Os
Judeus de Harbin
Mapa
satírico da Europa, Fred W. Rose, 1899
Neste mapa satírico da Europa Imperial,
o caricacturista Fred W. Rose usa a metáfora da pesca para ilustrar quais os
países que estão a pescar e o que pretendem capturar (possessões coloniais). Em
grande plano está Nicolau II, da dinastia Romanov, que seria o último czar da
Rússia.
O império
da Rússia era um colosso com 22 milhões de quilómetros quadrados, uma população
de 120 milhões e um exército permanente de mais de um milhão de homens.
Cobrindo quase um sexto da superfície mundial, era uma massa que se estendia
continuamente e que já tinha absorvido a Crimeia, grande parte da Polónia, a
Finlândia, o território centro-asiático que envolvia a Mongólia e toda a
Sibéria até ao Pacífico.
Nicolau
II e Alexandra Feodorovna em trajes imperiais, 1896
A família Romanov governava a Rússia
desde 1613 e gostava de considerar o seu império como um enorme Estado feudal,
em que tudo derivava deles. De facto, a partir da década de 1880, desde a
Polónia à Finlândia até à Transcaucásia muçulmana, foi levada a cabo uma
política feroz de russificação. Os idiomas locais foram ilegalizados; os
crentes não ortodoxos, como católicos, protestantes ou muçulmanos, foram
discriminados, e os judeus, considerados literalmente «assassinos de Cristo»,
foram rancorosamente perseguidos: excluídos do sistema educativo, expulsos de
suas casas e sujeitos a massacres brutais.
Já no século XX, entre 1907-1915, o aristocrata russo Sergey
Prokudin-Gorskii, com as suas fotografias coloridas (graças a uma técnica
fotográfica que o próprio desenvolveu), dá-nos uma imagem quase idílica da
Rússia e das suas gentes.
Camponeses
russos, Sergey Gorskii
Mulheres
e crianças na colheita do chá, Geórgia, Sergey Gorskii
Vendedores de fruta, Samarkand, Uzbequistão, Sergey Gorskii
Rapazes
judeus com o seu professor, Samarkand, Sergey Gorskii
Nos finais do século XIX os judeus da
Rússia czarista, desesperados para escapar à pobreza e aos pogroms, experimentavam as maiores dificuldades na obtenção de
autorizações para viajar, dentro ou fora do império. Mas em 1896 surge uma
oportunidade para fugir a esta conjuntura de anti-semitismo: a Rússia tinha
conseguido uma concessão do governo chinês para alargar a linha ferroviária
transiberiana através da Manchúria, a vasta província do norte da China que
penetrava profundamente na Sibéria. Como tal precisava de um contingente humano
que assegurasse os seus interesses, uma tarefa nada fácil devido ao clima
extremamente rigoroso da região.
Mapa
da linha ferroviária da Manchúria até Pogranichaya, 1903-1919
Assim, o czar Nicolau ofereceu aos
judeus a possibilidade de se libertarem das suas restrições, se aceitassem
mudar-se para a Manchúria. Podiam escolher entre pequenas povoações no interior
daquela província ou Harbin, uma modesta vila piscatória.
Os primeiros judeus chegaram a Harbin em 1899. Em finais de 1902 o
número tinha aumentado para 300, sendo que pelo menos 10 já eram donos das suas
lojas. O caminho-de-ferro trouxe prosperidade a Harbin, que em poucos anos se
transformaria numa capital moderna. Os harbintsi,
como gostavam de ser chamados, contribuíram entusiasticamente para esta
transformação; libertos da opressão em que viviam na Rússia, deram largas à sua
criatividade. Melhor, os nativos chineses não tinham qualquer tradição
anti-semita.
Nesta
fotografia, com uma paisagem chinesa em fundo e dois rapazes chineses sentados
à frente, um médico judeu e um militar apresentam as suas credenciais. Aceitam
trabalho em São Francisco (Califórnia), ou em Harbin, na Manchúria. O texto nas
costas da fotografia está em russo e é datado de 1905.
Refugiados
russos no Transiberiano, 1918
Na
Rússia, vagas de pogroms continuaram
a providenciar o reforço da população judia de Harbin. Juntaram-se-lhe soldados
judeus desmobilizados da Guerra Russo/Japonesa de 1904-1905 (pela posse da
Crimeia e da Manchúria) e, posteriormente, refugiados russos (tanto judeus como
gentios) da I Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique.
Sinagoga
Main ou Sinagoga Velha, Harbin, 1909
Das várias instituições que os judeus
fundaram em Harbin, podemos citar duas sinagogas – a Sinagoga Main ou Sinagoga
Velha e a Sinagoga Nova, uma Biblioteca, uma *Talmude Torá, duas escolas, uma
primária e uma secundária, um cemitério, a Associação de Mulheres Judias de
Harbin, ligada à *WIZO, uma Cozinha Económica, um lar para idosos e um
hospital, que recebia a população em geral.
Em Harbin os judeus gozavam de direitos de cidadania, que lhes eram
negados na Rússia. Estes direitos mantiveram-se quando os sovietes subiram ao
poder.
