princípios científicos e desvia violentamente a sua análise sobre as feridas de Yushchinsky para apoiar a acusação de assassinato no caso do ritual judaico.


Faivel Shneerson, um negociante de feno e palha, que pode ou não pode ter estado relacionado com a famosa família Schneersohn de líderes chassídicos. A promotoria usou o seu nome e a sua familiaridade com Beilis para fortalecer a acusação ao movimento chassídico, apresentando Faivel como um tzaddik chassídico. Ao fazer isso eles tentaram disfarçar o seu enorme antissemitismo, alegando tencionavam apenas atingir uma orla da seita bárbara, em vez de toda a nação judaica.


Uma pilha de livros religiosos judeus entrara como prova pela defesa. Coube ao rabino Yaakov Mazeh de Moscovo refutar as falsas acusações dos "especialistas" que apoiaram o processo. Rabinos Mendel Chein, Avraham Chein e Levi Yitzchak Schneersohn estiveram do seu lado com a sua pesquisa, ajudando-o a localizar e familiarizar-se com uma ampla gama de fontes relevantes.


O ministro do Interior Nikolai Maklakov era parte da conspiração contra Beilis. Antes do julgamento, ele usou um fundo de dez milhões de Rublo do czar, dinheiro esse que serviu para subornar testemunhas. Durante o julgamento, ele ordenou à polícia secreta para monitorar ilegalmente as deliberações do júri, e recebeu relatórios periódicos dos seus agentes. Por ironia, o seu irmão (que não eram muito ligados), Vasily, foi um dos advogados liberais que defendeu Beilis no julgamento.



Nesta foto podemos ver os quatro membros da equipa de defesa. Da esquerda para a direita; Dmitry Grigorovich-Barsky, um dos advogados mais proeminentes em Kiev; Nikolay Karabchevsky, presidente do Conselho de Advogados de São Petersburgo; Oscar Gruzenberg, líder nominal da defesa, e o único judeu na equipa, Alexander Zarudny, um advogado liberal proeminente e político que serviu como ministro da Justiça no governo provisório de 1917.


Oskar Vipper, o procurador da República, que foi em grande parte eclipsado pelos seus confederados civis Gregory Zamyslovsky e Alexander Shmakov. Após o julgamento, ele, juntamente com o ministro da Justiça Ivan Shcheglovitov-foi aplaudido pelos principais antissemitas e conspiradores de São Petersburgo, que comemoravam como "homens russos incorruptíveis e independentes."


O tribunal em sessão: para a extrema-direita, Beilis está sentado no banco dos réus. Os juízes liderados por Fyodor Boldyrev, cuja marca do chefe era identificada pela barba bifurcada e os seus extremos e viés antissemitas estão sentados no estrado. De frente para o outro lado da sala são os advogados de defesa, para a direita, e os promotores e júri para a esquerda. Um perito está entre eles, dirigindo-se ao juiz.


Vasily Shulgin foi um antissemita declarado que serviu como editor do jornal de direita Kievlianin durante o julgamento. Após uma reunião com líderes judeus, os editores do jornal determinaram que, apesar dos seus preconceitos não podiam, de boa-fé apoiar o libelo de sangue. Em vez disso, eles se tornaram defensores vocais em nome do Beilis, e lamentaram toda esta “paródia” por parte da justiça russa.


Mendel Beilis esteve sob guarda durante o julgamento. Depois de estar dois anos sujeito a condições desumanas na prisão, o início do julgamento veio como um alívio para Beilis. Foi-lhe permitido vestir as suas próprias roupas, foi conduzido ao tribunal numa carruagem decente, e ainda lhe ofereceram uma boa refeição.


Justin Pranaitis foi um padre católico de Tashkent, e a única autoridade religiosa, que o governo encontrou para fazer a acusação do assassinato do ritual. Um plagiador completamente sem escrúpulos que alegou ser um especialista hebraista, mas que a defesa desmascarou e provou que este não passava de um ignorante fraudulento.


Yaakov Mazeh, o rabino do governo de Moscovo, era famoso por sua erudição e pela sua eloquente oratória. Nos últimos dias do julgamento, ele entregou uma defesa contundente dos valores morais judaicos e demonstrou que o movimento chassídico nunca tinha pervertido a tradição judaica ou seus preceitos.


O júri foi seleccionado para garantir que sua "natureza ignorante" combinado com "inimizade étnica" iria pender a balança mais para a injustiça. No decorrer do julgamento, no entanto, expressaram preocupação de que seria difícil decidir o destino de Beilis considerando que nenhuma prova foi apresentada contra ele. Em última análise, o seu veredicto era ambígua: Beilis foi absolvido, mas ainda assim continuou-se a insinuar que Yushchinsky tinha sido vítima de um assassinato ritual judaico. O libelo de Sangue!


A família Beilis, fotografada depois do julgamento. Já em liberdade, a família deu-se ao luxo de colocar seu infortúnio por trás das costas. Viver com a ameaça de retaliação antissemita não era uma opção, a família mudou-se primeiro para a Terra Santa e, posteriormente, para Nova Iorque. Mas, enquanto a comunidade judaica os acolheu e celebrou sua liberdade, Beilis foi incapaz de garantir um meio permanente de subsistência ou paz de espírito.

Apesar do veredicto misto, o julgamento de Beilis continua a ser um exemplo pungente de uma conspiração de poder e ódio frustrado pela unidade e a verdade.



Fontes:
1º Texto: O dia de hoje na história judaica – 24 Adar II 5774:
1ª Foto:
2 º Texto: A história do julgamento do libelo de sangue:
Para mais informações sobre os antecedentes do caso, leia Scapegoats do czar: Beilis, os chassidim e os judeus:
As 20 fotos que acompanham este artigo sobre o julgamento foram uma cortesia de Edmund Levin ao autor deste artigo, Eli Rubin.