O
GRANDE PERDÃO
Um dia por ano, o homem esforça-se por
servir a D'us, não como homem, mas como se fosse um anjo. Os anjos não comem
nem bebem, e a sua única ocupação quotidiana é celebrar a Deus e viver na Sua
presença. É assim que no Yom Kippur
(o Dia da Expiação), o Judeu não come nem bebe, seja o que for; observa o mais
rigoroso jejum e passa todas as horas de vigília em oração. É nesse dia, quando
se encerra os Dez Dias de Arrependimento, que é finalmente determinado o julgamento
de cada um em vista do novo ano. Nos antigos tribunais de justiça dos Judeus
procedia-se legalmente desta forma: o acusado estava sentado no seu banco em
atitude de arrependimento. Esta atitude deve ser a de todos os Judeus no
decorrer do mais solene dos dias. Mas qualquer que seja esta gravidade, mesmo
no Yom Kippur, o Judeu não perde o
sentimento de que pertence à família de D'us.
Duas
pequenas histórias de Yom Kippur
Um dia, o rabino Elimelek de
Lisensk enviou os seus discípulos, na madrugada do Dia da Expiação, para
observarem o comportamento de um certo alfaiate. «Vós aprendereis dele –
disse-lhes – aquilo que um homem deve fazer neste dia santo.» Por uma janela
viram o alfaiate tirar de uma prateleira um livro em que tinha escrito todos os
pecados que tinha cometido ao longo do ano. De livro na mão, o alfaiate
dirigiu-se a D'us: «Hoje, neste dia do perdão para todo o Israel, chegou para
nós a hora de Tu, meu D'us, e eu fazermos contas. Eis a lista dos meus pecados;
mas há outro livro onde registei todos os pecados que Tu também cometeste: os
desgostos, a tristeza e o sofrimento que me causaste, a mim e à minha família.
Senhor do Universo, se contarmos exatamente os totais, Tu estás mais devedor
para comigo do que eu para Contigo! Mas eis a madrugada do Dia da Expiação, em
que cada qual tem o dever de fazer as pazes com o seu vizinho. Também eu Te
perdoo os Teus pecados se Tu estás disposto a perdoar os meus.» A seguir, o
alfaiate encheu um copo de vinho, pronunciou sobre ele uma bênção e exclamou: «L’Chaim (vida feliz), Senhor do Mundo!
Que a paz e a alegria reinem entre nós, porque nós nos perdoámos um ao outro e
os nossos pecados, é como se nunca tivessem existido.»
Os discípulos regressaram para junto do rabino Elimelek, contaram-lhe
tudo quanto tinham visto e ouvido, e mostraram indignação pela impertinência
das palavras do alfaiate para com D'us. O mestre respondeu-lhes que o próprio
D'us, com toda a sua corte, ouvira o que o alfaiate dissera, e que essas
palavras tinham provocado muita alegria nas esferas celestes.
“D'us
é um capítulo muito especial do meu judaísmo. Sei que Ele disse: «Não terás
outro D'us a não ser Eu» ou «Não invocarás o nome de D'us em vão». O D'us em
que creio descobri-O pela primeira vez quando era menino, numa sinagoga
ortodoxa em Jerusalém. É uma história que contei mil vezes porque é fundamental
na minha vida.
Estava acompanhado por um rabino francês
amigo do meu pai. Vi logo muitos homens e rapazes que discutiam em hebraico, ou
talvez em yiddish, o significado de coisas escritas em livros grandes e
poeirentos, apoiados a uma mesa de madeira escura. De repente, no altar que
estava no meio da sinagoga, apercebi-me que havia um homem de pequena estatura,
de meia-idade, com um chapéu de abas largas debruadas a pele. Vestia um cafetã
e, elevando os braços ao céu, saltando, gritava e imprecava em hebraico.
Assustado com aquela cena, dirigi-me ao rabino que me acompanhava e
perguntei-lhe:
- «Mas o que é que está a fazer
aquele homem?»
- «Não vês?», respondeu-me o
rabino.
- «Sim, salta e grita.», disse
eu.
- «Claro, está zangado com
D'us.
Fiquei atónito, pensando naquele homem
que, diante de todos e na indiferença geral, imprecava por algum agravo sofrido
que ele atribuía a D'us, o qual, em vez de o defender, o abandonara ao seu
destino miserável. Aquela relação direta com D'us marcou-me para sempre.
Muitos anos depois, perguntei
ao rabino Elio Toaff, como seria possível saber, depois do jejum do Kippur, se
tínhamos sido perdoados pelos nossos pecados. Toaff respondeu-me: «Sente-se
dentro de nós, percebe-se por si mesmo.»
Nós, judeus, dialogamos com alguém que
“não há”, que não dá sinais, que não responde, a quem nos dirigimos com orações
que, na maioria dos casos, não percebemos, e todavia somos inabaláveis na nossa
fé Nele. Até os judeus ateus falam com D'us e jejuam em Kippur. D'us é D'us e
isso não se discute.”
Este
artigo foi oferecido pela minha amiga:
Sónia
Craveiro
Muito obrigada
Beijinhos
Fontes:
in
JUDAÍSMO, O Grande Perdão – Yom Kippur,
Arthur Hertzberg, Editorial Verbo
in
Mitzvah, Alain Elkann, Cavalo de
Ferro, Editores, Lda.
Imagens:
Maurycy Gottlieb, Judeus Rezando na
Sinagoga em Yom Kippur, 1878; Hermann Struck, Velho Judeu de Jafa, 1903; Hermann Struck, Retrato de um judeu a ler.