Por Sara Lipton
Museu da Diáspora, Tel Aviv
Uma miniatura representando a
expulsão dos judeus da França. Os judeus não são todos mostrados com o nariz
adunco, no entanto, o homem de nariz adunco nesta imagem retrata um sargento real,
cujas características brutas indicam o seu baixo estatuto social. Cortesia de:
“Grandes Chroniques de France, 1182”.
Em 1940, os nazis lançaram um filme de propaganda chamado “The Eternal Jew”. O filme tinha como
intuito mostrar os judeus em seu "estado original", "em vez da imagem
de europeus civilizados." Uma série de rituais judaicos foram ironizados
com cenas em que os judeus usavam as sua kipot
e tinham como vestuário, roupas sujas e esfarrapadas, onde estes mesmos judeus
eram arrastados para becos lotados. Tudo isto para mostrar a natureza da vida
judaica como sinónimo de ignorância. Acima de tudo, os cineastas salientavam os rostos dos
judeus. Eles focavam as suas câmaras nos seus olhos, narizes, barbas, e bocas,
confiantes de que a visão de certas características estereotipadas iria
despertar reacções de ódio e desprezo.
Um cartaz para o filme, Der Jude Ewige
O designer de
cartaz do filme evidentemente concordou, mas aqui, evitando os símbolos mais
óbvios da identidade judaica (kipot (solidéu), peyot (patilhas longas e
encaracoladas) e estrelas de David) em favor de um único e escuro, nariz adunco
e rosto carnudo. Na verdade, o cartaz não precisava do título que o acompanha.
Na Europa, em 1940, esta representação do judaísmo era generalizada:
representações semelhantes de judeus podiam ser vistos em cartazes e em
panfletos, jornais, até mesmo livros infantis.
Esta imagem do judeu, no entanto, estava longe de ser
"eterna". Embora o anti-semitismo seja notoriamente "o ódio mais
longo," não foram facilmente distinguíveis judeus de qualquer tipo no
imaginário ocidental, muito menos o homem moreno estereotipado com o seu nariz
adunco próprio de judeu. Monumentos e manuscritos anteriores representaram
profetas hebreus, exércitos israelitas, e os reis judaicos, mas eram
identificáveis apenas pelo contexto, de maneira nenhuma apontada como diferente
de outros sábios, soldados, ou reis. Até mesmo as personagens de judeus
nefastos, tais como os sacerdotes (pontífices) que relatam a sua insistência
com Pilatos para crucificar Cristo no Egbert Codex (cerca de 980), eram
visualmente normais; e aqui sim, eram necessários títulos para identificá-los
como judeus.
Jesus diante de Pilatos, os sacerdotes, e os soldados (João 19: 5), Egbert Codex, por volta de 985
Quando os artistas cristãos começaram a destacar os judeus,
não foi através dos recursos dos seus corpos, nem mesmo nas particularidades
dos rituais, mas sim, com chapéus. Por volta do ano 1100 da E.C., um momento de
erudição bíblica intensificou o interesse crescente no passado, bem como a
grande inovação artística, os artistas começaram a prestar mais atenção nas imagens
do Antigo Testamento, que tinham sido relativamente negligenciadas a favor das
ilustrações na arte mediaval do Novo Testamento. Profetas hebreus começaram a
aparecer nas páginas da Bíblia ricamente iluminadas e nas fachadas esculpidas
das igrejas românicas usando chapéus de pontas distintas, imagens estas que
foram crescendo em toda a cristandade ocidental.
Kikirpa, Bruxelas
Uma carta com a imagem do profeta
Sofonias, da Bíblia Lobbes, 1084
No entanto, a chapelaria dos profetas não tinha nada a ver
com a roupa judaica real (não há nenhuma evidência de que os judeus da época
usassem esses chapéus, ou quaisquer chapéus de tudo, até porque os judeus
religiosos não cobrem regularmente as suas cabeças até o século XVI). O
"chapéu de pontas judeu" é baseado nas mitras dos sacerdotes persas
antigos e na simbologia da autoridade religiosa.
Ao contrário, este tipo de chapéu tinha aparecido nos
manuscritos, afrescos, mosaicos e esculturas de marfim sobre as cabeças dos
três Reis Magos, aqueles "sábios do Oriente que levaram os presentes para
o menino Jesus”, e tão claramente não tinha nenhuma conotação negativa. Em vez
disso, o chapéu deu azo a obras de arte inovadoras em que Hebreus apareciam com
uma aura de antiguidade sagrada. Este facto acabou por ajudar a defender a
construção de uma nova imagem nas novas obras de arte e manuscritos carregados de
acusações de "inovações", uma acusação grave, na cristandade medieval
e numa sociedade conservadora que temia a mudança. Pela mesma razão, os
profetas usam barbas, símbolos de maturidade, sabedoria e dignidade. (Assim
como os chapéus, as barbas têm um pouco a ver com a aparência de judeus reais
ou de práticas religiosas, apesar que os homens judeus não eram de forma
uniforme barbudos nesta altura.)