Loja
Popular Slutzky, Harbin, 1925
Entre 1918 e 1930 a comunidade judia de Harbin publicava cerca de 20
jornais e periódicos, todos em russo, à excepção do jornal Der Vayter Mizrekh (O Extremo Oriente), em yiddish. O russo era a língua franca, usada por judeus e gentios,
incluindo os seus empregados chineses e respectivos associados. Os harbintsi dinamizavam uma série de
movimentos políticos, religiosos e laicos, pró-sionistas e anti-sionistas;
mantinham uma gama alargada de profissões: eram comerciantes, pasteleiros,
marceneiros, operários, engenheiros, arquitectos, professores, artistas,
empresários…
O professor de
piano David Gutman com alunos
O contributo dos judeus foi igualmente importante para a fundação e
dinamização de outras instituições como uma Escola de Comércio, uma Orquestra
Sinfónica e uma Escola de Música, o primeiro Conservatório da Manchúria.
Turma
da Escola de Comércio em Harbin, 1925
Após a Revolução Bolchevique refugiaram-se em Harbin muitos Russos
Brancos, que levaram consigo um anti-semitismo virulento. Em 1931 formaram o
Partido Fascista Russo de Harbin, o mesmo ano em que o Japão invadiu o Norte da
China e a Manchúria.
Exército
Imperial de Manchukuo, 1932-1945
Os japoneses criaram um Estado fantoche denominado Manchukuo e colocaram
no trono o último imperador da China, Pu-Yi. Os cerca de 40 milhões de chineses
da região, maioritariamente camponeses, foram transformados em mão de obra
escrava e as suas terras entregues a imigrantes japoneses.
Em 1932 as tropas japonesas ocuparam
Harbin, integrando-a no Estado Manchukuo. Os japoneses começaram imediatamente
a expropriar propriedade privada e a aterrorizar a população civil. Recrutaram
espiões entre a escória local e permitiram aos fascistas russos que espalhassem
campanhas difamatórias anti-soviéticas e anti-judaicas. Residentes
estrangeiros, mas também chineses foram raptados, torturados e, por vezes,
assassinados. Como resultado, a maior parte da população judia de Harbin (13
000 dos cerca de 20 000 residentes) fugiu para Xangai e Tianjin; muitos fizeram
aliyah para a Palestina/Israel.
Soldados
soviéticos sentados no trono de Pu-Yi, o último imperador chinês,
Setembro
de 1945
Nos finais da II Guerra Mundial, quando
o Exército Vermelho entrou triunfante em Harbin, restavam cerca de 2 000 judeus
na cidade para saudar os vencedores. Entre 1945 e 1947, as autoridades
soviéticas prenderam arbitrariamente numerosos judeus e “repatriaram-nos” para gulags na Rússia. Em 1949 Harbin passou
a fazer parte da República Popular da China; cerca de 1 000 judeus fizeram aliyah para o recém-formado Estado de
Israel. Em 1955 restavam apenas 319 judeus em Harbin e em 1982 a comunidade
judaica estava reduzida a uma idosa, Anna Agre, que guardava vários arquivos
comunitários debaixo da cama. Morreu em 1985.
Arquitectura
europeia, Av. Zhongyang Diaje, Harbin
Nos anos mais recentes o Governo da
China reconheceu oficialmente a importância da antiga Comunidade Judaica de
Harbin, promovendo o turismo e estabelecendo acordos económicos com diversos
países, incluindo Israel. Os edifícios de características arquitectónicas
europeias, construídos no “período russo”, foram identificados com placas em
diversos idiomas. Muitos deles, como o Hotel Moderne, eram propriedade de
judeus.
Hotel
Moderne, 1930
Hotel
Moderne na actualidade
As duas sinagogas foram recuperadas: a Sinagoga Main, onde funciona um
hotel “no star” (Kazi Hostel), e a Sinagoga Nova, que alberga o Museu de
História e da Cultura Judaica de Harbin.
Sinagoga
Velha ou Sinagoga Main restaurada
Entrada
para o Kazi Hostel – Sinagoga Main
Nova
Sinagoga – Museu Judaico de Harbin
Museu
Judaico de Harbin - exposição permanente
Huangshan
Jewish Cemetery
Em 1952, cerca de 600 campas do cemitério judeu original foram
transladadas para o novo cemitério, o Huangshan Jewish Cemetery. Todos os anos
muitos descendentes de Judeus de Harbin visitam as campas dos seus familiares.
Duas
crianças, uma chinesa e um israelita, tocam piano juntos numa Master Class para
jovens pianistas de talento excepcional, no Centro de Música de Jerusalém
Em 2002 a Universidade de Heilongjiang, faculdade de Estudos Ocidentais,
em Harbin, fundou o Sino-Israel Research and Study Center, que é dirigido desde
então pelo Professor israelita Dan Ben-Canaan. A parceria entre a China, o país
mais populoso do mundo, e Israel é cada vez mais estreita, desenvolvendo-se nas
áreas tecnológica, industrial, académica, da medicina e das artes.
Antigos membros da Comunidade Judaica de Harbin e seus descendentes,
hoje espalhados pelo mundo, mantêm contacto entre si. Cultivam, igualmente, um
respeito profundo pelo povo chinês, que sempre acolheu os judeus sem a menor
sombra de preconceito.
*Talmude Torá – escola
judaica elementar para estudo da Língua Hebraica, da Torá e do Talmude,
destinada a alunos com poucos recursos.
*WIZO – – Women’s International Zionist Organization
Este
artigo é a continuação do trabalho da,
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada
Beijinhos
J
Fontes: