Retrato de Gracia Nasi pintado por
Cynthia Von Buhler
Uma
abundante literatura permite-nos trazer de volta, envolta em seu mistério, esta
Senhora do séc. XVI português.
Nascida em Lisboa, no ano de 1510, veio a morrer em
Istambul em 1569.
Beatriz de Luna, nome cristão de Grácia Nasi, pertence a
uma família originária de Castela que, após o decreto de Expulsão dos Judeus de
Espanha em 1492[1], procurou, em Portugal, abrigo para a prática da sua
religião, das suas tradições e festas. Abrigo para viver!
No ano de 1510, data do seu nascimento, já não existem
Judeus em Portugal. Chamam-nos agora de Cristãos-Novos. Convertidos no seu
coração e na sua vontade, ou feitos Cristãos por aqueles de quem é o poder.
Assim se distinguindo daqueles que sempre o haviam sido, os Cristãos-Velhos. Só
muito mais tarde, o Marquês de Pombal virá a abolir esta distinção[2]. Da
conversão forçada, fala Garcia Resende:
" Os Judeus vi cá tornados
todos num tempo cristãos..." [3]
Com o nome de Beatriz de Luna, Grácia Nasi casa com
Francisco Mendes, natural de Sória, também em Castela, filho da ilustre família
Benveniste, chegada a Portugal em 1492. Semeah Benveniste é o seu nome
hebraico. Em Lisboa, conhecem-no por Francisco Mendes "o grande
marrano". O poderoso comerciante de pedras preciosas e de especiarias. O
banqueiro. "Assim à data do seu casamento, Francisco e seu irmão Diogo,
que entretanto se estabelecera em Antuérpia, já haviam construído um império
que detinha a primazia do comércio em toda a Europa" [4]
Casada aos 18 anos, viúva aos 25, Grácia vê-se pela morte
do marido (1535) investida na função de gestora e responsável pelo mundo dos
negócios e da finança que compartilha com o seu cunhado, Diogo Mendes,
estabelecido em Antuérpia em 1512.
Imagens do mundo
da Dona Gracia Nasi. De cima: seu médico, Amatus Lusitanus; sua residência em
Ferrara, medalha retrato de sua sobrinha; o novo vinho branco Dona Gracia; uma
carta anunciando a sua morte (cortesia do Univesity of Zagreb); mapa de sua
viagem; sentado com o sobrinho em seu ombro, em Veneza.
Sem medo, Grácia Mendes organiza os seus negócios e a sua
fuga.
A Inquisição tinha sido introduzida em Portugal depois da
morte do seu marido, em 1536, pela vontade de D. João III e decisão do Vaticano[2].
Num barco inglês fretado pelo seu cunhado, parte em 1537,
deixando Lisboa, levando consigo sua filha Reyna, sua irmã Brianda e dois
sobrinhos Bernardo e João Micas, filhos do seu irmão Agostinho Micas, médico da
corte, já falecido.
Rumam e desembarcam em Inglaterra onde Grácia se inteira da
rede de fuga dos Marranos e onde reafirma a vontade de continuar a obra de
proteção iniciada por seu marido. Chega a Antuérpia em 1537.
De parceria com seu cunhado, dirige os negócios e as
finanças da sua Casa Comercial e Bancária.
A família parece enraizar-se na Flandres. Brianda Nasi, a
irmã de Grácia, casa com Diogo Mendes na catedral de Notre Dame, em Antuérpia,
seguindo a tradição – tão frequente entre os Judeus – dos casamentos
endogâmicos. Assim preservam a religião, os ritos, a família e o património.
Mas o perigo tece uma teia à volta da família
Nasi-Benveniste. À volta da Casa Mendes.
O dote de Reyna, filha de Grácia e de Francisco, faz
fervilhar a ambição de muitos que sendo poderosos não são Judeus. A partida de
Antuérpia urge. Parte em 1545. Veneza é a cidade escolhida. Lá, onde os Judeus
podem assumir a sua pertença religiosa, Grácia prefere continuar a assumir o
cristianismo de fachada, guardando o Shabbat dentro das paredes de sua casa.
Não habita o ghetto mas escolhe o centro da cidade, o Rialto, zona de
comerciantes, viagens e negócios onde fácil é acolher e esconder os Marranos.
Surgem desentendimentos familiares com sua irmã, originados
pela gestão do grande empório comercial que possuem, e que, agora por vontade
expressa em testamento de Diogo Mendes, Grácia gere sozinha. Numa tentativa de
afastar a irmã, Brianda acusa-a de judaizar e Grácia é presa.
Selo comemorativo
Destaca-se então como figura da maior importância dentro da
família, João Micas, que se afirma como verdadeiro sucessor de Diogo Mendes,
após a morte deste, em 1543, na gestão da Casa Mendes, como braço direito da
tia.