Mas a aparência e o significado dos judeus na arte ocidental
iria mudar ao longo do tempo consoante as preocupações cristãs e as
necessidades devocionais. Além disso, a arte afecta, bem como reflete ideias. O
uso da imagem de hebreus na arte influenciou a forma como os cristãos imaginavam
e pensavam sobre os judeus, logo as atitudes cristãs e políticas em relação aos
judeus, foram consequentemente transformadas. Num caso notável de arte imitando
a vida, em 1267, dois conselhos da igreja ordenaram que os judeus fossem
obrigados a usar chapéus pontudos ", como os seus ancestrais costumavam
fazer.
"Na ausência de álbuns de fotografias centenárias,
deve-se concluir que a evidência primária aponta que a forma como “eles se
vestiam”, provém da arte cristã.
Pierpont Morgan Library, Nova
Iorque
A Imperatriz Helena obriga Judas
para revelar o local da Verdadeira Cruz, um detalhe da Stavelot Tríptico, circa
1155
Depois do aparecimentos das obras cristãs de profetas
hebreus a usarem chapéu por várias décadas, por volta de 1140, a associação
persa original acabou por ser esquecida.
Os chapéus pontudos tornaram-se assim um dos símbolos do
judaísmo. Eles começaram a aparecer numa ampla gama de figuras judaicas, e não
apenas os profetas e patriarcas do Antigo Testamento, mas também personagens
judaicas da literatura e lendas. Nestes novos contextos, as qualidades
anteriormente positivas da antiguidade e autoridade tinha agora conotações negativas.
Num tríptico esmalte datado de cerca de 1155, agora na Biblioteca Morgan, o
judeu chamado Judas Ciríaco, que pela Imperatriz romana Helena foi forçado a
revelar a localização da Verdadeira Cruz, não é um profeta reverenciado. Aqui,
o seu chapéu e barba servem para confirmar a antiguidade, e assim a
confiabilidade, da sua informação. Mas existe uma outra interpretação que se
prende a uma lei estéril e substituída em que, “ O chapéu serve como uma
representação da doutrina cristã, da superação, que considerou que as regras e
ritos hebraicos foram tornados obsoletos pelas práticas cristãs
"espirituais".
Réunion des Musées
Nationaux / Art Resource, Nova Iorque
Jesus pregado na cruz, sob a
direção de carrascos judeus e gentios, moldura em esmalte relicário, circa 1170
Na segunda metade do século XII, uma nova tendência
devocional promove a contemplação compassiva do mortal; a do Cristo sofredor,
assim os artistas voltam a sua atenção para os rostos dos judeus. Na obra de
arte acima colocada, o judeu central no grupo à esquerda do Cristo crucificado
tem um grande nariz adunco completamente fora da proporção, tanto em relação ao
seu rosto, como em relação aos rostos das outras figuras nesta moldura. Embora
este perfil grotesco se assemelhe a uma caricatura antissemita racialista moderna,
não parece ainda assim, ter o mesmo significado. Não há textos cristãos
escritos até esta altura que atribuam quaisquer características físicas
específicas para os judeus, muito menos que se referiram à existência de um
peculiar "nariz judeu." Em vez disso, esta imagem é a da sinalização do
ódio étnico, e o rosto feio deste judeu apenas reflete as preocupações cristãs
contemporâneas. De acordo com as novas devoções, as obras de arte tinha apenas
começado a retratar Cristo como homem humilhado e a morrer. Alguns cristãos
lutaram contra as novas imagens e desta visão do sofrimento divino, mas os
defensores das novas devoções criticaram tal resistência. Não sendo
propriamente movidos por representações da aflição de Cristo, os judeus eram
identificados com formas de olhar de “ coração duro". Nesta e muitas
outras imagens, o nariz proeminente do judeu serve principalmente para chamar a
atenção para o ângulo da sua cabeça, virada para que fique longe da vista de
Cristo.
