O primeiro grande historiador da Inquisição em Portugal
Lisboa, Palácio da Inquisição, Rossio (reedificado pelo
arquitecto Carlos Mardel,
após o Terramoto de 1755). Gravura aguarelada do séc. XIX. Museu
da Cidade, Lisboa
«Liberal
convicto, por cuja causa se exila (1831-1832), se faz militar, jornalista,
deputado (1840-1841), é por vocação um poeta, escritor e historiador. A
polémica causada pela sua História de
Portugal, IV vols. (1846, 1847, 1850 e 1853) leva-o a dirigir a sua
investigação histórica num sentido anticlerical e polemista, defendendo
simultaneamente a legitimidade da crítica histórica e o próprio ideal do
liberalismo, onde o papel da Igreja tinha uma dimensão diferente.» É assim que
começa o texto dedicado a Alexandre Herculano no Dicionário do Judaísmo Português, e é a partir dele que vamos falar
desta grande figura da nossa História.
Herculano nasceu numa família de reputados
carpinteiros e pedreiros. O avô materno, Jorge Rodrigues de Carvalho, foi
mestre-de-obras da Casa Real, e deve-se-lhe, entre outras obras, a escadaria da
Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa. Foi numa casa construída por este avô, perto do
Palácio da Ajuda, que Herculano viveu a partir de 1839, quando o rei D. Fernando,
marido de D. Maria II, o nomeou bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das
Necessidades e da Ajuda.
Busto de Alexandre Herculano.
Escultura em terracota de Teixeira Lopes, 1877.
De seu nome completo Alexandre
Herculano Carvalho de Araújo, o futuro autor de Eurico, o Presbítero nasceu em Lisboa no dia 28 de Março de 1810 (a
poucos meses do início da terceira invasão francesa), no Pátio do Gil,
propriedade, entretanto desaparecida, que fora construída junto à Rua de S.
Bento por um seu tio-avô, António Rodrigues Gil.
Filho de um funcionário público de inclinações liberais, Teodoro Cândido
de Araújo, recebedor da Junta dos Juros, Herculano viria a relembrar, quando
gozava já de ampla reputação como escritor e historiador, que nascera numa
“classe obscura e modesta” e que nela queria morrer. No entanto, ele e a sua
irmã Maria da Assunção, dois anos mais velha, viveram uma infância e primeira
adolescência sem dificuldades económicas, numa casa com uma pequena capela
privada, jardim, árvores de fruto e horta.
Alexandre Herculano. Litografia de Ferting. Séc. XIX.
Casa de Sarmento, Guimarães.
Alexandre Herculano. Gravura a buril de Louis Auguste
Darodes.Séc. XIX.
Casa de Sarmento, Guimarães.
Uma das disciplinas da Aula do Comércio,
ministrada no próprio Arquivo Real da Torre do Tombo, era a Diplomática, na
qual Herculano aprendeu a valorizar papéis antigos e se familiarizou com várias
ciências auxiliares da história, da paleografia e da epigrafia à numismática ou
ao estudo dos selos utilizados para autenticar documentos. É neste período que
conhece João Pedro Ribeiro, professor da Universidade de Coimbra e um dos seus
raros precursores na pesquisa, e na abordagem científica, das fontes
documentais espalhadas pelos arquivos portugueses. O homem que iria revolucionar
a historiografia portuguesa nunca chegou, portanto, a frequentar a
universidade.
Marquesa de
Alorna. Auto-retrato.
Estes anos servem-lhe também para adquirir um conhecimento sólido de várias
línguas estrangeiras – espanhol, italiano, inglês e alemão, além do francês – e
para alargar a sua formação literária, que ficou muito a dever ao convívio com
a poetisa pré-romântica Leonor de Almeida, marquesa de Alorna, casada com um
aristocrata alemão e tradutora de Goethe e de poetas ingleses.
Vista da praia do Arnosa de Pampelido,
onde desembarcou D. Pedro à frente do exército libertador. Gravura publicada no
Elogio Histórico do Rei D. Pedro IV, pelo Marquês de Resende. Palácio Nacional
de Queluz.
