sexta-feira, 17 de outubro de 2014

By Lord Sacks | 2014-10-16


Bereshit






















Bereshit é a abertura do mais famoso, majestoso e influente de todos os livros de literatura: "No princípio, Deus criou os céus e a terra." O que é infinitamente estranho é a maneira como Rashi – o mais amado de todos os comentaristas judeus - começa seu comentário:

Rabbi Isaac disse: A Torá deveria ter começado com o versículo (Êxodo 12: 1): "Este mês será para vós o primeiro dos meses", que foi o primeiro mandamento dado a Israel.

Será que podemos realmente interpretar esta frase pelo seu valor literário? Será que o rabino Isaac, sobre este assunto de Rashi, sugere seriamente que o Livro dos livros pode ter começado no meio – a um terço do caminho para Êxodo? Que ele poderia ter passado em silêncio a criação do universo - que é, afinal, um dos fundamentos da fé judaica? 

Podemos entender a história de Israel sem a sua pré-história, as histórias de Abraão e Sara, e dos seus filhos? Poderíamos ter entendido essas narrativas sem saber o que os precederam: a repetida decepção D’us com Adão e Eva, Caim, a geração do dilúvio, e os construtores da torre de Babel? 




Os 50 capítulos do Génesis, juntamente com a abertura do Êxodo, é o livro de referência da fé bíblica. Eles são o mais próximo que podemos chegar a uma exposição da filosofia do Judaísmo. O que quer então o Rabi Isaac dizer com isto?

Ele quis dizer algo profundo, que muitas vezes esquecemos. Para entender um livro, precisamos saber a que género pertence. É história ou lenda, crónica ou mito? Para cada pergunta há uma resposta? Um livro de história responde à pergunta: o que aconteceu? Um livro de cosmologia - seja ciência ou mito - responde à pergunta: como é que isso aconteceu?

O que o rabino Isaac nos está a dizer é que, se procuramos compreender a Torá, devemos lê-la como Torá, o que quer dizer: a lei, instrução, ensino e orientação. Torá é uma resposta para a pergunta: como devemos viver? É por isso que ele levanta a questão de saber por que não começar com o primeiro mandamento dado a Israel. 





A Torá não é um livro de História, ainda que inclua história. Não é um livro de ciência, mesmo que o primeiro capítulo do Génesis - como o sociólogo do século XIX, Max Weber apelidou - é o prelúdio necessário para a ciência, porque representa a primeira vez que as pessoas viam o universo como o produto de uma única vontade criativa - e, portanto, como inteligível em vez de caprichosa e misteriosa. Trata-se, primeiro e último, de um livro sobre como viver. Tudo que ele contém - não só os mandamentos, mas também as narrativas, incluindo a narrativa da própria criação - estão lá apenas por uma questão de instruçãob e ética  espiritual.

A ética judaica não se limita à Lei. Ela inclui virtudes do carácter, princípios gerais e modelos. Ela é transmitida não apenas pelos mandamentos, mas também pelas narrativas, dizendo-nos como indivíduos particulares responderam a situações específicas.

Ela move-se a partir dos mínimos detalhes para as visões mais majestosas do universo e mostra-nos como nos enquadramos nele. Mas nunca se desvia do cerne da questão: O que devo fazer? Como devo viver? Que tipo de pessoa me deveria eu tornar através do meu esforço?




Começa em Génesis I, com a questão mais fundamental de todas. Como por exemplo a que o Salmo (8, 4) nos coloca: "O que é o homem para que te lembres dele?"






Uma oração do século XV de Pico della Mirandola sobre a dignidade do homem foi um dos pontos de viragem da civilização ocidental, o "manifesto" da Renascença italiana. Nela, ele atribuiu a seguinte declaração a D'us, dirigindo-se ao primeiro homem:



