Momento com Cecília Meireles e Fernanda de Castro
Alguns Poemas e um pouco de Mozart
Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901-Rio de Janeiro, 1964)
Cecília Meireles foi uma poetisa, professora, jornalista e pintora brasileira. Cecília conviveu desde muito cedo com a morte, sendo a única sobrevivente dos quatro filhos de Carlos Alberto de Carvalho Meireles e de Matilde Benevides Meireles. O pai viria a morrer, tinha Cecília três meses, e ainda não tinha completado três anos de idade quando perdeu a mãe. A partir de então ficaria a cargo da avó materna, Jacinta Garcia Benevides, uma senhora açoriana da ilha de São Miguel.
Cecília escreveria mais tarde: "Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. (...) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. (...)”
Cecília Meireles, por Arpad Szènes
Em 1939 Cecília Meireles perde o marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias. Mais uma vez a morte marca a sua vida, e esse sentimento de transitoriedade de que a poetisa fala, reflete-se nos poemas que escreve, como em “Motivo”.
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,/não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias/no vento.
Se desmorono ou se edifico,/se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico/ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo./tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo: — mais nada.
in Viagem (1939)
A musicalidade deste poema transporta-nos à poesia da música de Mozart. Proponho então que ouçamos, deste compositor, o sublime II Andamento – Andante - do Concerto nº 21, para piano e orquestra.
O Barco Desaparecido, Souza Pinto (Açores, 1856-Bretanha, 1939)
No poema “Mar Absoluto”, Cecília Meireles expressa as suas raízes açorianas, certamente cultivadas pela avó micaelense que a criou.
Mar Absoluto
(excerto)
Foi desde sempre o mar,/e multidões passadas me empurravam,
como o barco esquecido.
Agora recordo que falavam/da revolta dos ventos,
de linhos , de cordas, de ferros,/de sereias dadas à costa.
E o rosto dos meus avós estava caído/pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,/e pelos mares do Norte, duros de gelo.
Então, é comigo que falam,/sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,/tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.
E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes rezas,/campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais/com peixes mensageiros/e cantos náuticos.
(…)
Retrato de Fernanda de Castro, 1922, Tarsila do Amaral
Depois da morte de Cecília Meireles, a poetisa portuguesa Fernanda de Castro (1900-1994) dedica-lhe o poema que se segue:
Quem pudera, Cecília!
Tenho fome de campo e de verdura,/De terra bem lavrada,
E sede, muita sede de água pura.
Quero pegar no cabo de uma enxada,/Quero cheirar os troncos e as raízes,
Pisar descalça, a terra ainda molhada,/Ver, nas noites, o rasto das perdizes.
Já Cecília Meireles o dizia,/Com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”/E ria, ria,
Rasgando as mãos nas silvas,/Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.
Tinhas razão Cecília./Em Portugal, as estações são festas,
São festas de família,/Enfiadas, colares de alegrias;
Na Primavera as flores;/Os frutos no Verão, e as romarias;
No Outono o vinho novo e o ritual/Profano das vindimas;
No Inverno,/A mística alegria do Natal,
As portas bem fechadas,/A lenha a crepitar/E as rabanadas.
Quem pudera, Cecília, quem pudera,
Mandar-te para lá, para onde estás,
Um raminho da nossa Primavera.
Fernanda de Castro
Fernanda de Castro (Lisboa, 1900-Lisboa, 1994)
Fernanda de Castro, para além de poetisa, foi romancista, dramaturga e tradutora. Fernando Assis Pacheco, em edição do suplemento “O Jornal”, nº683 (1988), disse dela: “Imobilizada pela doença, Fernanda de Castro cultiva em alto grau a arte de conviver, desfiando histórias atrás de histórias que são uma imagem viva do século. O pai ensinou-lhe a fazer nós de marinheiro, mas a Maria Rapaz, desengonçada e senhora do seu nariz, acabou por casar (com António Ferro que teve nas mãos o Marketing do antigo regime) e correr mundo, fulminando legiões de admiradores – Pessoa entre eles, ao que se diz – com uns olhos belíssimos e uma verve inigualável. (…)”
Será agora altura de voltarmos a Mozart, com o III Andamento – Finale - do Concerto nº 21, para piano e orquestra.
Mozart Piano Concerto no.21, Finale
Depois do brilhantismo deste Finale de Mozart, regressamos a Fernanda de Castro, com o poema “Alegria”.
Figura em Azul, Tarsila do Amaral (Capivari, 1886-São Paulo, 1973)
Alegria
De passadas tristezas, desenganos/amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,/de pequenas traições/que achei no caminho…
de cada injusto mal, de cada espinho,
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura…
De cada crueldade/que pôs de luto a minha mocidade…
De cada injusta pena/que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte…
De cada morte/que anda a viver comigo, a minha vida,
De cada cicatriz, eu fiz/nem tristeza, nem dor, nem nostalgia/mas heroica alegria.
Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal/pode vencer.
Doido prazer/de respirar!
Volúpia de encontrar/a terra honesta sob os pés descalços.
Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,/de respirar
honestamente e sem caprichos,/como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar/frutos e de cheirar rosas.
Alegria brutal e primitiva/de estar viva,
feliz ou infeliz/mas bem presa à raiz.
Volúpia de sentir a vida na minha mão,/a côdea do pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte/é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir/o tédio,
Esse estranho cilício,/e de entregar-me à vida como a/um vício.
Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!
in “D’Aquém e D’Além Alma” (1935)
Para terminar, propomos a audição deste belíssimo poema na voz consagrada declamadora espanhola Carmen Feito Maeso.
Este belíssimo
artigo foi elaborado por
Sónia Craveiro
A quem desde já
agradeço,
Muito obrigada
Beijinhos
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