A longa
luta para salvar a Sinagoga de Ponta Delgada
Entrevista
com José de Almeida Mello
Por Carolina Matos (*)
O historiador José de Almeida
Mello é o bibliotecário responsável pela Biblioteca Municipal de Ponta Delgada
e o adido cultural da Câmara Municipal de Ponta Delgada. Em 2003, a Comunidade
Israelita de Lisboa nomeou-o coordenador da Comissão para a Restauração da
Sinagoga dos Açores para supervisionar o projeto de renovação e conservação da
Sinagoga Sabar Hassamain de Ponta Delgada.
A Sinagoga Sahar Hassamain é a
única Sinagoga ainda existente no arquipélago e a mais velha das restantes
sinagogas de Portugal. Foi estabelecida por volta de 1820, por um grupo de
empresários judeus que migraram com suas famílias de Marrocos e se
estabeleceram na ilha de São Miguel, no início do século XIX.
Foto:
A
Sinagoga Sahar Hassamain em Ponta Delgada.
Nessa altura a ilha de São
Miguel chegou a acolher quatro sinagogas em Ponta Delgada e uma em Vila Franca
do Campo. Havia também um cemitério judeu na ilha e jazidas adicionais em São
Miguel, Terceira, Faial e na ilha Graciosa.
A Sinagoga Sabar Hassamain foi
consagrada por Abraão Bensaúde em 1836, e abandonada na década de 1950, após os
últimos membros da comunidade judaica residente terem deixado a ilha. O último
serviço religioso na Sinagoga teve lugar em 1966 com um grupo de soldados
judeus estacionados na Base Militar dos EUA nas Lajes, na ilha Terceira, onde
celebraram Yom Kippur.
Provisoriamente propriedade da
Comunidade Israelita de Lisboa, o edifício está agora no processo de transferir
a sua propriedade para a Câmara Municipal de Ponta Delgada para ser recuperado
e transformado num espaço público.
O projeto de recuperação é o
culminar de 30 anos de esforços para salvar a Sinagoga e preservar o legado
judaico nos Açores. Nos últimos 15 anos, a Comissão para a Restauração da
Sinagoga dos Açores tem trabalhado ativamente para avançar com o processo. A
iniciativa conta com o apoio da Câmara Municipal de Ponta Delgada, com a
comunidade local e a Comunidade Israelita de Lisboa, e nos Estados Unidos com a
comunidade açoriana imigrante e a Harvard University.
José de Almeida Mello, um
prolífico autor de variados livros e monografias, publicou Sahar Hassamain
Sinagoga de Ponta Delgada (2009) um livro que conta a história da Sinagoga e
fala da importância de preservar o legado judaico nos Açores.
Historiador José Almeida de
Mello
Nesta entrevista para o
Portuguese American Journal, Mello descreve o longo processo para salvar esse
legado e fala das pessoas que se envolveram no esforço para inscrever a
experiência judaica nos Açores, no contexto da história.
O que se sabe sobre a presença
judaica nos Açores?
Falta-nos um estudo exaustivo
relativamente à presença judaica nos Açores, mas sabemos que, com base em
várias referências, muitos açorianos têm antepassados judeus. Sabemos, é um fato,
que logo após os Açores terem sido descobertos pelos portugueses no século XV,
muitas famílias judaicas se fixaram nas ilhas entre os muitos perseguidos pela
Inquisição. Quantos eram e o que lhes terá acontecido precisa ser pesquisado.
Um dos principais objetivos do projeto de restauração da Sinagoga é pesquisar o
legado judaico nos Açores a partir do século XV, até à sua presença mais
recente nos séculos XIX e XX.
Uma comunidade judaica
estabeleceu-se nos Açores após 1818. Quem era essas pessoas?
Eram um grupo de industriais e
comerciantes de Marrocos de origem sefardita e que falavam árabe marroquino e
ladino. Os nomes de família, para citar apenas alguns, eram Bensaúde, Buzaglo,
Aflalo, Amiel, Absdid, Zafrany, Abecassis, Adrahi, Benayon, Matana, Semtob,
Bensliman e Delmar.
Como é que a comunidade judaica
foi recebida nos Açores?
Devo dizer que nem sempre foram
bem-vindos. Não com base na sua fé, mas porque eram comerciantes astutos que
concorriam com o comércio local. No que refere à religião, na altura da sua
fixação uma lei constitucional em Portugal proibia o estabelecimento de outras
denominações religiosas que não fosse a Igreja Católica. Isto pode explicar o
fato da Sinagoga de Ponta Delgada ter sido construída dentro de um edifício,
numa residência, escondida do público.
