Judeus em Xangai
A Armada do
Almirante Zheng He, selo comemorativo
Entre 1405 e 1433, o almirante Zheng He, o maior navegador da história
da China, comandou sete expedições marítimas. As armadas imperiais navegaram pela
Ásia Marítima, o Índico e a costa oriental de África. Entretanto, os
imperadores Ming decretaram o Hai jin,
uma série de éditos que proibiam o comércio marítimo, com a justificação de
prevenirem a pirataria. Os navios foram queimados e os arquivos oficiais
destruídos. As consequências para a economia chinesa seriam devastadoras,
abrindo caminho à expansão marítima europeia.
Planta de Macau,
Barreto de Resende, 1635, Biblioteca Pública de Évora
Não se sabe ao certo a data em
que os portugueses desembarcaram pela primeira vez no porto de Macau. Mas
sabe-se que a partir de 1523 muitos navegadores portugueses circulavam na zona
dedicando-se ao comércio, apesar das proibições do imperador. Por volta de
1554, Leonel de Sousa, capitão-mor da viagem ao Japão, conseguiu fazer um
acordo verbal com as autoridades locais para o comércio regular dos portugueses
no Rio das Pérolas. A partir de então Macau tornar-se-ia porto de escala do
comércio entre a China, o Japão e outras regiões asiáticas.
“Cantão com as
suas Fábricas Estrangeiras”(detalhe),
c. 1800, Escola Chinesa, Anónimo
Cantão era a cidade do interior
da China onde os portugueses tinham permissão para comerciar. A partir do
século XVII os ingleses envidaram esforços para participarem no comércio com a
China. Naturalmente os portugueses tentaram impedi-los para poderem manter o
monopólio, mas sem resultado. Foi em Cantão, mas já no século XVIII, que a
China autorizou o comércio marítimo com outras potências estrangeiras. No porto
da cidade foram construídas treze fábricas estrangeiras, as “Fábricas de
Cantão”. No entanto, a pressão dos países ocidentais, em particular da
Grã-Bretanha, sobre a China, no sentido de expandirem as suas actividades
comerciais era cada vez maior.
*A China retalhada,
Cartoon político francês
Em meados do século XIX a
Grã-Bretanha era a potência mais desenvolvida do mundo, procurando avidamente
mercados para escoar os seus produtos industrializados. Mas enquanto o mercado
indiano se encontrava aberto ao exterior, a China, produtora de seda, porcelana
e chá (só em 1830 os britânicos importaram 360 mil toneladas de chá), mantinha
aberto ao comércio estrangeiro apenas o porto de Cantão. Além disso os chineses
não mostravam qualquer interesse nos produtos europeus, o que acarretava graves
prejuízos para o comércio britânico.
Fumadores de Ópio,
China, finais de séc. XIX, Opium Museum
O único produto que parecia despertar
o interesse dos chineses era o ópio, uma substância extraída da papoila, altamente
viciante, causadora de dependência nos seus consumidores. Produzido na Índia,
entrava ilegalmente na China através de comerciantes britânicos e
norte-americanos que, auferindo de lucros extraordinários, aumentavam o volume
do comércio em geral. Esta situação esteve na origem da “Primeira Guerra do
Ópio” (1839-1842).
Assinatura do
Tratado de Nanquim, Agosto de 1842
Em 1839, na sequência do
assassinato brutal de um súbdito chinês por marinheiros britânicos, o
comissário imperial chinês em Cantão expulsou todos os ingleses da cidade. A Grã-Bretanha
aproveitou o pretexto e declarou guerra à China. O conflito (travado em
condições de desigualdade dada a superioridade naval britânica, face aos
obsoletos juncos chineses) foi encerrado com a assinatura do Tratado de Nanquim,
pelo qual a China aceitou abrir cinco portos ao comércio de ópio britânico - Cantão,
Xiamen, Fuchou, Ningbo e Xangai -, pagar uma pesada indemnização de guerra e
entregar a ilha de Hong Kong, que ficaria sob administração britânica até 1997.
David Sassoon
(sentado) com os filhos (da esquerda para a direita), Elias David, Abbdalah
David, e Sassoon David Sassoon, Bombaim, 1858
É nesta conjuntura que surge a família
Sassoon (conhecida como “os Rothschild do Oriente”), indissociavelmente ligada
à história mais recente dos judeus na China. Em 1832 David Sassoon, um judeu de
Bagdade, instalou-se com a família em Bombaim, Índia, criando uma firma - David
Sassoon & Co.-, cuja rede comercial viria a estender-se a Cantão e ao sul
da China, com grande sucesso empresarial. Após a abertura dos portos chineses, o
patriarca dos judeus baghdadi, David Sassoon, decide expandir os negócios,
enviando os filhos para a China a fim de lá abrirem filiais da firma, que
negociava especialmente em algodão, seda, chá e ópio.
