segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Judeus na China | Parte III





Judeus em Xangai



A Armada do Almirante Zheng He, selo comemorativo



     Entre 1405 e 1433, o almirante Zheng He, o maior navegador da história da China, comandou sete expedições marítimas. As armadas imperiais navegaram pela Ásia Marítima, o Índico e a costa oriental de África. Entretanto, os imperadores Ming decretaram o Hai jin, uma série de éditos que proibiam o comércio marítimo, com a justificação de prevenirem a pirataria. Os navios foram queimados e os arquivos oficiais destruídos. As consequências para a economia chinesa seriam devastadoras, abrindo caminho à expansão marítima europeia. 




Planta de Macau, Barreto de Resende, 1635, Biblioteca Pública de Évora



     Não se sabe ao certo a data em que os portugueses desembarcaram pela primeira vez no porto de Macau. Mas sabe-se que a partir de 1523 muitos navegadores portugueses circulavam na zona dedicando-se ao comércio, apesar das proibições do imperador. Por volta de 1554, Leonel de Sousa, capitão-mor da viagem ao Japão, conseguiu fazer um acordo verbal com as autoridades locais para o comércio regular dos portugueses no Rio das Pérolas. A partir de então Macau tornar-se-ia porto de escala do comércio entre a China, o Japão e outras regiões asiáticas. 




“Cantão com as suas Fábricas Estrangeiras”(detalhe), 
c. 1800, Escola Chinesa, Anónimo



    Cantão era a cidade do interior da China onde os portugueses tinham permissão para comerciar. A partir do século XVII os ingleses envidaram esforços para participarem no comércio com a China. Naturalmente os portugueses tentaram impedi-los para poderem manter o monopólio, mas sem resultado. Foi em Cantão, mas já no século XVIII, que a China autorizou o comércio marítimo com outras potências estrangeiras. No porto da cidade foram construídas treze fábricas estrangeiras, as “Fábricas de Cantão”. No entanto, a pressão dos países ocidentais, em particular da Grã-Bretanha, sobre a China, no sentido de expandirem as suas actividades comerciais era cada vez maior.




*A China retalhada, Cartoon político francês



      Em meados do século XIX a Grã-Bretanha era a potência mais desenvolvida do mundo, procurando avidamente mercados para escoar os seus produtos industrializados. Mas enquanto o mercado indiano se encontrava aberto ao exterior, a China, produtora de seda, porcelana e chá (só em 1830 os britânicos importaram 360 mil toneladas de chá), mantinha aberto ao comércio estrangeiro apenas o porto de Cantão. Além disso os chineses não mostravam qualquer interesse nos produtos europeus, o que acarretava graves prejuízos para o comércio britânico. 




Fumadores de Ópio, China, finais de séc. XIX, Opium Museum



     O único produto que parecia despertar o interesse dos chineses era o ópio, uma substância extraída da papoila, altamente viciante, causadora de dependência nos seus consumidores. Produzido na Índia, entrava ilegalmente na China através de comerciantes britânicos e norte-americanos que, auferindo de lucros extraordinários, aumentavam o volume do comércio em geral. Esta situação esteve na origem da “Primeira Guerra do Ópio” (1839-1842). 




Assinatura do Tratado de Nanquim, Agosto de 1842



  Em 1839, na sequência do assassinato brutal de um súbdito chinês por marinheiros britânicos, o comissário imperial chinês em Cantão expulsou todos os ingleses da cidade. A Grã-Bretanha aproveitou o pretexto e declarou guerra à China. O conflito (travado em condições de desigualdade dada a superioridade naval britânica, face aos obsoletos juncos chineses) foi encerrado com a assinatura do Tratado de Nanquim, pelo qual a China aceitou abrir cinco portos ao comércio de ópio britânico - Cantão, Xiamen, Fuchou, Ningbo e Xangai -, pagar uma pesada indemnização de guerra e entregar a ilha de Hong Kong, que ficaria sob administração britânica até 1997. 




David Sassoon (sentado) com os filhos (da esquerda para a direita), Elias David, Abbdalah David, e Sassoon David Sassoon, Bombaim, 1858



     É nesta conjuntura que surge a família Sassoon (conhecida como “os Rothschild do Oriente”), indissociavelmente ligada à história mais recente dos judeus na China. Em 1832 David Sassoon, um judeu de Bagdade, instalou-se com a família em Bombaim, Índia, criando uma firma - David Sassoon & Co.-, cuja rede comercial viria a estender-se a Cantão e ao sul da China, com grande sucesso empresarial. Após a abertura dos portos chineses, o patriarca dos judeus baghdadi, David Sassoon, decide expandir os negócios, enviando os filhos para a China a fim de lá abrirem filiais da firma, que negociava especialmente em algodão, seda, chá e ópio. 