Foto: Interior da Sinagoga
Entretanto, entre 1820 e 1826,
Portugal viveu a Revolução Liberal que concedeu liberdade religiosa. Após o
liberalismo se estabelecer, a comunidade judaica em Portugal, os Açores
incluídos, obteve liberdade religiosa. O mesmo aconteceu com outras
denominações religiosas, como a Igreja Anglicana, que existiu retirada do
público mas que após o liberalismo gozou igualmente da liberdade religiosa.
A comunidade judaica expandiu e
prosperou nos Açores durante mais de um século, mas depois desapareceu. O que
aconteceu?
A comunidade judaica nos Açores
nos séculos XIX e XX era pequena. Porque as ilhas estão geograficamente
afastadas, progressivamente essas famílias judaicas optaram por se fixar em
Portugal Continental e outros países. Alguns casaram fora da religião,
converteram-se ao catolicismo e foram assimilados na sociedade. Atualmente,
apenas um indivíduo nos Açores, Jorge Delmar Soares, afirma professar a fé
judaica. No entanto, os descendentes dessas famílias ainda têm uma forte
ligação aos Açores. Um exemplo é a família Bensaúde, donos do Grupo Bensaúde
fundado em 1820, que ainda hoje é o maior grupo económico nos Açores e um dos
maiores grupos económicos em Portugal.
Qual é a importância do legado judaico?
A presença judaica faz parte da
nossa memória coletiva, tanto da comunidade judaica como da comunidade açoriana.
Apesar de serem um grupo pequeno, de cerca de 200 indivíduos, foram muito
ativos em várias ilhas onde estabeleceram as suas empresas, mantiveram as suas
tradições e praticaram a sua religião. Eles geraram também uma enorme riqueza e
deixaram um importante legado cultural. A Sinagoga, os documentos e artefactos
deixados para trás, juntamente com os cemitérios, são referências culturais
relevantes tanto para a história dos judeus como para as comunidades locais.
Quando foi que se envolveu
neste processo?
Em 2000, durante uma viagem a
New Bedford para visitar minha avó, fui contactado por Alfredo Alves de Fall
River. Não o conhecia e nunca tinha ouvido falar da Sinagoga de Ponta Delgada.
Tinha acabado de me formar pela Universidade dos Açores, com uma licenciatura
em História, e estava à procura do meu primeiro emprego. Em 1980, Alfredo Alves
foi co-fundador do primeiro grupo formado nos Estados Unidos para se recuperar
da Sinagoga. Ele expressou-me a sua frustração e a preocupação com o estado de
abandono da Sinagoga e pediu-me para me envolver. Eu disse-lhe que não estava
em posição de ajudar.
No entanto, duas semanas
depois, consegui o meu primeiro emprego como o adido cultural da Câmara
Municipal de Ponta Delgada. Uma das minhas primeiras iniciativas foi a visitar
o local onde fiquei chocado com o estado de decadência que encontrei e resolvi
tomar a iniciativa. Primeiro, entrei em contato com os meios de comunicação
locais para sensibilizar a opinião pública para a situação. A seguir, procurei
conseguir apoio financeiro para estabilizar o processo de decadência.
Graças à generosidade do Dr.
António Castro Freire, um membro da família Bensaúde, Christiane von Frefrau
Schurbein, uma cidadã alemã residente em Ponta Delgada, e do Grupo Marques, uma
empresa de construção local, o prédio recebeu um novo telhado, novas janelas,
portas e uma pintura exterior.
Por mais de 30 anos foram
feitas várias tentativas para salvar a Sinagoga e o legado judaico nos Açores.
Quem mais se envolveu neste esforço?
A primeira tentativa foi feita
em 1980, por um grupo formado em Fall River, Massachusetts. Em 1988, o grupo
criou a Azores Synagogue Restoration Committee
com o objectivo de angariar fundos para recuperação da Sinagoga, mas o seu objetivo nunca foi materializado.
Em 2003, depois da Comunidade Israelita de Lisboa se envolver no processo,
um novo grupo, o foi formado em Ponta Delgada. Fui nomeado o coordenador desse
comité, encarregado do projeto de recuperação da Sinagoga. Outros membros incluíam
Fátima Sequeira Dias, Jorge Delmar Soares, Isabel Albergaria, e António
Bensaúde Castro Freire.
O primeiro passo, da
Comissão para a Restauração da Sinagoga dos Açores foi iniciar a transferência da
propriedade da Comunidade Israelita de Lisboa, para a Câmara Municipal de Ponta
Delgada. Dai resultou que em 2009 a cidade ganhou uma concessão de 99 anos sobre o
prédio em troca de providenciar fundos para a sua renovação. Como parte do
esforço de recuperação, em 2009, publiquei o livro, Sahar Hassamain Sinagoga de
Ponta Delgada, disponível em inglês e português.