Com apenas 21 anos, participou na revolta de 21
de Agosto de 1831 contra o absolutismo miguelista, o que o obrigará, após o
fracasso daquela revolta militar, a fugir para Inglaterra, passando daí para a França, onde frequentou a Biblioteca de Rennes
(1831-1832). Fará parte dos “Bravos do Mindelo”, como ficaram conhecidos os
membros da expedição comandada por D. Pedro IV, que desembarcou na praia de
Arnosa de Pampelido, alguns quilómetros a norte do Porto, no dia 8 de Julho de
1832.
O Senhor D. Pedro restituindo Sua Augusta Filha a Senhora D.
Maria Segunda, e a Carta Constitucional aos Portugueses. Litografia de
Nicolas-Eustache Maurin, 1832 (Pormenor). Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.
Em 1834, ainda durante o cerco do Porto,
D. Pedro IV retira-o das trincheiras, ordenando-lhe que ajudasse o bibliotecário do Paço
Episcopal a criar a futura biblioteca pública do Porto, que viria a ser
formalmente instituída em Julho de 1833. Herculano foi nomeado segundo
bibliotecário e, ao assumir a função, prestou juramento à Carta Constitucional,
um voto que nunca trairá e que lhe irá trazer problemas a partir de 1836, com a
ascensão da ala esquerda do movimento liberal e o triunfo do chamado
Setembrismo.
Em 1837 vem para Lisboa, onde assume a
direcção da revista Panorama
(1837-1868), um jornal ilustrado de carácter artístico e científico,
patrocinado por D. Maria II. A publicação foi um êxito e terá chegado a atingir
tiragens de quase cinco mil exemplares, num país cuja taxa de analfabetismo
rondaria então os 90 por cento. É aqui que Herculano publica originalmente boa
parte das suas obras de ficção histórica depois reunidas no volume Lendas e Narrativas, como O Bispo Negro ou A Dama do Pé de Cabra, e ainda parte de O Monge de Cister, que, com O
Bobo e Eurico, o Presbítero,
introduzem em Portugal o romance histórico.
Em 1840 é eleito deputado, tendo proposto
um plano de ensino popular. Desaprovando o golpe de Estado de Costa Cabral,
desliga-se da actividade parlamentar, abandonando a vida política, para se dedicar às Bibliotecas Reais das Necessidades e da Ajuda, cuja
direcção lhe tinha sido confiada por D. Fernando.
Domingos Sequeira, O
Milagre de Ourique, 1793. Musée Louis-Philippe
du château d’Eu, França
Entre 1846 e 1853 publica os quatro
volumes da História de Portugal,
revelando um nível de investigação que, para além de lúcida, inteligente e
rigorosa, foi revolucionária, fundando a historiografia científica em Portugal.
Com a História de Portugal,
Herculano inicia uma série de “provocações” com o Clero português por não
admitir como verdade histórica o célebre Milagre de Ourique, segundo o qual
Cristo aparecera a D. Afonso Henriques naquela batalha. Aos ataques do Clero,
Herculano responde com a carta intitulada “Eu e o Clero” e com o opúsculo Solemnia Verba.
Apocalipse
do Lorvão (1189). Abertura do sexto selo, fl. 115r
(Livro do
Apocalipse 6:12). Torre do Tombo.
A Academia das Ciências de Lisboa nomeou-o seu sócio efectivo em 1852 e
encarregou-o do projecto de recolha dos Portugaliae Monumenta Historica,
projecto que realizou em 1853 e 1854. Para tal percorreu o país, recolhendo
enorme porção de documentos de todos os arquivos eclesiásticos e seculares. Desta
empresa resultou a entrega de valiosa documentação à Torre do Tombo, entre a
qual o Apocalipse do Mosteiro do Lorvão.
João Pedroso, Retrato de
Alexandre Herculano, 1877
Os anos 50 marcam também uma última fase de
intervenção mais directa na vida política. Envolvido na revolta militar de
1851, liderada pelo marechal Saldanha, que encerrou o ciclo do cabralismo e deu
início à Regeneração, Herculano rapidamente se desiludiu com a política
regeneradora e, em diversos jornais, atacou o novo governo. Em 1852, ainda foi
eleito presidente da câmara do entretanto extinto concelho de Belém, mas a
partir de meados da década deixou definitivamente a política activa. Nos anos
seguintes, vai tornar-se célebre pelas sucessivas recusas de lugares políticos,
cargos públicos e honrarias.