Porto de Hong Kong, Escola Chinesa, Anónimo, séc. XIX



        O primeiro a chegar à China foi Elias David, em 1844. Abriu filiais da firma de família em Xangai, Cantão e Hong Kong. Em 1867 fundou a sua própria empresa, a E. D. Sassoon & C., com filiais em Xangai e Hong Kong, que depressa se tornou sinónimo do poder mercantil no Extremo Oriente. 




Nanjing Road, Xangai, finais de séc. XIX



     Os Sassoon praticavam uma política de acolhimento a jovens judeus da comunidade baghdadi, dando-lhes emprego e treino profissional nos seus escritórios em Bombaim. Muitos deles foram enviados para as filiais na China. Daqui resultou que o primeiro núcleo de judeus estabelecidos em Xangai fosse composto por membros da família Sassoon, ou dos seus empregados; consequentemente, os descendentes destes viriam a constituir uma larga fatia da comunidade sefardita de Xangai. 




Zona ribeirinha internacional, Xangai, séc. XIX



     Quando os primeiros baghdadi chegaram a Xangai, esta não passava de uma vila piscatória e porto de piratas nas margens do Huangpu. Perspicazes, anteviram que a vila, estrategicamente localizada na costa oriental da China, no eixo entre Pequim e Hong Kong, reunia condições para se tornar num importante centro de negócios. Compraram terrenos a preços muito baixos, estabeleceram toda uma série de infraestruturas empresariais e no dealbar do século XX lideravam uma das maiores metrópoles asiáticas. 




Shanghai Bund, década de 1930



     Nos princípios do século XX os baghdadi de Xangai desenvolveram um conjunto de iniciativas, com vista ao resgate da comunidade judaica de Kaifeng. Criaram um fundo para reconstruir a sinagoga, contrataram professores qualificados, mohalim para fazerem as circuncisões, shocahtim para prepararem a carne de acordo com os preceitos de kashrut, e ofereceram-se para ajudar os que quisessem estabelecer-se em Xangai. Apenas oito aceitaram o convite, que desde logo participaram na vida da comunidade judaica anfitriã. Os que ficaram em Kaifeng não foram receptivos ao plano de resgate e, finalmente, em Julho de 1937, a ameaça de guerra sino-japonesa pôs fim à preocupação dos baghdadi no que concerne aos seus correligionários de Kaifeng. 




Sir Victor Sassoon, 1940, National Portrait Gallery, Londres



     Os baghdadi também foram solidários com os seus “irmãos” russos que, em fuga dos pogroms na Rússia czarista, começaram a chegar a Xangai por volta de 1904. O pico da emigração russa para Xangai deu-se entre 1932-1939, a partir de Harbin, com a ocupação japonesa da Manchúria. Foi criado um fundo para providenciar às necessidades básicas dos refugiados e os baghdadi mais ricos não se pouparam a esforços para os ajudar. Sir Victor Sassoon, por exemplo, para além de dotar o Fundo de Reabilitação com somas avultadas em dinheiro, providenciou acolhimento a cerca de 2 500 refugiados. 




Equipa de futebol, década de 1930



     Entretanto a comunidade judaica não negligenciava a educação dos seus jovens. Nos anos 30 a Shanghai Jewish School era considerada uma escola modelo; com um corpo docente de elevado nível académico, infraestruturas modernas e muito bem equipada, recebia alunos das vertentes asquenazita e sefardita. O Jewish Recreation Club atraía os jovens para desportos como o futebol, o ténis ou o ping-pong, etc. Ainda em 1937, a SJYA (Associação para a Juventude Judaica em Xangai), sob os auspícios do empresário Horace Kadoorie, organizou um acampamento de férias para 200 jovens.

     A comunidade mantinha ainda três sinagogas, duas sefarditas e uma asquenazita, dois cemitérios, um hospital e um lar para idosos que não tinham meios de subsistência.