Em 2012, fui também co-fundador
da Associação Cultural Amigos da Sinagoga de Ponta Delgada com Jorge Delmar
Soares e Nuno Bettencourt. Cerca de 115 pessoas foram então convidadas a
aderir, a nível local, nacional e internacional, com o objetivo de assegurar
uma ampla base de apoio ao esforço de recuperação da Sinagoga. Também em 2012, a
organização irmã, Azorean-Jewish Heritage Foundation, foi criada em
Massachusetts, presidida por Gideon Gradman, o tesoureiro Donald Berube, a secretária Lisa Rosen e os diretores Paula Raposa, Michael J. Rodrigues, Robert
Waxler e Pedro Amaral. O objetivo é apoiar o projecto de recuperação por meio
da angariação de fundos nos Estados Unidos.
Por que demorou tanto tempo a
organizar o projeto de recuperação?
Durante muito tempo não era
claro quem eram os proprietários do prédio. Isto criou uma questão jurídica
combinada com falta de liderança e falta de vontade política. Somente após a
Comunidade Israelita de Lisboa ter assegurado o título da propriedade, foi
possível estabelecer uma parceria com a Câmara Municipal de Ponta Delgada.
Devo dizer que o impasse criou
um longo período de abandono ao qual o público não ficou indiferente. Entre
aqueles que manifestaram a sua preocupação e tomaram medidas esteve o
jornalista António Valdemar e a historiadora Fátima Sequeira Dias. Foram eles
que mantiveram o público informado e alertaram para a relevância histórica do
legado cultural judaico nos Açores e para a importância de preservar esse
legado.
Eu fui uma das pessoas que
foram alertadas. Cheguei a estar tão preocupado que decidi intervir por iniciativa
própria. Passei inúmeros dias, muitas horas, varrendo e limpando o pó e
recolhendo material deixado em caixotes, arcas e no lixo. Recolhi e guardei
dezenas de itens para serem estudados e catalogados.
Também organizei visitas
guiadas ao local com turistas, estudantes e pesquisadores. Em 2010, organizei
uma exposição na Biblioteca Municipal de Ponta Delgada onde foi exibida uma
variedade de itens encontrados no local. O objetivo foi de alertar o público
para a importância de salvar o nosso legado cultural judaico.
Pode descrever o local? O que é
que encontrou?
A Sinagoga está encoberta
dentro das paredes de um edifício situado na Rua do Brum 16, no centro de Ponta
Delgada. Por fora, o edifício parece-se muito com uma habitação típica de uma
família açoriana do século XIX. Mas no interior tinha múltiplas finalidades.
Servia de residência privada do rabino, funcionava como centro comunitário e
abrigava a Sinagoga. O centro comunitário oferecia aulas de arte, aulas de
hebraico e aulas de Torá. A Sinagoga ocupava uma grande área retangular, bem
iluminada por duas janelas voltadas a norte. Ali tinham lugar os serviços
religiosos, os rituais fúnebres, os casamentos e as circuncisões.
O Santuário é muito bonito, com
a Arca e pódio, e duas fileiras de cadeiras laterais. Foram encontradas duas
arcas cheias de uma mistura de manuscritos hebraicos, livros, roupas e objetos
pessoais. Infelizmente, alguns móveis e alguma madeira foram contaminados com
térmitas. A área também está infestada por ratos, aranhas, baratas e traças. A
pedido do Dr. Joshua Ruah, da Comunidade Israelita de Lisboa, alguns móveis e
artefactos religiosos foram removidos temporariamente; especificamente as
quatro Sefer Torá, dois vasos cerimoniais, a cadeira de circuncisão e dois
candelabros.
O seu livro, Sinagoga Sahar
Hassamain de Ponta Delgada, é um livro que conta toda esta história. Por que o
escreveu?
Escrevi o livro na altura em
que aqueles que se tinham envolvido se sentiam desanimados. O objetivo era
contar a história Sinagoga, ilustrar o estado de decadência do prédio e chamar
a atenção para o perigo iminente de perder o valioso legado cultura. O
lançamento do livro foi um SOS urgente e também um apelo para que se tomassem
medidas. Pessoalmente, estava prestes a desistir do projecto quando o evento
ocorreu a 13 de março de 2009, simbolicamente no Hotel Marina Atlântico,
propriedade do Grupo Bensaúde.
Numa reunião que tivemos
naquele dia, eu disse que estava pronto a devolver as chaves e sair do projeto
se não se tomassem medidas. Foi um ponto de viragem. Lembro-me do momento em
que se formou o consenso. Eram seis horas da tarde, quando todos concordarmos
que a Sinagoga seria salva. Foi um momento histórico, com todas as forças a
convergirem no esforço comum para avançar com o projeto.