Auto-de-Fé no Terreiro do Paço, em Lisboa.
Juan de Alvarez de Colmenar, Gravura de Les Delices d’Espagne & du Portugal, 1707
Entre 1854 e 1859 publica História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, III
vols., com mais de uma dezena de reedições, tendo sido traduzida para inglês em
1926 por John C. Branner (Standford University Publications), reeditada em 1972
em Nova Iorque (com um prólogo de Yosef Hayim Yerushalmi, Ktav Publishing
House).
No
prólogo da obra, Herculano esclarece o leitor acerca dos seus objectivos historiográficos
e políticos, dizendo: «facto e época em que a tirania, o fanatismo, a
hipocrisia e a corrupção nos aparecem na sua natural hediondez […] Podemos
comparar isso tudo com os tempos modernos de liberdade». Do exemplo dado,
conclui-se que a intenção do autor era ajudar os que ainda vacilavam nas
crenças da liberdade política e da tolerância religiosa a decidirem entre o
obscurantismo e a liberdade.
Em 1866 casa-se com Mariana Hermínia Meira, e retira-se para a quinta de
Vale de Lobos, que adquirira em Azóia de Baixo, Santarém. Mas, enquanto vai
aprimorando a sua produção de azeite (o premiado azeite Herculano), continua a
exercer, nesses seus últimos anos, um contínuo magistério moral sobre o país.
Em 1871, por exemplo, toma posição pública contra a supressão das Conferências
do Casino, pesem embora as muitas divergências que tinha com Antero de Quental.
A sua proibição, escreve, “é pior do que uma ilegalidade, porque é um
despropósito”.
Em 1877, querendo agradecer a
visita que o imperador do Brasil, D. Pedro II, lhe fizera em Vale de Lobos,
desloca-se a Lisboa, de onde regressa doente, vindo a morrer com uma pneumonia
no dia 13 de Setembro. Ficou sepultado no adro da igreja de Azóia de Baixo até
à sua trasladação para os Jerónimos, em 1988.
Retrato de
Alexandre Herculano, por José Leite. Torre do Tombo.
Num folheto
comemorativo do primeiro centenário do escritor, publicado no Porto em 1910,
Guerra Junqueiro descreve o que a historiografia nacional deve a Herculano: «A História de Portugal era um enorme palácio desmantelado, com as janelas
trancadas, as paredes fendidas pelos raios (…), e onde ninguém ousara penetrar
com medo que desabassem aquelas podres escadarias monumentais, que contavam já
setecentos anos de existência. Inspirava terror. Andavam lá dentro lobisomens,
aparições lúgubres, fantasmas com sudários (…) Foi então que apareceu um homem
extraordinário – Alexandre Herculano -, que abriu a porta desse pardieiro
monumental, que andou lá dentro durante vinte anos consecutivos a levantar as
escadas, a limpar os móveis, a abrir as gavetas, a consultar os livros, a
erguer as paredes, os tectos, as colunas, e que, depois de um trabalho
incalculável, sobre-humano (…), veio à rua dizer com simplicidade aos
transeuntes estupefactos: “Podem entrar”».
Como
primeiro grande historiador da Inquisição e do Judaísmo, Herculano teve ainda o
grande mérito de chamar a atenção para dois temas essenciais para a compreensão
da História de Portugal.
Este artigo foi
elaborado na integra por:
Muito obrigada
Beijinhos J
Fonte:
Texto adaptado de
“Os 200 do nascimento de Alexandre Herculano” de Luís Miguel Queirós, in Público de 27-3-2010.
Outras Fontes:
HERCULANO,
Alexandre, Dicionário Enciclopédico da
História de Portugal, vol.1, Publicações Alfa;
HERCULANO,
Alexandre, Dicionário do Judaísmo
Português, Editorial Presença;
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