     A imagem anterior mostra a Jewish Company a patrulhar o Bund, no decorrer da Guerra Sino-Japonesa, em 1938. A Jewish Company fazia parte do Corpo de Voluntários de Xangai (Shanghai Volunteer Corps), fundado em 1853 pelo Conselho Municipal de Xangai. Era uma milícia internacional formada por voluntários de vários países que tinha como missão defender a zona estrangeira da cidade das frequentes guerras civis ocorridas em finais do século XIX e princípios do século XX. Foi desmobilizado pelas forças ocupantes japonesas em 1942. 




A chegada a Xangai de refugiados de Áustria, 14 de Dezembro de 1938



       Após a anexação da Áustria pela Alemanha nazi em Março de 1938, Xangai foi refúgio para cerca de 20 000 judeus oriundos da Europa Central, que fugiam para o único destino do mundo que não exigia visto ou qualquer outro documento oficial. No mesmo ano foi organizado o Comité para a Assistência aos Refugiados Judeus Europeus em Xangai (CAEJF), com grande parte dos fundos disponibilizados pelo Comité Judeu Conjunto de Distribuição (JDC ou “Joint”). 




Sinagoga Beth Aharon, Xangai




Os alunos da Yeshiva Mir na sinagoga Beth Aharon



    A sinagoga Beth Aharon (construída em 1927 por Silas Hardoon, um dos empresários mais ricos de Xangai e antigo empregado dos Sassoon) veio a ser dormitório para centenas de refugiados e serviu de casa de estudo aos alunos da Yeshiva Polaca Mir. *Os refugiados polacos chegaram em 1941, depois de atravessarem a Lituânia, a Sibéria, o Mar do Japão até Kobe e de lá para Xangai. 




Dormitório de refugiados, Xangai




Refugiados numa das suas “casas” em Xangai, 1940



     Em Abril de 1941, quando Laura Margolis (representante da JDC) chegou a Xangai, encontrou um cenário caótico. A comunidade judaica local lutava para atender às necessidades de refugiados que, em muitos casos, pouco mais tinham que a roupa que traziam no corpo. Cerca de 12 000 estavam a viver em condições muito precárias, como em barracões improvisados ou prédios semidestruídos pelos bombardeamentos. 




Cantina para refugiados, Xangai




Distribuição de roupas a refugiados, Xangai




Aula de Música na SJYA (Associação para a Juventude Judaica em Xangai), 1940



     A JDC e a CAEJF conseguiram montar cozinhas capazes de fornecerem refeições a cerca de 10 000 pessoas por dia, providenciar alojamento, roupas e assistência médica; ajudavam os refugiados a encontrar emprego e ofereciam serviços bancários e legais. Também ministravam programas de educação. 




Desfile das Forças Navais Japonesas, Nanjing Road, Xangai, 8 de Dezembro de 1941



     Depois do ataque a Pearl Harbor, a 7 de Dezembro de 1941, as forças japonesas assumiram o controlo de Xangai, impondo severas restrições aos residentes estrangeiros. O Japão tornou-se membro do Eixo, passando a combater os Aliados. Muitas famílias sefarditas influentes viram os seus bens congelados, uma vez que possuíam passaporte britânico; foram declarados “inimigos nacionais” e internados em campos para prisioneiros de guerra. Vários cidadãos norte-americanos foram tratados com grande crueldade e em alguns casos assassinados. Os russos e judeus russos não foram internados, devido ao pacto de neutralidade assinado entre a Rússia e o Japão. 




Fila de Refugiados no Gueto de Xangai, 1943



     Em Fevereiro de 1943, os cerca de 20 000 judeus refugiados da Europa Central foram declarados apátridas e transferidos para o Sector Restrito para os Refugiados Apátridas, uma área de aproximadamente um quilómetro quadrado no distrito de Hongkou, mais conhecido por Gueto de Xangai. Os refugiados judeus possuíam um passe que lhes permitia sair da área restrita, para irem trabalhar. As crianças, porém, podiam frequentar escolas fora do gueto sem constrangimentos. Tanto quanto possível, a comunidade, não obstante as enormes privações que experimentava no seu dia-a-dia, tentava conduzir a vida com alguma normalidade. 




Indo para a Escola, Sonja Mühlberger, arquivo pessoal




Passe da mãe de Sonja Mühlberger




Susie Segalowicz e Ted Gerson no dia do seu casamento, 17 de Novembro de 1944, Xangai



     A 3 de Setembro de 1945 o Exército Chinês, sob o comando de Chiang Kai-shek, libertou a Área Restrita. Grande parte dos refugiados abandonou Xangai, dirigindo-se para os EUA, Israel, Austrália, Europa e América Latina. Outros alimentaram a esperança de ficarem permanentemente em Xangai e começarem uma vida nova. Mas por aquela altura os chineses começaram a mostrar alguma hostilidade relativamente aos estrangeiros, que tinham controlado os portos do seu país por mais de um século. Finalmente, em 1949, o avanço dos comunistas levou a que quase todos os refugiados abandonassem Xangai. 




