sábado, 23 de agosto de 2014

Comunidades Marranas nas Beiras | Belmonte


Parte I
Fotografia de Frederic Brenner | Os Últimos Marranos 


O interesse pelo marranismo nasceu em Belmonte, onde sobreviveu uma comunidade cujos membros eram/são identificados como judeus.

Em 1972, fui encarregada pelo Ministério da Educação para proceder à abertura de uma escola oficial do Ciclo Preparatório nesta vila da Beira Baixa. Foi uma surpresa a linguagem que então ouvimos, porque a julgávamos desaparecida.

 “Há muitos judeus matriculados? Alugou uma casa a um judeu?”, eram frases cuja mensagem ultrapassava a mera interrogação. Não descodificávamos os matizes das significações, mas apercebíamo-nos do aviso/censura que as envolvia, quando mais tarde, não judeus afirmavam explicitamente: “Cuidado! Quando os conhecer, verá que não prestam para nada!”. Estranhámos ainda mais ao ouvir comentar a qualificados democratas da vila:  “Não tenho nada contra eles, mas não gosto deles!”. Era uma opinião alargada, partilhada por elementos exteriores à comunidade, que aos judeus belmontenses aconselhavam, de acordo com o contexto, ora a assunção da diferença, ora a assimilação. Ouvíamos:  Sejam judeus verdadeiros!  Deixem de ser judeus!


Quem eram estes judeus?

Fotografia de Frederic Brenner



Na Escola, não notávamos quaisquer atitudes que os diferenciassem da maioria dos alunos. Reconhecíamo-los pelos sobrenomes que nos haviam indicado: Nunes, Morão, Caetano, Henriques, Rodrigues, Vaz, Diogo... cruzavam-se em combinações múltiplas, confirmando uma opção duradoura pela endogamia. Mas eram sempre elementos da sociedade envolvente que se pronunciavam. As pessoas a quem identificavam como judias fechavam-se ou, inteligente e ambiguamente, respondiam: “Somos pessoas como as outras”.



Porém, dia a dia, íamos registando indícios reveladores da diferença. Por exemplo: decidimos pagar o aluguer da casa, “Sexta-feira, depois do pôr-do-sol”. A proprietária, judia, como dissemos, recusou receber o dinheiro, apesar da insistência. A limpeza meticulosa de Sabat era outro sinal; depois, aqui e ali, começámos a ouvi-los lamentar-se sobre discriminações de que eram alvo, a verificá-las(1), mas a ocultação e o secretismo eram a prática corrente. Casa na Judiaria de Belmonte. Foto: Um Jeito Manso


Só após Abril de 1974, foi possível estabelecer uma relação mais próxima com elementos da comunidade. O convívio que tínhamos mantido até então, favorecera a ideia de que havia uma cumplicidade de crenças. Argumentava o proprietário da casa onde vivíamos: “A Senhora ‘acareou’ o meu filho, quando íamos para os mercados. Eu sempre disse à minha: a Senhora é das nossas! É da família!”. Pudemos, então, verificar que, cinco séculos após a criação da Inquisição, em Belmonte sobreviviam festas, rituais, orações preservadas por uma comunidade herdeira de uma religião que vingou apesar das perseguições, do potro, dos tratos de polé, dos autos da fé.



Lemos em “Libération”, (1990): “Mais à Belmonte, peut-on expliquer pourquoi le marranisme s'est maintenu?”; respondeu Frédéric Brenner, autor de “Les Marranes”: “Je n'ai pas cessé de me poser la question, ça tient du miracle”.(2)
E outras razões, por certo.

Fotografia de Frederic Brenner | Os Últimos Marranos 



Judeus em Belmonte


Centro de Belmonte  | Centro do Cripto-judaísmo




O documento mais antigo que conhecemos é uma lápide com uma inscrição(3) em hebraico, datada de 1297 (segundo leitura de Samuel Schwarz), e que pertencia à Sinagoga. 



Portanto, antes da expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, vivia em Belmonte uma comunidade organizada. É plausível que o número de elementos tenha aumentado com a decisão dos Reis Católicos. Em Dezembro de 1496, D. Manuel I publica o Édito de Expulsão dos Judeus; em 1497, o monarca obriga ao baptismo forçado, à conversão os que permaneceram, voluntária ou involuntariamente, em Portugal. Serão os cristãos-novos, os marranos.