É graças às suas estratégias que as duas irmãs são
libertadas das masmorras venezianas. Brianda, a denunciante, tinha sido ela
própria acusada do mesmo crime por um dos seus agentes que declarou que “também
ela judaizava em segredo"[6] e encarcerada.
Uma vez mais Grácia parte. Um outro caminho se abre...
Ferrara.
Já em 1538, um ano após a sua chegada a Antuérpia, Hércules
II, Duque de Este, lhe havia feito o convite para viver nos seus domínios.
Convite agora aceite, no ano de 1549.
Importante nos negócios, na finança, na ajuda solidária, é
agora em Ferrara que Grácia Nasi se torna uma figura de vulto no mecenato.
O afeto que a une a Benvenida Abravanel, filha de Samuel
Abravanel e sobrinha de Isaac Abravanel, não terá sido estranho a esta nova
dimensão da sua vida.
Empenha-se na publicação de obras entre as quais avultam a
“Bíblia de Ferrara” e “Consolação às Tribulações de Israel”.
Publicada em Ferrara, em 1533, por dois judeus sefarditas
da primeira geração de convertidos – o “espanhol” Jerónimo de Vargas e o
português Duarte Pinel, respetivamente Yob Tob Atias e Abraão Usque – a famosa
Bíblia de Ferrara apresenta duas versões: uma destinada aos Cristãos, outra aos
Judeus. A versão hebraica traz a data de 14 de Adar de 1513. É dedicada "
À muito ilustríssima Dama, Dona Grácia Nasi", pelos seus autores.
Bíblia de Ferrara
Foto de Eva Amado
Bacelar
A outra publicação tem a assinatura de Samuel Usque: a
" Consolação às Tribulações de Israel", impressa na mesma cidade, em
1533, é também ela dedicada à " ilustríssima Senhora Dona Grácia Nas,
coração da nação portuguesa...para vos testemunhar a minha gratidão pelos
numerosos favores que recebi da vossa mão." Mas não é ainda em Ferrara que
param os caminhos desta Senhora do Renascimento. Portuguesa e Judia.
Consolação às Tribulações de Israel
Istambul...
Talvez Francisco Mendes com o aproximar dos tempos que em
1536 trouxeram a Inquisição para Portugal, tivesse concebido o plano de partir
para essa cidade, capital do Império Otomano.
O sultão Bejazet II (1492-1512) convidava todos os Judeus
Sefarditas [7] a estabelecerem--se em suas terras. São lhe atribuídas as palavras:
“Pode considerar-se sábio e inteligente um tal soberano D. Fernando que
empobrece o seu país e enriquece o meu?"
O sultão
Bejazet II
Parte em 1522. Deixa atrás de si a Europa dos negócios, da
alta finança que tão bem conhece. É recebida em Istambul por tantos a quem o
seu dinheiro, aliado ao poder de iniciativa, ao sentido de responsabilidade, à
firmeza de decisão, tinham permitido deixar o país que para eles não tinha
lugar.
Em Istanbul volta declaradamente ao Judaísmo. Retoma,
publicamente, o seu nome. Grácia. Grácia Nasi. Aí vive 16 anos de 1553 a 1569,
data da sua morte. Anos, enfim, de ser e mostrar quem é.
Mais tarde, em 1554,
chegam a Istambul Bernardo e João Micas, agora Samuel e Joseph Nasi. Através
deste último, que rapidamente se torna figura proeminente do Império, amigo
pessoal de Solimão II, o Magnífico, e de seu sucessor Selim II, de quem recebe
o título de Duque de Naxos, a família conhece a cultura, o fausto, e também as
intrigas, da cidade e do Império.
Gravura de Gracia e Joseph Nasi
Novos casamentos ocorrem na família, dentro dos ritos
próprios do Judaísmo: Reyna casa com Joseph e Grácia a Jovem com Samuel.
Grácia Nasi morre em 1569 com 59 anos em Istambul. Com
Tiberíades no coração. Essa cidade onde Grácia e Joseph tinham sonhado um
espaço onde se pudessem fixar os Judeus que de outras terras tivessem sido
expulsos.
Tal ambição não veio a concretizar-se, destruindo à
esperança que os animava no ano de 1560, depois de haverem negociado e obtido
do sultão Solimão I a concessão dessa cidade santa da Galileia.
O sultão Solimão I
Grácia Nasi, a Senhora que nos convida a melhor a
estudarmos, para melhor a conhecermos a si e à sua época. A Mulher que suscita
em nós muitas perguntas. Poucos dados dela temos. Nascimento e morte. A viagem
entre 1510 e 1569 que foi a sua vida. Dos sentimentos da menina nascida em
Lisboa, da adolescente, da mulher, não sabemos muito. Conhecemos o seu grande
sentido da responsabilidade e da solidariedade. O seu incansável dinamismo. A
coragem de decisão. A firmeza.