O Bund de Xangai na actualidade



       Em 1978, depois da morte de Mao, a China começou a abrir-se ao mundo. Em 1980, a história dos judeus na China tornou-se objecto de discussão, tanto nos meios académicos como a nível político. A abertura de Xangai aos mercados internacionais em 1990 e a formalização das relações diplomáticas entre a China e Israel em 1992, atraíram um número considerável de judeus de todo o mundo. 




The Peace Hotel
(antigo Cathay Hotel, fundado em 1929 por Sir Victor Sassoon)



       Actualmente residem em Xangai cerca de 2 000 judeus estrangeiros de países como os EUA, Israel, França, Argentina, Venezuela, Canadá, Rússia, Austrália ou Grã-Bretanha; são membros do corpo diplomático, empresários ou professores. O Movimento Chabad Lubavitch de Nova Iorque, presente desde 1998, presta apoio à comunidade no Chabad Jewish Center of Pudong. Mais recentemente foi fundado o Shehebar Sephardic Center




Cerimónia da reabertura da Sinagoga Ohel Rachel, Julho de 2010



      A Sinagoga Ohel Rachel (Casa de Raquel) é um dos edifícios mais emblemáticos da antiga Xangai judaica; foi fundada em 1920 por Jacob Sassoon, em homenagem à memória da sua mulher Raquel. 




Interior da Ohel Rachel depois das obras de restauro



     Encerrada ao culto desde 1952, excepcionalmente, o governo municipal de Xangai permitiu a sua utilização por 24 horas, em Setembro de 1999, no primeiro dia de Rosh Hashaná. Completamente restaurada, depois de 60 anos de negligência, está aberta ao culto desde 2010. 




Sinagoga Ohel Moshe/Museu Judaico de Xangai



       A Sinagoga Ohel Moshe foi fundada em 1927 pela comunidade asquenazita e foi o centro da vida espiritual do gueto durante a ocupação japonesa. É nesta casa de culto que funciona o Museu para os Refugiados de Xangai; a exposição permanente do museu conta com milhares de fotografias e outros documentos que ilustram a vida dos judeus refugiados em Xangai, durante o período da II Guerra Mundial. 




Sophie Rosen com o rabino Shalom Greenberg, Ohel Moshe, 2010



     Em 2010 a Ohel Moshe acolheu o primeiro Bat Mitzvah de sempre na China. A celebrante foi Sophie Rosen, então com doze anos de idade. Muito embora os pais de Sophie pertençam a movimentos religiosos diferentes (a mãe é reformista e o pai é conservador), a cerimónia foi conduzida pelo rabino Shalom Greenberg, representante do Movimento Chabad Lubavith em Xangai. 







      Clicando no link acede-se à apresentação da 1ª edição da “China Haggadah”. É uma Hagadá tradicional com texto em inglês e hebraico, com uma introdução sobre a festa de Pessach escrita em chinês, pelo professor Xu Xin da Universidade de Nanquim; contém ainda fotografias históricas da Diáspora Chinesa e cenas da história de Pessach na tradicional Arte Chinesa do Corte de Papel. 



Notas: 
*No cartoon político francês a China é representada como uma tarte pronta a ser retalhada pela rainha Vitória (Grã- Bretanha), o Kaiser Guilherme II (Alemanha), o czar Nicolau II (Rússia), “Marianne” (França) e um samurai (Japão), sob o olhar impotente de um mandarim chinês. 



*Chiune Sugihara foi um diplomata japonês na Lituânia durante a II Guerra Mundial; concedeu cerca de 6 000 vistos de trânsito a judeus polacos e lituanos, para que pudessem viajar para o Japão. Recebeu de Israel o título de Justo entre as Nações, pela sua coragem que salvou milhares de judeus. 





Este artigo é a 3ª e última parte do tema “Os Judeus na China”, e que foram todos eles elaborados na íntegra e oferecidos ao Eterna Sefarad por,

Sónia Craveiro...

A quem todos ficamos agradecidos J


Beijinhos


Fontes:


MACAU, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses/Centro Científico e Cultural de Macau;

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