Belmonte | Fotografia de Frederic Brenner 



Para Elias Lipiner, trata-se de uma designação “(...) dada aos judeus que foram tornados cristãos à força, mas continuavam a seguir ocultamente os ritos da lei velha”(4). O vocábulo teria raiz hebraica ou aramaica: mar-anús, ou seja, baptizado à força. Afeiçoado à fonologia das línguas ibéricas tornar-se-ia marrano. Foi, porém, a conotação pejorativa, registada por Frei Francisco de Torrejoncillo, que fez escola. Marrano “(...) que en Hespanhol quer dizer, porcos, e assim por infâmia lhe davam este nome com grande propriedade: porque entre os marranos, ou marroens, quando grunhia e se queixa algum deles, todos os mais acodem a seu grunhido, como assim são os judeus.”(5). Era este o significado que ainda sobrevivia em Belmonte, associado ao foetur judaicus e a outros estereótipos. Mantinham-se superando, afinal, o tempo marcado pela Inquisição.


Ser marrano

A instalação do tribunal da Inquisição, em Portugal, obrigou todos os judeus ao baptismo; também o casamento, os rituais funerários, os cultos no exterior dos lares seguiam a doutrina católica. A herança cultural judaica era transmitida oralmente, de geração em geração; mas aprendiam, como forma de sobrevivência(6), os rudimentos do catolicismo. A“contaminação” de fés era inevitável e com o decorrer dos tempos, a maioria dos que permaneceram no país adopta práticas sincréticas. Todavia, os anussim (convertidos à força) diziam-se e sentiam-se voluntariamente judeus.... e a vontade individual é uma dimensão que participa na construção da identidade. Não responderam de forma homogénea ao contexto inquisitorial: a) uns aderiram convictamente à nova fé; b) outros exilaram-se para continuar a praticar a lei de Moisés;  c) houve quem se tornasse céptico, desiludido; d) muitos continuaram a judaizar clandestinamente, com graus de adesão e de conhecimento diversos, mostrando-se católicos no exterior. 



São os marranos que perpetuaram tradições sagradas, mitos e memórias comuns, produziram e reproduziram laços identitários.


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No que respeita a Belmonte, tem-se repetido que os judeus que residem na vila ali se fixaram, vindos de Marrocos, após a decisão pombalina. A afirmação mais recente que envolve este domínio, encontrámo-la no livro “Beira Baixa”: “Nos finais do século XVIII estabeleceu-se em Belmonte uma grande colónia de judeus. Ocuparam um bairro designado por Marrocos que se transformou em judiaria fechada”(9). Trata-se duma legenda obviamente sucinta que sugere mais do que garante. Mas será possível falar duma “judiaria fechada” no século XVIII? A “grande colónia de judeus” estabeleceu-se em Belmonte porquê? Vinda de onde? Se eram judeus exilados que regressavam, quando e por que perderam sobrenomes hebraicos?


Museu  Judaico de Belmonte  


Na verdade, sabemos que encontrámos dezenas de processos no A.N.T.T.  (Arquivo Nacional da Torre de Tombo) e que nos séculos XVI, XVII e XVIII, naturais e residentes do concelho de Belmonte conheceram os cárceres da Inquisição. O último processo que recolhemos é de “Gracia Nunes, Gracia de Matos, cristã-nova, casada com Diogo Mendes Loução, lavrador, natural de Maçal do Chão, termo da vila de Celorico, e moradora na de Belmonte, Bispado da Guarda; é condenada a “cárcere e hábito a arbítrio”(10). O processo tem a data de 1750.


Museu Judaico de Belmonte  


Verificamos também que a designação do Bairro, Marrocos(11), (cuja toponímia teria origem na ocupação de judeus regressados do país com o mesmo nome) é anterior às leis pombalinas.

Nos Livros de Décima, Contribuição Predial Rústica, Contribuição Predial Urbana, de Agências, nos registos de nascimentos, casamentos e óbitos, bem como nos Livros de Actas da Câmara Municipal, figuram nomes de ascendentes de membros que integram a comunidade actual.

Eram judeus secretos, transmitiram uma tradição que se habituaram a ocultar, alternando períodos de maior clandestinidade, com outros de maior abertura.