Logo a seguir, teve lugar num
encontro entre a ex-presidente da Câmara, Berta Cabral, e José Carp, da
Comunidade Israelita de Lisboa. Um memorando de entendimento foi elaborado para
transferir a propriedade do edifício da Comunidade Israelita de Lisboa para a
Câmara Municipal de Ponta Delgada. Foi acordado que a Câmara iria liderar o
projeto de recuperação com o objetivo de transformar a Sinagoga num espaço
público. Desde então, temos feito muito progresso. Devo reiterar que o livro
foi publicado gratuitamente, pela Nova Gráfica de Ponta Delgada, e que as
receitas vão para o fundo de recuperação Sinagoga.
Pode descrever o projeto de
renovação?
O principal objetivo é
preservar o valor histórico da memória comum partilhada tanto pela comunidade
açoriana como pela comunidade judaica. O plano é recuperar o prédio, restaurar
o Santuário e criar um museu para preservar a herança cultural encontrada no
local. Um centro de interpretação do legado judaico nos Açores será criado
juntamente com uma exposição permanente, um arquivo e uma biblioteca incluindo
uma coleção particular doada por Patrícia Bensaúde. Este espaço irá fazer parte
do patrimônio cultural da Câmara Municipal de Ponta Delgada.
Como tem progredido o projeto
de renovação?
Os últimos inquilinos deixaram
o prédio na década de 1950. Em 2003, após mais de 50 anos de abandono, alguns
trabalhos de manutenção foram feitos para estabilizar o edifício. Atualmente
estamos a reunir os esforços das duas organizações irmãs formadas nos Açores e
nos Estados Unidos com instituições públicas e privadas de ambos os países.
Em parceria com a Câmara de
Ponta Delgada e a Comunidade Israelita de Lisboa, estamos a elaborar um plano
de recuperação que inclui angariação de fundos, desenvolver o conceito do
museu, catalogar o inventário e reconstruir. O processo já começou e está a
progredir bem. A angariação de fundos está neste momento a crescer. O arquiteto
açoriano, Igor França, é o responsável pelos detalhes do projeto de renovação.
Através do esforço do Senador de Massachusetts, Michael Rodrigues,
especialistas do Centro de Estudos Judaicos, da Harvard University, já se
comprometeram a avaliar, identificar e catalogar o inventário.
Exposição na Biblioteca Municipal de
Ponta Delgada
Quando é que o projeto fica
concluído?
Esperemos que, se tudo correr
conforme o planeado, o projeto seja concluído até o final de 2014 ou no início
de 2015. Será uma ocasião especial, um dia de glória para todos os amigos da
Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada. Será um momento memorável na nossa
história comum, honrar e celebrar a herança cultural judaica nos Açores.
Quem deve ser contactado para
questões relacionadas com donativos on-line?
Para obter informações sobre
como contribuir com donativos para a restauração da Sinagoga Sahar Hassamain
podem contactar-me diretamente, josemello@lmpdelgada.pt, ou entrando em contato
com Pedro Amaral, pedro.amaral @ masenate.gov, através do escritório do Senador
Massachusetts Michael Rodrigues. Tanto Pedro Amaral como o Senador Michael
Rodrigues são membros da Azorean-Jewish Heritage Foundation, e dos Amigos da
Sinagoga de Ponta Delgada.
Será que a Sinagoga Sahar
Hassamain Sinagoga de Ponta Delgada vai fazer parte do recém-criado projeto Sefarad Route dedicado a revitalizar os
locais históricos judaicos em Portugal?
O projeto Sefarad Route foi lançado em Portugal em parceria com a Espanha e
um grupo com sede na Noruega com a missão de atrair turistas da diáspora
judaica interessados em visitar locais históricos judaicos em Portugal. Com o
apoio dos nossos parceiros, a Comunidade Israelita de Lisboa, esperamos poder
incluir Ponta Delgada na rede de cidades com presença judaica em Portugal.
(*) Carolina Matos é a
fundadora e diretora do Portuguese American
Journal on-line. De 1985 a 1995
foi diretora do mesmo jornal em edição impressa. De 1995 a 2010, foi consultora
da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Carolina Matos detém
uma Licenciatura e um Mestrado em Inglês e Educação pela Brown University (EUA)
e um doutoramento em Educação pela Lesley University (EUA).
Ver restantes fotografias no site da fonte deste artigo, que
foram gentileza da
Biblioteca Municipal de Ponta Delgada
Este artigo teve a autorização de Carolina Matos
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