Porto de Hong
Kong, Escola Chinesa, Anónimo, séc. XIX
O primeiro a chegar à China foi
Elias David, em 1844. Abriu filiais da firma de família em Xangai, Cantão e
Hong Kong. Em 1867 fundou a sua própria empresa, a E. D. Sassoon & C., com
filiais em Xangai e Hong Kong, que depressa se tornou sinónimo do poder
mercantil no Extremo Oriente.
Nanjing Road,
Xangai, finais de séc. XIX
Os Sassoon praticavam uma política de
acolhimento a jovens judeus da comunidade baghdadi, dando-lhes emprego e treino
profissional nos seus escritórios em Bombaim. Muitos deles foram enviados para
as filiais na China. Daqui resultou que o primeiro núcleo de judeus
estabelecidos em Xangai fosse composto por membros da família Sassoon, ou dos
seus empregados; consequentemente, os descendentes destes viriam a constituir
uma larga fatia da comunidade sefardita de Xangai.
Zona ribeirinha
internacional, Xangai, séc. XIX
Quando os primeiros baghdadi
chegaram a Xangai, esta não passava de uma vila piscatória e porto de piratas nas
margens do Huangpu. Perspicazes, anteviram que a vila, estrategicamente
localizada na costa oriental da China, no eixo entre Pequim e Hong Kong, reunia
condições para se tornar num importante centro de negócios. Compraram terrenos
a preços muito baixos, estabeleceram toda uma série de infraestruturas
empresariais e no dealbar do século XX lideravam uma das
maiores metrópoles asiáticas.
Shanghai Bund, década de 1930
Nos princípios do século XX os
baghdadi de Xangai desenvolveram um conjunto de iniciativas, com vista ao
resgate da comunidade judaica de Kaifeng. Criaram um fundo para reconstruir a
sinagoga, contrataram professores qualificados, mohalim para fazerem as circuncisões, shocahtim para prepararem a carne de acordo com os preceitos de kashrut, e ofereceram-se para ajudar os
que quisessem estabelecer-se em Xangai. Apenas oito aceitaram o convite, que
desde logo participaram na vida da comunidade judaica anfitriã. Os que ficaram
em Kaifeng não foram receptivos ao plano de resgate e, finalmente, em Julho de
1937, a ameaça de guerra sino-japonesa pôs fim à preocupação dos baghdadi no
que concerne aos seus correligionários de Kaifeng.
Sir Victor Sassoon,
1940, National Portrait Gallery, Londres
Os baghdadi também foram
solidários com os seus “irmãos” russos que, em fuga dos pogroms na Rússia czarista, começaram a chegar a Xangai por volta
de 1904. O pico da emigração russa para Xangai deu-se entre 1932-1939, a partir
de Harbin, com a ocupação japonesa da Manchúria. Foi criado um fundo para
providenciar às necessidades básicas dos refugiados e os baghdadi mais ricos
não se pouparam a esforços para os ajudar. Sir Victor Sassoon, por exemplo,
para além de dotar o Fundo de Reabilitação com somas avultadas em dinheiro,
providenciou acolhimento a cerca de 2 500 refugiados.
Equipa de futebol,
década de 1930
Entretanto a comunidade judaica
não negligenciava a educação dos seus jovens. Nos anos 30 a Shanghai Jewish School era considerada
uma escola modelo; com um corpo docente de elevado nível académico, infraestruturas
modernas e muito bem equipada, recebia alunos das vertentes asquenazita e
sefardita. O Jewish Recreation Club
atraía os jovens para desportos como o futebol, o ténis ou o ping-pong, etc. Ainda
em 1937, a SJYA (Associação para a Juventude Judaica em Xangai), sob os
auspícios do empresário Horace Kadoorie, organizou um acampamento de férias
para 200 jovens.
A comunidade mantinha ainda três
sinagogas, duas sefarditas e uma asquenazita, dois cemitérios, um hospital e um
lar para idosos que não tinham meios de subsistência.
A imagem anterior mostra a Jewish Company a patrulhar o Bund, no decorrer da Guerra
Sino-Japonesa, em 1938. A Jewish Company
fazia parte do Corpo de Voluntários de Xangai (Shanghai Volunteer Corps), fundado em 1853 pelo Conselho Municipal
de Xangai. Era uma milícia internacional formada por voluntários de vários
países que tinha como missão defender a zona estrangeira da cidade das frequentes
guerras civis ocorridas em finais do século XIX e princípios do século XX. Foi
desmobilizado pelas forças ocupantes japonesas em 1942.
A chegada a Xangai de refugiados de Áustria, 14 de
Dezembro de 1938
Após a anexação da Áustria pela Alemanha nazi em Março de 1938, Xangai
foi refúgio para cerca de 20 000 judeus oriundos da Europa Central, que fugiam
para o único destino do mundo que não exigia visto ou qualquer outro documento
oficial. No mesmo ano foi organizado o Comité para a Assistência aos Refugiados
Judeus Europeus em Xangai (CAEJF), com grande parte dos fundos disponibilizados
pelo Comité Judeu Conjunto de Distribuição (JDC ou “Joint”).
Sinagoga Beth
Aharon, Xangai
Os alunos da
Yeshiva Mir na sinagoga Beth Aharon
A sinagoga Beth Aharon
(construída em 1927 por Silas Hardoon, um dos empresários mais ricos de Xangai
e antigo empregado dos Sassoon) veio a ser dormitório para centenas de
refugiados e serviu de casa de estudo aos alunos da Yeshiva Polaca Mir. *Os refugiados
polacos chegaram em 1941, depois de atravessarem a Lituânia, a Sibéria, o Mar
do Japão até Kobe e de lá para Xangai.
Dormitório de
refugiados, Xangai
Refugiados numa
das suas “casas” em Xangai, 1940
Em Abril de 1941, quando Laura Margolis (representante da JDC) chegou a
Xangai, encontrou um cenário caótico. A comunidade judaica local lutava para
atender às necessidades de refugiados que, em muitos casos, pouco mais tinham
que a roupa que traziam no corpo. Cerca de 12 000 estavam a viver em condições
muito precárias, como em barracões improvisados ou prédios semidestruídos pelos
bombardeamentos.
Cantina para
refugiados, Xangai
Distribuição de
roupas a refugiados, Xangai
Aula de Música na SJYA
(Associação para a Juventude Judaica em Xangai), 1940
A JDC e a CAEJF conseguiram montar cozinhas capazes de fornecerem
refeições a cerca de 10 000 pessoas por dia, providenciar alojamento, roupas e assistência
médica; ajudavam os refugiados a encontrar emprego e ofereciam serviços
bancários e legais. Também ministravam programas de educação.
Desfile das Forças
Navais Japonesas, Nanjing Road, Xangai, 8 de Dezembro de 1941
Depois do ataque a Pearl
Harbor, a 7 de Dezembro de 1941, as forças japonesas assumiram o controlo de
Xangai, impondo severas restrições aos residentes estrangeiros. O Japão
tornou-se membro do Eixo, passando a combater os Aliados. Muitas famílias
sefarditas influentes viram os seus bens congelados, uma vez que possuíam
passaporte britânico; foram declarados “inimigos nacionais” e internados em
campos para prisioneiros de guerra. Vários cidadãos norte-americanos foram
tratados com grande crueldade e em alguns casos assassinados. Os russos e
judeus russos não foram internados, devido ao pacto de neutralidade assinado
entre a Rússia e o Japão.
Fila de Refugiados
no Gueto de Xangai, 1943
Em Fevereiro de 1943, os cerca de 20 000 judeus refugiados da Europa
Central foram declarados apátridas e transferidos para o Sector Restrito para
os Refugiados Apátridas, uma área de aproximadamente um quilómetro quadrado no
distrito de Hongkou, mais conhecido por Gueto de Xangai. Os refugiados judeus possuíam
um passe que lhes permitia sair da área restrita, para irem trabalhar. As
crianças, porém, podiam frequentar escolas fora do gueto sem constrangimentos. Tanto
quanto possível, a comunidade, não obstante as enormes privações que
experimentava no seu dia-a-dia, tentava conduzir a vida com alguma normalidade.
Indo para a Escola, Sonja Mühlberger, arquivo pessoal
Passe da mãe de
Sonja Mühlberger
Susie Segalowicz e
Ted Gerson no dia do seu casamento, 17 de Novembro de 1944, Xangai
A 3 de Setembro de 1945 o Exército Chinês, sob o comando de Chiang
Kai-shek, libertou a Área Restrita. Grande parte dos refugiados abandonou
Xangai, dirigindo-se para os EUA, Israel, Austrália, Europa e América Latina. Outros
alimentaram a esperança de ficarem permanentemente em Xangai e começarem uma
vida nova. Mas por aquela altura os chineses começaram a mostrar alguma
hostilidade relativamente aos estrangeiros, que tinham controlado os portos do
seu país por mais de um século. Finalmente, em 1949, o avanço dos comunistas
levou a que quase todos os refugiados abandonassem Xangai.
O Bund de Xangai na actualidade
Em 1978, depois da morte de Mao, a China começou a abrir-se ao mundo. Em
1980, a história dos judeus na China tornou-se objecto de discussão, tanto nos
meios académicos como a nível político. A abertura de Xangai aos mercados
internacionais em 1990 e a formalização das relações diplomáticas entre a China
e Israel em 1992, atraíram um número considerável de judeus de todo o mundo.
The Peace Hotel
(antigo Cathay Hotel, fundado em 1929 por Sir Victor Sassoon)
Actualmente residem em Xangai
cerca de 2 000 judeus estrangeiros de países como os EUA, Israel, França,
Argentina, Venezuela, Canadá, Rússia, Austrália ou Grã-Bretanha; são membros do
corpo diplomático, empresários ou professores. O Movimento Chabad Lubavitch de
Nova Iorque, presente desde 1998, presta apoio à comunidade no Chabad Jewish Center of Pudong. Mais
recentemente foi fundado o Shehebar
Sephardic Center.
Cerimónia da reabertura
da Sinagoga Ohel Rachel, Julho de 2010
A Sinagoga Ohel Rachel (Casa de
Raquel) é um dos edifícios mais emblemáticos da antiga Xangai judaica; foi
fundada em 1920 por Jacob Sassoon, em homenagem à memória da sua mulher Raquel.
Interior da Ohel
Rachel depois das obras de restauro
Encerrada ao culto desde 1952,
excepcionalmente, o governo municipal de Xangai permitiu a sua utilização por
24 horas, em Setembro de 1999, no primeiro dia de Rosh Hashaná. Completamente
restaurada, depois de 60 anos de negligência, está aberta ao culto desde 2010.
Sinagoga Ohel
Moshe/Museu Judaico de Xangai
A Sinagoga Ohel Moshe foi
fundada em 1927 pela comunidade asquenazita e foi o centro da vida espiritual
do gueto durante a ocupação japonesa. É nesta casa de culto que funciona o Museu
para os Refugiados de Xangai; a exposição permanente do museu conta com
milhares de fotografias e outros documentos que ilustram a vida dos judeus
refugiados em Xangai, durante o período da II Guerra Mundial.
Sophie Rosen com o
rabino Shalom Greenberg, Ohel Moshe, 2010
Em 2010 a Ohel Moshe acolheu o primeiro Bat Mitzvah de sempre na China.
A celebrante foi Sophie Rosen, então com doze anos de idade. Muito embora os
pais de Sophie pertençam a movimentos religiosos diferentes (a mãe é reformista
e o pai é conservador), a cerimónia foi conduzida pelo rabino Shalom Greenberg,
representante do Movimento Chabad Lubavith em Xangai.
Clicando no link acede-se à
apresentação da 1ª edição da “China Haggadah”. É uma Hagadá tradicional com
texto em inglês e hebraico, com uma introdução sobre a festa de Pessach escrita
em chinês, pelo professor Xu Xin da Universidade de Nanquim; contém ainda fotografias
históricas da Diáspora Chinesa e cenas da história de Pessach na tradicional
Arte Chinesa do Corte de Papel.
Notas:
*No
cartoon político francês a China é representada como uma tarte pronta a ser
retalhada pela rainha Vitória (Grã- Bretanha), o Kaiser Guilherme II
(Alemanha), o czar Nicolau II (Rússia), “Marianne” (França) e um samurai
(Japão), sob o olhar impotente de um mandarim chinês.
*Chiune
Sugihara foi um diplomata japonês na Lituânia durante a II Guerra Mundial; concedeu
cerca de 6 000 vistos de trânsito a judeus polacos e lituanos, para que
pudessem viajar para o Japão. Recebeu de Israel o título de Justo entre as
Nações, pela sua coragem que salvou milhares de judeus.
Este artigo é a 3ª
e última parte do tema “Os Judeus na China”, e que foram todos eles elaborados
na íntegra e oferecidos ao Eterna Sefarad por,
Sónia
Craveiro...
A quem
todos ficamos agradecidos J
Beijinhos
Fontes:
MACAU, Comissão
Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses/Centro Científico e
Cultural de Macau;