DECLÍNIO
DAS COMUNIDADES JUDAICAS NO IMPÉRIO OTOMANO
Viajantes no interior de
uma caravana turca, manuscrito otomano, século XVII, Museu Correr, Veneza
O cronista turco Evliya Çelebi
(1611-1684) diz-nos nos relatos das suas viagens, que o grande sarraf (banqueiro-mor e cambista) do
Egipto era um hebreu, que chefiava um corpo de 300 funcionários judeus.
As atividades urbanas dos judeus do
Império Otomano no século XVII, não se tinham modificado muito desde o século
XVI. Os judeus continuavam a participar no comércio marítimo, a ocupar um lugar
de privilégio na administração e vida financeira do Estado, mas também
trabalhavam no fabrico de vestuário e eram técnicos exímios na fiação do ouro e
da seda.
Lady Mary Wortley Montagu em traje turco, c. 1756, Jean-Etienne Liotard
Lady Mary Wortley Montagu, escritora e esposa do embaixador britânico
acreditado em Istambul, num testemunho de 1717, refere que era difícil para as
grandes famílias otomanas moverem-se nos meios de negócios sem a ajuda dos
«seus» judeus. É igualmente nesta época que há um renascer da atividade da
impressão de livros em Istambul. Mas a par deste brilhantismo, era visível a
progressiva degradação da situação económica dos judeus otomanos. Cada vez mais
os judeus viviam em bairros segregados, onde a insalubridade das habitações era
uma realidade e o ambiente social se assemelhava a um gueto. Crescia a
intolerância muçulmana e eram cada vez mais frequentes as manifestações
antissemitas, vindas amiúde das comunidades gregas ortodoxas. Tudo isto
resultou numa vaga de emigração hebraica, mas desta vez para fora das
fronteiras do império.
Salónica
em 1688
Em Salónica, entre 1660 e 1692,
a população judaica passou de 40000 para 12000 pessoas. Verificou-se uma quebra
semelhante em Sarajevo, Skopje, Belgrado e um pouco menor em Sófia, Monastir e
Edirna. A partida dos judeus originou uma recomposição demográfica e étnica das
cidades balcânicas, com grande impacto para as comunidades judaicas, que foram
substituídos por gregos, arménios, eslavos e albaneses. Os judeus perderam
assim o seu ascendente no aparelho de Estado, cedendo o lugar aos cristãos.
O êxodo, em que tiveram parte um grande
número de conversos portugueses e espanhóis, dirigiu-se sobretudo para
Inglaterra e os Países Baixos. Entre 1700 e 1709, um grupo de judeus turcos instalou-se
em Viena de Áustria.
Vista
de Viena a partir do Belvedere, Bernardo Belloto, il Canaletto
Deste grupo faziam parte as famílias
Camondo, Nissin, Amar, De Mayo, Benveniste ou Eskenazi, só para citar algumas, que
anos mais tarde se reuniriam à volta de Diogo Pereira d’Aguilar [um converso
português, filantropo e homem de negócios que entre 1725 e 1747 deteve o
monopólio do tabaco em Áustria, e que receberia o título de barão do Sacro
Império Romano-Germânico], desenvolvendo um novo polo de judaísmo ibérico em
Viena. Ainda hoje a comunidade turco-judaica de Viena fundada por Diogo
d’Aguilar, reza pela sua alma em Yom
Kippur.
Temesvár (atual Timişoara,
Roménia), O Livro de Canções de Ferenc
Wathay, Magyar Tudományos Akádemia
O barão d’Aguilar fundou
igualmente uma comunidade sefardita em Temesvár [cidade governada pelos turcos
entre 1552 e 1716, e que a partir desta data foi anexada à Hungria na qualidade
de província austríaca], que mantinha uma estreita ligação com a comunidade de
Viena.
Na verdade, durante o século XVIII
assiste-se ao retalhamento do Império Otomano pelos dois impérios cristãos
vizinhos, o russo e o austríaco. Entretanto, no século XIX surgem os
nacionalismos balcânicos e a Sérvia, a Grécia, a Roménia e a Bulgária
conquistam a sua autonomia. Já na década de oitenta, os franceses apoderam-se
da Tunísia (1881) e os ingleses do Egipto (1882). A situação das comunidades
judaicas acompanhou esta degradação do império e em 1885 serviam na alta
administração otomana 348 gregos, 494 arménios e apenas 99 judeus.