"Deu-lhe, a Adão, um ser sem rosto adequado para si mesmo, a correcta dotação  para si, com a finalidade de que seja qual for o lugar, sob qualquer forma, seja quais forem os presentes que  seleccionar, com premeditação,  estes mesmos que  pode e deve  possuir através de seu próprio julgamento e decisão. A natureza de todas as outras criaturas é definida e restrita dentro das leis que temos estabelecidas; nós pelo contrário, não estamos impedidos por nenhuma dessas restrições, por isso podemos por nossa própria vontade,  traçar a nossa própria natureza. Eu,   (D'us), coloquei-vos no centro do mundo, de modo que a partir deste ponto de vista vocês possam  olhar em volta  e ver tudo o que o mundo contém. Fizemos-lhe uma criatura nem do céu, nem da terra, nem mortal nem imortal, a fim de que vocês possam, moldar  livremente e com orgulho o vosso próprio ser, molda-lo na forma que vocês preferirem. Estará em vosso poder o descer às formas inferiores e brutais da vida; vocês serão capazes, por meio de sua própria decisão, de subir novamente às ordens superiores cuja vida é divina."

O Homo sapiens, com a síntese única de "pó da terra" e sopro de D'us, é único entre os seres criados que não tem essência fixa – será sempre livre de ser o que ele ou ela escolher. 

A oração de Mirandola foi uma ruptura com as duas tradições dominantes da Idade Média: a doutrina cristã de que os seres humanos são irremediavelmente corruptos, manchados pelo pecado original, e a ideia platónica de que a humanidade é limitada por formas fixas. 



Uma outra ideia notavelmente judaica e quase idêntica à dada pelo rabino Joseph Soloveitchik em Halakhic Man, é: "O princípio  fundamental de tudo é que o homem tem de criar-se a si mesmo. Esta é a ideia que o Judaísmo introduziu no mundo. "É, portanto, com grande emoção e reconhecimento que descobrimos que Mirandola tinha um professor judeu, o rabino Elijah ben Moisés Delmedigo (1460-1497).



Nascido em Creta, Delmedigo era um prodígio do Talmude, nomeado ainda muito jovem para ser o líder da yeshiva em Pádua. Ao mesmo tempo, ele estudou filosofia, em particular o trabalho de Aristóteles, Maimónides e Averróis. Aos 23 anos,  foi nomeado professor de filosofia na Universidade de Pádua. Foi através dele que Giovanni Pico della Mirandola,  se tornou tanto seu aluno como seu patrono.

Eventualmente, no entanto, os escritos filosóficos de Delmedigo - especialmente o seu trabalho Bechinat ha-Dat - tornou-se controverso. Outros rabinos chegaram mesmo a acusá-lo de heresia e por isso ele teve de deixar  Itália e voltar para Creta. Delmedigo era muito admirado por judeus e cristãos e, quando  morreu ainda jovem, muitos cristãos, bem como judeus compareceram no seu funeral.





Esta ênfase na escolha, liberdade e responsabilidade é uma das características mais distintas do pensamento judaico. Proclama-se no primeiro capítulo de Génesis, da maneira mais sutil. Estamos todos familiarizados com a sua afirmação de que D’us criou o homem "à Sua imagem, conforme a Sua semelhança." Raramente fazemos uma pausa para reflectir sobre o paradoxo. Se há uma coisa antiga e sempre enfatizada na Torá, é que D'us não tem imagem. "Eu serei o que Eu serei", diz Ele a Moisés quando ele pergunta o nome Dele.

D'us transcende a natureza – é o ponto fundamental de Génesis I - então Ele é  ilimitado pelas leis da natureza. Ao criar o ser humano à Sua imagem, deu-nos uma liberdade semelhante, criando, assim, o único  ser capaz de ser criativo. O relato sem precedentes de D’us no capítulo de abertura da Torá leva a uma visão igualmente sem precedentes da pessoa humana e da nossa capacidade de auto-transformação.


Como é grande a verdade de Génesis I, ainda permanece. (Bereshit Rabá 8: 1; Sinédrio 38a): "Por que razão o homem foi criado por último? A fim de dizer que, se ele é digno, toda a criação foi feita para ele. Mas ainda assim, o mosquito é seu precedente "A Torá continua a chamada suprema de D’us para a humanidade; a liberdade e criatividade, por um lado e, por outro, a responsabilidade e moderação,  tornando-nos a todos como colaboradores de  D’us no acabamento da criação. 





Texto e Imagens recolhidas de:

Link do texto enviado por Sónia Craveiro
Pintura de D’Anastasio Michel
http://diariojudio.com/parashot/bereshit/

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