Museu Judaico de Belmonte  




É Samuel Schwarz que, em 1925, com a publicação do livro “Os cristãos novos em Portugal no séc. XX”, inicia a desocultação da existência dos judeus belmontenses, para o mundo. Vindo para o concelho, em 1917, para dirigir a exploração do couto mineiro da Gaia, um dos mais ricos jazigos de cassiterite da Europa, ouve qualificar Belmonte como “terra de judeus”. Afirma que “Só depois de muitos meses de continuados esforços e ainda graças a um concurso de curiosíssimas circunstâncias, conseguimos ser admitidos no seu grémio e assistir e tomar parte nas suas orações e cerimónias judaicas”(12)

O encontro ocasional, em Lisboa, com o belmontense Baltazar Pereira de Sousa, homem de negócios, que ouvira apelidar de judeu e que levou à Sinagoga de Lisboa, foi a chave que abriu todas as portas. Regressado à vila, submete-se ainda a um teste: pedem-lhe que reze uma oração. Fê-lo em hebraico, mas entre os vocábulos que pronuncia, identificam Adonai. Estava aceite: “E um dos nossos”.

O tempo era favorável. A implantação da I República permitia confiança. Nos Livros de Actas da Câmara Municipal é notória a influência de membros da comunidade durante este período. José Henriques Pereira de Sousa e José Caetano Vaz, por alvará do Governador Civil de Castelo Branco de 13 de Outubro de 1910(13), integram a Comissão Municipal Electiva, o primeiro como Presidente e o último como vereador do pelouro de Caria, a segunda povoação mais populosa do concelho. O trabalho que desenvolvem, surpreende se o confrontarmos com o de Executivos camarários anteriores e posteriores. A criação de escolas, as medidas sanitárias, as obras de remodelação e restauro de imóveis, a elaboração de planos para a construção de estradas... contrastam com a habitual gestão rotineira que Actas das sessões camarárias doutros períodos registam.


 O anticlericalismo, um dos traços da época, beneficiaria um grupo de pessoas que mantinha com a Igreja Católica uma relação de distanciamento. É neste clima que Samuel Schwarz trava conhecimento com a comunidade.

Foto tirada por Samuel Schwarz




Museu Judaico de Belmonte | Fotografia de Frederic Brenner



Notas de rodapé:

...a-las(1) Um dia, no café, ouvimos um não judeu dizer a uma criança que entrara: “O teu pai tem uma cauda assim!”. E no braço indicava o que decidira ser o seu comprimento; ... miracle(2) Sophie Darmaillacq, “Sur la piste des dernirers marranes”, Libération, Samedi 17, Dimanche 18, Novembre, 1990, p. 43; ...ao(3) Cf. Samuel Schwarz, Os cristãos novos em Portugal no século XX, Lisboa, Empresa Portuguesa de livros Lda, 1925, p. 9; ... velha(4) Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977, pp. 99 e 100; ... judeus.(5) Padre Frei Francisco de Torrejoncillo, Centinella contra os judeos, Editora Coimbra, 1730, p. 116, 117; ...encia(6) Durante as sessões inquisitoriais era avaliado o conhecimento que o cristão-novo possuía relativamente aos textos da “Avé Maria”, “Padre Nosso”, “Salvé Rainha”, “Credo”, “Mandamentos da Lei de Deus”, “Sacramentos”;
(…)

 ... fechada(9) José Mattoso, Suzanne Daveau, D. Belo, Portugal - o sabor da Terra, Beira Baixa, Lisboa, Círculo de Leitores, Pavilhão de Portugal/Expo 98, 1997, p. 371; ... arbítrio(10) António Joaquim Moreira, Colecção de listas impressas e manuscriptas dos autos da Fé públicos e particulares da Inquisição de Lisboa, B.N.L., Res. 863/66; ... Marrocos(11) Cf. Tombo novo da Comenda de Santa Maria de Belmonte, feito no anno de 1745 de que foi escrivão João Freire Corte Real da villa da Covilhã - Arquivo Municipal de Belmonte;  ... judaicas(12) Samuel Schwarz, op. cit., p. XVII;  ... 1910 (13) Cf. Livro de Actas da Câmara Municipal de Belmonte, 1908-1914, sessão de 15 de Outubro de 1910.


Trabalho de Maria Antonieta Garcia



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