No restante século, e durante várias décadas para além
deste, a forma do nariz dos judeus na arte permaneceu muito variada mas sempre
para constituir marcadores de identidade. Ou seja, os judeus ostentavam muitos
tipos diferentes de "maus" narizes - alguns compridos e afilado,
outros semelhantes a um focinho, mas os mesmos narizes apareciam igualmente em
muitos "maus, mas não-judeus”, bem como, e assim sendo, este tipo de nariz
continuava a não ser uma identificação dos judeus, apesar de sempre aparecer
com uma má conotação. Até o final do século XIII, no entanto, um movimento em
direção ao realismo na arte e um aumento do interesse na fisionomia, acaba por
estimular os artistas a elaborarem sinais visuais de etnia nas suas obras. A
gama de recursos atribuídos aos judeus eram agora consolidadas e interpretadas
de forma restritiva simultaneamente, com o rosto grotesco e naturalista, o
nariz adunco, barba, chapéu pontudo, nasce a caricatura dos judeus.
Foto Marburg / Art Resource,
Nova Iorque
Imperador Henrique VII aceita um
pergaminho da lei de um judeu romano, Codex Trevirensis, 1341
Esta imagem serviu alguns propósitos. Sendo vivida de forma
carnal e realista, o rosto do judeu era para os cristãos a imagem secular e
física do mundo material, num reino em que os judeus tinham sido sempre
associados à polémica cristã. Isso explica porque esta ilustração é projetada
para exibir a soberania mundana do imperador alemão Henrique VII, na qual é
retratada a aceitação de um rolo de papel que lhe é oferecido por um
fisionomicamente caricaturado judeu.
Noutros outros casos, a caricatura associada ao erro e à
infidelidade. Numa ilustração do Salmo 52 do século XIV ("Diz o insensato
no seu coração:" Não há Deus "), não é necessário um chapéu para
identificar o louco e beberrão de vinho como um judeu; ele é evidente através
das suas próprias acções. No entanto, a iluminura não indicia exclusivamente a
incredulidade dos judeus. O Salmo 52 refere-se a todos os idiotas alcoolizados,
homens com as mãos em punho, um pecador, ou um bobo da corte; Podemos,
portanto, identificar a outra figura na página como sendo um louco. Mas na
companhia do nosso judeu caricaturado, e à luz dos seus muito diferentes (isto
é, perfeitamente genéricos) recursos, somos obrigados a lê-lo como um
"cristão" especificamente (ou pelo menos Gentile) Louco descrente.
Apesar de sua caricatura anti-judaica desagradável, esta imagem dificilmente
age para diferenciar os judeus dos cristãos. Na verdade, ela une a ideia do judeu,
com a moral dos cristãos, os “Outros", enfatizando a natureza defeituosa
da fé de ambos; a fé judaica e a cristã.
No Museu Metropolitano de Arte
de Recursos | Nova Iorque
Uma ilustração do Salmo 52:
"Diz o insensato no seu coração: Não há Deus '", um detalhe do
Saltério de Bonne de Luxemburgo, por volta de 1340
É difícil ter conforto neste moralismo ecumênico. O poder das imagens, o vivamente "real", a diferença carnuda do
rosto caricaturado do judeu, num rosto oprimido e a sua subtil mensagem espiritual.
Atitudes cristãs em relação a eles próprios, á fé, e D’us
mudaram visivelmente menos até o final da Idade Média do que as atitudes
cristãs em relação aos judeus. Quatro séculos de judeus retratados na arte com
um chapéu pontudo, nariz grande e barbudos acabou por induzir os cristãos a
considerarem os judeus como seres diferentes e socialmente distantes. Quando os
cristãos na realidade e de perto não conseguiram encontrar essas diferenças
físicas e sociais, eles impuseram-nas na lei e nos estatutos notórios, como os
emblemas para judeus, e em leis que obrigavam ou empurravam os judeus para
bairros marginais, até que no final e através dos soberanos, acabaram por
expulsar os judeus de todos os reinos.
O "judeu eterno" e "o ódio mais longo"
são rótulos igualmente enganosos. Nem os próprios judeus, nem as atitudes para
com os judeus eram estáticas ou imutáveis. Apesar de imagens idênticas, estas
podem ter significados radicalmente diferentes. Mas a história da iconografia
anti-judaica revela uma constante na cultura ocidental bem conhecida; a propaganda
nazi e a força visceral da imagem visual.
Mais recente livro de Sara
Lipton, Dark Mirror: As origens
medievais de Iconografia Anti-judaica foram publicadas este mês pela Metropolitan Books.
Fonte:
O link deste artigo foi-me enviado
carinhosamente pela minha amiga,
Fernanda de Sá
Couto
Muito obrigada
Beijinhos J
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