Nas palavras de Samuel Usque, "era a mão estendida que
resgata os cansados. Alimenta os famintos. A fonte de coragem e do estímulo
para os pobres e enfraquecidos”.
Biblioteca Geral
relativa à mostra sobre Grácia Nasi 1510-1569
e outros judeus portugueses
Em cada um de nós, Grácia Nasi, escreve a sua própria vida.
Em cada leitura que dela fazemos. Em cada sala do seu museu, em Tiberíades, que
visitamos... Em cada vez que nela pensamos.
Homenagem a Dona
Grácia Nasi em Tiberíades
[1]
Decreto de Alhambra. Decreto régio promulgado pelos Reis Católicos, Isabel I de
Castela e Fernando II de Aragão, em 31 de Maio de 1492,em Alhambra, Granada.
[2] Lei
de 25 de Maio de 1773
[3]
Resende, Garcia, Miscelânea, 1554
[4]
Mucznik, Esther, Grácia Nasi, A Judia Portuguesa do século XVI que desafiou o
seu próprio destino, Esfera dos Livros,2010
[5]Bula Cum ad nihil magis, publicada em Évora
em 22 de Outubro de 1536.
[6]Birnbaum,
Marianna, A longa viagem de Grácia Mendes, Lisboa, Edições 70, 2005
[7]Judeus originários
da Península Ibérica.
Este artigo foi elaborado e uma cortesia de,
Dora Caeiro
A quem agradeço o carinho desta partilha. J
Bibliografia consultada:
AZEVEDO, J. Lúcio, História dos Cristãos Novos Portugueses, Lisboa, Clássica Editora,
3ª Edição, 1989.
BIRNBAUM, Marianna, A longa viagem de Gracia Mendes, Lisboa, Edições 70, 2005
BROOKS, André Aelion, The
Woman Who Defied Kings: the life and times of Doña Garcia Nasi. A Jewish leader during the Rennaissance,
St. Paul, Minnesota, Paragon House, 2002.
CLÉMENT, Catherine, A Senhora, Porto, Edições Asa, 1994.
Mercadores e Gente de Trato in Dicionário
Histórico dos Sefarditas Portugueses, Lisboa, Campo da Comunicação,2010
Dicionário
do Judaísmo Português, Lisboa, Editorial
Presença, 2009
FERNAND–HALFEN, Alice, Gracia
Mendesia-Nasi, Une Grande Dame Juive de
la Rennaissance, Paris 1929.
FERRI, Edgarda, Gracia Nasi, a Judia, Lisboa, Quetzal Editores, 2002
KAYSERLING, Mayer, História dos Judeus em Portugal, São Paulo, Editora Perspectiva S.
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MARCOCCI, Giuseppe, História
da Inquisição Portuguesa desde 1536-1821, Lisboa, A esfera dos Livros, 2013
MARTINS, Oliveira, História de Portugal (Tomo II), Lisboa, Livraria, Bertrand, 1882
MUCZNIK, Esther, Grácia Nasi, A Judia Portuguesa do séc. XVI que desafiou o seu próprio destino, Lisboa
, A Esfera dos Livros, 2010
PAMUK, Orhan, Istanbul, Memórias de Uma Cidade, Lisboa, Editorial Presença, 2008
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2005
REMÉDIOS, J. Mendes dos, Os Judeus de Portugal, Volumes I e II, Edição Fac-Simile, Lisboa, Alcalá 2005
RESENDE, Garcia de, Miscellnea, Évora, 1554
SARAIVA,
António José, Inquisição e Cristãos
Novos, Lisboa, Estampa, 1985.
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro, Judaísmo e Inquisição, Lisboa,
Editorial Presença, 1987
WILKE, Carsten L., História dos Judeus Portugueses, Lisboa, Edições 70, 2009
Imagens:
Muito obrigado por seu belíssimo artigo!
ResponderEliminarIncluí este link entre os que compartilhei em minha postagem sobre esta fascinante personagem histórica, esquecida pelos historiadores e agora devidamente homenageada pelos que lhe fazem jus.
Saudações do Brasil!
A propósito, eis aqui os links para as postagens, caro queira verificar como nelas foi citado seu trabalho:
http://englishineverything.blogspot.com.br/2017/03/a-fantastica-historia-de-dona-gracia.html
http://alternativearth.blogspot.com.br/2017/03/a-fantastica-historia-de-dona-gracia.html
adorei o trabalho, muito util e riqueza de detalhes!!! eu sou um Micas
ResponderEliminaradorei seu trabalho, riqueza de detalhes
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