O
CASO DAMASCO E O LIBELO DE SANGUE DA ILHA DE RODES
Bairro Judeu na Velha
Damasco, 1873-74, Lord Frederick Leighton
Olhando para este quadro de
Lord Frederick Leighton colhemos a impressão de uma vida idílica dos judeus de
Damasco, no século XIX. Dificilmente associamos esta cena doméstica a um famoso
caso de libelo de sangue, ocorrido em 1840, e que ficou conhecido por “Caso
Damasco”. Tudo começou com o desaparecimento de um monge franciscano e do seu
criado. De seguida os judeus da cidade foram acusados de os terem assassinado,
com o fim de usarem o sangue das vítimas para a confeção das matzot de Pessach. A comunidade cristã local, o governador da cidade e o
cônsul de França, com amplo suporte do governo de Paris, alinharam ativamente
nesta acusação de ritual de assassinato. Os judeus acusados (oito dos mais
notáveis da cidade e um barbeiro de nome Negrin) foram barbaramente torturados
- arrancaram-lhe os dentes, as barbas e depois queimaram-nos -, tendo um deles
“confessado” o crime - o barbeiro Negrin, cujo testemunho foi então utilizado
como prova irrefutável de culpa. Joseph Lañado, um dos notáveis, devido à
avançada idade e em resultado das torturas, veio a falecer. Entretanto a
sinagoga foi pilhada.
Sir
Moses Montefiore, Henry Weigall
No mesmo ano, na ilha de Rodes, a comunidade grega ortodoxa criou um
libelo de sangue contra os judeus, acusando-os de ritual de assassinato na
pessoa de um menino cristão. O libelo teve o apoio dos cônsules de França,
Grã-Bretanha, Suécia, Grécia e Império Austro-Húngaro. O governo otomano local,
contrariamente à tradição do império de proteger os judeus das acusações de
libelo de sangue, apoiou a acusação de ritual de assassinato. Vários judeus
foram presos, alguns fizeram “confissões” sob tortura e um quarteirão do bairro
judeu foi bloqueado durante doze dias.
Os casos chamaram a atenção internacional,
provocando uma onda de protestos da diáspora judaica europeia. James de
Rothschild, cônsul honorário de Áustria em Paris, tomou as rédeas da situação,
e as potências europeias mobilizaram-se pelos judeus de Damasco e de Rodes.
Adolph Crémieux (presidente da Alliance Israélite Universelle) e Moses
Montefiore (xerife de Londres) partem para o Egipto, conseguindo, após negociações
atribuladas, inocentar os judeus de Damasco. No regresso à Europa, Montefiore
fez escala em Istambul, onde se encontrou com o embaixador britânico, Lord
Ponsonby.
Lord Ponsonby, John Frederick Lewis
Hagia Sofia vista do Bósforo, David Roberts (1796-1864)
Em 3 de Julho de 1908 estala a
Revolução dos Jovens Turcos. Esta data marca a dissolução do Império Otomano. A
situação política é altamente instável e a transição de um sistema monárquico
para um constitucional, verifica-se muito difícil. Um pouco por todo o império
sucedem-se as revoluções locais, com episódios de grande violência.
Em 1920, após a Primeira Guerra Mundial, sob
os termos do Tratado de Sèvres, é assinado um acordo de paz entre os Aliados e
o Império Otomano. São criados 40 novos países a partir dos antigos territórios
otomanos (incluindo a República Turca de Chipre do Norte). O sultanato foi
abolido a 1 de Novembro de 1922.
O mundo ficou diferente e a complexidade
das relações modernas entre judeus e «gentios», entre o Oriente e o Ocidente,
alterou-se.
Adio Querida - Miris Kiše na
Balkanu - najavna špica
“O cheiro da chuva nos Balcãs” (Miris Kiše na Balkanu) é o título de um
romance publicado em 1986, da escritora sérvia Gordana Kuić. O romance,
inspirado na sua mãe, Blanki Levi, e nas suas tias, fala do destino de uma
família de judeus sefarditas de Sarajevo, no período conturbado que vai de 1914
a 1945. Miris Kiše na Balkanu foi
adaptado a uma série televisiva e tem como música associada uma das canções
sefarditas mais famosas dos Balcãs – Adios
Querida. É com ela que encerramos este artigo.
No quero la vida,
Me l’amargates tu
Y te quito al mundo,
Coracon ella no te dio
Para amar segundo.
Aharva otras puertas,
Aspera otro ardor,
Que para mi sos muerta.
Este
artigo foi elaborado pela amiga
Sónia
Craveiro.
Muito
obrigada pelo seu carinho.
Beijinhos
Fontes:
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