Judeus e
Cristãos Novos em Travanca
Fonte Arcada,
Travanca de Lagos.
Crónicas da minha Terra, Cap.
III, por João Duarte Lousã.
Como temos constatado, Travanca de Lagos é uma povoação
muito antiga, talvez das mais antigas de toda a região, tendo na sua zona
histórica ainda um testemunho vivo dessa realidade. Já nas Inquirições de D.
Afonso III vem referido que, no tempo de D. Sancho I, D.
Dulce de Aragão, sua esposa e rainha de Portugal, comprou aqui 19 casais, o que
mostra que já nesse tempo Travanca seria muito desenvolvida. Mas, terá sido,
provavelmente, no séc. XV e XVI que Travanca atingiu o seu apogeu, a julgar
pelo vasto património existente com o cunho dessa época, como sejam as portas e
janelas biseladas, mas também muitos outros sinais.
Recentemente várias coincidências, puro golpe de sorte para
mim, levaram a uma descoberta muito interessante. Tudo começou com um fogão a
lenha, em pedra, que fotografei um pouco à pressa, sem grandes condições, numa
antiga casa medieval em Travanca. Quando mostrei a fotografia ao Dr. Francisco
Antunes, pessoa que muito estimo, que para além de médico detém grandes
conhecimentos de história, nomeadamente de história local, e que se preocupa
também com as questões do património, este revelou-me que a dita peça talvez
pudesse ser judia.
Segundo ele, os judeus, que tinham no sábado o seu dia
santo, o Sabat, nele não podiam realizar tarefas domésticas, nem mesmo
cozinhar. Sendo assim, seria a sexta-feira o dia escolhido para as limpezas da
casa e para a confeção da comida, inclusivamente a destinada às refeições de
sábado, que mantinham quente nesse fogão, talvez a brasas e borralha. Nesse
contexto, falou-me um pouco da história desse povo, das perseguições, dos
convertidos, dos cristãos novos e do criptojudaísmo.
Falámos das suas casas típicas e de como estavam
relacionadas com as profissões. Era um povo virado para os negócios, para as
artes e ofícios, desde ferreiros, sapateiros a alfaiates e também para as
profissões liberais, como o notariado ou a medicina, funcionando no piso
inferior das suas casas as oficinas ou lojas e no piso superior a habitação, a
que acediam por meio de escadas internas. Apresentavam uma porta para as
escadas que davam para a habitação no piso superior e uma outra, mais larga,
para a loja. Tinham, geralmente, uma janela e um pequeno janelo que servia para
vigiar. Algumas casas tinham, também, passadiços e alçapões. Tudo estratégias
para iludirem as autoridades.
Casa onde se
encontrou o fogão.
Pormenor do fogão visto de cima
e visto de frente.
Quando, no dia seguinte a esta conversa, visitei um amigo e
entrei na sua propriedade, uma quintinha bem recatada no Zambujeiro e que em
tempos fora pertença do Sr. Jerónimo Figueiredo, segundo o meu amigo pessoa
abastada, deparei-me com a sua casa, de aspeto muito antigo, na qual sobressaia
uma interessante porta com a verga em arco e encimada por um pequeno janelo,
tudo com o granito à mostra. Como tinha a conversa do dia anterior ainda
presente, fez-me pensar que podia tratar-se de uma casa judia.
Suposta casa
Judia.
Detalhe da
fachada.
Efetivamente são várias casas e não uma só, correspondendo
a mais que um período no tempo, todas interligadas e já com muitas alterações
que nos confundem um pouco. Mas, qual não é o meu espanto quando, na primeira
que visitei (fig. mais abaixo), que se compõe de loja e de 1º andar
amplo, encontrei uma estrutura central, inserida na parede, que primeiro me
sugeria ser um “fogão judaico” mas que, após investigar no dia seguinte, me
pareceu tratar-se de um Armário Judaico.
Este armário judaico conhecido por Aron Hakodesh, armário onde os
judeus guardam, na divisão inferior, os rolos da Torah - Pentateuco ou Livros
da Lei, para serem lidos durante o culto religioso, e, na divisão superior, o
Menorah - candelabro de sete braços ou lâmpada perpétua.
Embora, como se pode ver na figura, este esteja globalmente
preservado não está completo, pois a pedra inferior ficou tapada quando subiram
o piso em aproximadamente 30 cm, o que nos impossibilita de reparar se a pedra
tem os dois pequenos círculos típicos para sustentar o rolo da Tora. Segundo o
proprietário a pedra inferior mantem-se intacta, apenas coberta com o cimento.
Mantive-me a explorar e dei com uma saída nas traseiras,
que dá para uma rua que liga o Zambujeiro a Travanca, quando me deparei com
outra casa que também me sugeria ter características judaicas e ainda outras
que, não sei se por sugestão ou não, me ofereciam desconfiança. Parecia estar
numa Judiaria, obviamente tudo meras suposições. Voltei, na semana seguinte,
com o Dr. Francisco Antunes que também ficou entusiasmadíssimo com os achados e
ainda mais ficou quando soube que uma das casas vizinhas, que se encontra já em
ruínas, pertencera a alguém de Rio de Mel, povoação que, segundo ele, tem um
passado com uma forte implantação judia.
