quinta-feira, 10 de abril de 2014

ABRINDO O MAR, ABRINDO A PORTA



Um texto de Pessach


Haggadah de Mainz, 1726

O Faraó e o seu exército afogando-se no Mar Vermelho (Êxodo 14:28)



     Pessach é um período do calendário judaico caracterizado pelo Êxodo do Egipto, rumo à liberdade. Segundo a interpretação de *PaRDeS, no simbolismo judaico há dois gestos especificamente ligados a este período, que sendo semelhantes, são também paralelos em sentido e intensidade – ABRINDO O MAR/ABRINDO A PORTA.

     Quando na fuga do Egipto o Povo de Israel se viu encurralado, entre o poderoso exército do Faraó e o Mar Vermelho, subitamente as suas águas abriram-se, proporcionando-lhe a saída com destino à Lei e à Terra Prometida.

     No Seder de Pessach, na ritualização de todos os acontecimentos ocorridos nesta milagrosa saída, abrimos as nossas portas a uma figura imaginária. Tão forte é este momento associado ao futuro messiânico na nossa memória colectiva, que nem sequer paramos para pensar na identidade desta figura - “o que está lá fora”. 



A Páscoa dos Judeus, James Tissot (1836-1902)


   Abrir as portas em Pessach está relacionado com um dos sentidos mais importantes desta celebração – o de partilhar com os outros a alegria da refeição. Todo aquele que necessita (de corpo e de alma), que entre e que coma. É o que dizemos ao partir a matzah, a que chamamos o “pão da aflição e da pobreza”, já por nós experimentado. Abrir as portas e esperar (o que o próprio folclore judaico criou como paradigma sobre “o que está lá fora”), que o profeta Elias, o Eliyahu HaNavi, disfarçado de mendigo bata à porta. Incrível inversão em que o mais necessitado é a chave para a salvação dos que estão dentro. Incrível inversão, em que os de dentro percebem impossível a Redenção sem se abrir a porta, tornando também os de dentro “necessitados”, quando vistos pelo outro lado da porta. 



Rembrandt, Homem velho de barbas, 1631


   Paralelo porque por detrás da porta que abrimos está talvez um indivíduo encurralado, sem saída, a ponto de se afogar em angústia, mas a quem a luz que progressivamente se revela ao abrir da porta, é feito mar que se permite atravessar.

     Tal qual molhado ficou seco num gesto de carinho, tal qual fora ficou dentro num gesto de afecto, assim é a Redenção. ABRIR O MAR/ABRIR A PORTA são gestos similares em que imitamos a Divindade em busca de um encontro – como D’us abriu o mar, assim nós abrimos a porta. 



Quando as águas se dividiram, James Tissot (1836-1902)


     Nós que já estivemos naquela situação, olhemos através da porta em busca do que está fora mas que é dentro, em busca dos exilados fora do acampamento – dos pobres, dos doentes, dos deficientes, dos perseguidos, dos que do outro lado, ao abrir-se a porta, tornando-se visíveis os nossos rostos em volta da mesa, se revelam como sendo nós mesmos. Liberdade que só é possível quando os de dentro relembram a estranha visão através do outro lado da porta.


Adaptado do texto “Abrindo o Mar, Abrindo a Porta”, do Rabino Nilton Bonder


 *A tipologia PaRDeS descreve quatro abordagens diferentes da exegese bíblica no Judaísmo rabínico:
  • Psaht – o “simples significado” de um versículo ou de uma passagem;
  • Remez – “sinais” de um significado mais profundo e não apenas o seu sentido literal;
  • Drash – interpretação; descobrir o significado através do midrash, por comparação de palavras, de formas e de ocorrências semelhantes noutros locais;
  • Sod – o “segredo” ou o significado místico de uma passagem, determinado através de inspiração ou revelação. 


Este artigo é mais uma oferta da nossa,

Sónia Craveiro.



Muito obrigada
Beijinhos



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