Casa da Rua do Zambujeiro
Casa da Rua do Zambujeiro- de
frente
Constatámos que, uma característica comum a várias destas
casas era a existência de uma Pilheira, que consistia num armário embutido na
parede, todo em pedra, onde possivelmente as pessoas guardavam a LUZ e o livro sagrado.
Só resta um exemplar numa das casas, embora os proprietários de duas outras
habitações se lembrem de terem tido algo similar nas suas.
O passo seguinte foi procurar, na zona histórica de
Travanca, pistas da presença judaica ou de cristãos novos, nomeadamente de
simbologia cruciforme junto das casas, que atestassem a sua presença entre nós.
No 1º dia acompanhou-me, nessa façanha, o meu velho amigo, também aficionado da
história local, Carlos Martins. Começámos por uma antiga casa que é pertença da
sua família infelizmente em avançado estado de degradação, que em tempos teve
um passadiço. Descobrimos que sob a caliça, caída ao longo dos tempos, se
afigura uma data de 1746, encimada por uma cruz. No interior, a casa apresenta
outros sinais de ser bem mais antiga, nomeadamente uma porta com as ombreiras e
a verga biseladas, que a remetem para o séc. XVI.
Casa á esq. com o passadiço ao
fundo.
Pormenor da inscrição.
Continuamos pela rua do Terreiro, e junto à Travessa do
Terreiro, deparámo-nos com duas singularidades: uma casa muito sui generis, com
um pequeno janelo, e logo a seguir, na casa que fica na esquina da travessa,
uma cruz gravada na pedra, Eureca! A casa ao lado tem uma data inscrita de
1623.
Casa na rua do terreiro - Cruz na casa da travessa.
Pormenor da inscrição da data.
Seguimos para a Rua do Outeiro, sempre procurando
características nas casas que nos revelassem algo, até que, por fim, numa
pequena travessa encontrámos mais uma casa com um elemento cruciforme.
Travessa no Outeiro.
Casa com elemento cruciforme.
Pormenor da cruz.
Voltámos atrás e subimos pela Rua do Forno do Senhor até ao
largo da igreja matriz e aí, mais uma vez, vimos uma outra casa muito
interessante, pertencente à família do meu amigo Paulo Madeira, que também tem
inscrita uma figura cruciforme, mais complexa, estando contida numa
circunferência que depois é encimada por outra cruz. Existe, também, um pequeno
pátio que serve de entrada a duas outras casas, infelizmente bastante
degradadas, a pedir rapidamente uma reabilitação, ambas com as portas e janelas
biseladas.
Fachada com cruz - Detalhe
Outros pormenores.
Quando me aproximei para fotografar as casas reparei que na
ombreira da porta existia uma cruz, embora muito ténue No seu interior pude
observar um armário em pedra de granito, junto à lareira, e uma pequena divisão
com uma provável pilheira, uma outra sala com janela de conversadeira, nas
portadas, muito antigas, tinha um postigo e no chão um pequeno alçapão, que
leva à loja. Todos estes achados, muito interessantes, estão em risco de
desaparecer, pelo abandono a que estão votadas estas duas casas.
Casas do pátio - Porta e janela
biselada e
Ombreira com cruz.
Armário embutido em granito.
Pequena pilheira - Pormenores da
sala.
Quando voltei a esta aventura acompanhado pelo Dr.
Francisco Antunes ainda encontrámos mais dois símbolos cruciformes, um junto ao
forno comunitário, um pouco descontextualizado, e o outro na ombreira de uma
antiga porta, mas que presentemente, talvez há muitas dezenas de anos, faz de
enchimento num antigo muro.
Antigo muro com cruz - Elemento
cruciforme em pedra.
Fotografei, ainda, uma antiga casa, já em ruínas há muitos
anos, na Rua do Outeiro, que curiosamente tem uma pilheira no seu interior.
Fica aqui o registo. Quanto à teoria de que os judeus tivessem por cá passado,
e muitos cá permanecido, convertidos à fé católica, mantendo o judaísmo na
intimidade do lar, penso que é uma hipótese perfeitamente plausível, existindo
imensos casos descritos na Beira Alta, fazendo parte inclusive de um roteiro
judaico. Por último, é de referir que o período da expulsão dos Judeus de
Castela pelos reis católicos, a partir de 1492, coincide precisamente com o
dito período mais faustoso de Travanca.
Antiga casa em ruínas no Outeiro.
Fachada superior interna.
Pilheira.
Como é óbvio, todas estas suposições que aqui foram
levantadas carecem de confirmação. Gostava muito que pudessem vir a Travanca
especialistas nesta área estudar estes achados e talvez outros que nós não
vimos, para que se pudesse intervir neste património tão rico que Travanca tem
com políticas de conservação e protecionismo, evitando assim a delapidação de
património arquitetónico e de memórias de um povo tão antigo. É urgente
intervir!
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