BREVE
INCURSÃO NA OFICINA DE
ABRAÃO USQUE
ABRAÃO USQUE
Ferrara, Hondius Joducus
Jr., 1626
Itália foi porto de abrigo para
muitos cristãos-novos portugueses, cuja experiência no comércio transoceânico se
revelou da maior importância numa terra que detinha o principal mercado de
exportação do comércio dos judeus otomanos. No entanto, o regresso ao Judaísmo
era proibido, já que segundo a óptica cristã a conversão dos judeus baptizados
era vista como um crime de apostasia, passível da pena capital.
A presença judaica em Ferrara, uma cidade situada
no norte de Itália e banhada pelo rio Po di Volano (um braço do rio Pó), está
documentada a partir de 1275. Os judeus conheciam uma situação estável e
próspera, que se foi consolidando ao longo dos séculos XIV e XV sob a protecção
da Casa d’Este. Foi justamente sob a protecção de Ercole I d’Este (1431-1505)
que um grupo de refugiados judeus de Espanha se estabeleceu no seu território, dando
assim origem à comunidade sefardita de Ferrara. Durante a primeira metade do
século XVI, marranos portugueses vieram juntar-se aos refugiados espanhóis, em
especial depois da instituição da Inquisição em Portugal.
Brasão
da família Abravanel
A comunidade sefardita de
Ferrara reunia-se à volta do banqueiro Isaac Abravanel, neto do comentador
nascido em Lisboa, do mesmo nome.
Ercole II d’Este, retratado
por Nicolo dell ‘Abate
O duque de Ferrara Ercole II d’Este
(1508-1559) foi o mais poderoso protector dos judeus daquela época. A partir de
1538 fez publicar legislação com vista a acolher na sua cidade todas as pessoas
hispanófonas e lusófonas, concedendo-lhes liberdades «de vir, como cristãos, ou
como judeus». Ferrara, foi ainda a única cidade da Cristandade a amnistiar a
apostasia dos baptizados à força. Todavia, durante o ducado de Alfonso II, uma
decisão papal de 1581 consignada na bula Antiqua
Judaeo-rum improbitas desencadeou uma onda de repressão contra as
comunidades judaicas de Itália, levando a Inquisição romana a perseguir os
cristãos apóstatas. Em Ferrara foram presos vários marranos, acusados de
praticarem a circuncisão (Brit Milá);
cinco destes foram extraditados para Roma e por fim, o praticante de circuncisões
clandestinas José Saralvo foi condenado à fogueira, em 1583.
Alfonso II d’Este,
retratado por Cesare Aretusi
Apesar deste episódio dramático, Alfonso
II teve a habilidade política de renovar os privilégios aos sefarditas,
autorizando-os a acolher os refugiados da Península Ibérica, conquanto não
praticassem a circuncisão nos adultos. Em 1597, Alfonso II morre não deixando
herdeiros varões e em 1598 o ducado de Ferrara é devolvido à Igreja. Os judeus
viram as suas liberdades seriamente limitadas e muitos abandonaram a cidade,
especialmente portugueses.
Planta de Ferrara, finais
séc. XV
O acolhimento que a cidade de
Ferrara deu aos portugueses fugidos de uma pátria intolerante, ainda que
efémero, deixou uma marca duradoura na história judaica, em particular devida
às criações literárias e artísticas que aí se desenvolveram. Os judeus
portugueses cultivavam uma literatura refinada em língua espanhola ou
portuguesa clássica, procurando uma elegância e um esteticismo que os
distinguia dos demais.
Selo
da oficina de Abraão Usque
De realçar, que as perseguições
a que os cristãos-novos portugueses estiveram sujeitos, não constituíram motivo
para que renegassem o país que os viu nascer, como se pode observar no selo da
oficina do editor português Abraão Usque – a esfera armilar do rei D. Manuel de
Portugal.
Bíblia de Ferrara, 1553
Abraão Usque, nome hebraico
adoptado por Duarte Pinel, um latinista de Lisboa, fundou uma oficina de imprensa
nas línguas hebraica, espanhola e portuguesa, que esteve activa entre 1553 e
1557, graças ao apoio da riquíssima Grácia Mendes, a Senhora. O principal feito desta oficina foi a edição da Bíblia e
do ritual sefardita, em tradução judeo-castelhana, dita “Bíblia de Ferrara”. Esta
Bíblia, fielmente reproduzida em numerosas edições, teve uma relação estreita
com os cristãos-novos regressados ao Judaísmo, influenciando a primeira
tradução espanhola efectuada por um cristão, o luterano Casiodoro de Reina, em
1569.
Consolaçam
ás Tribulaçoens de Israel, 1553
Consolação
às Tribulações de Israel é uma obra-prima da literatura portuguesa,
do historiador Samuel Usque (cujo nome de baptismo usado em Portugal continua a
ser desconhecido), impressa na oficina de Abraão Usque, em 1553. A obra,
fazendo uso do diálogo pastoril, muito popular na época, exprime a consciência
atormentada dos cristãos-novos - «esta nossa nação seguida & afugentada
agora dos reinos de Portugal». O protagonista, o pastor Icabo (Jacob), que
representa «toda a nação de Israel», narra as tribulações do povo judeu desde
os tempos bíblicos até às perseguições inquisitoriais contemporâneas, a dois
amigos pastores «Zicareo» e «Numeo», alegorias da Memória e da Consolação, que
são igualmente os profetas da Bíblia, Zacarias e Naum.
Samuel Usque procura, através da alegoria
literária, exortar os seus correligionários, os “Senhores do Desterro de
Portugal”, a regressar ao Judaísmo, argumentando que o tempo do Messias é
chegado – consolação final do livro.
História
de Menina e Moça, Bernardim Ribeiro, Ferrara, 1554
Uma das figuras mais
enigmáticas do Renascimento Português é, sem dúvida, Bernardim Ribeiro. Dele
sabe-se que colaborou no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende, deduzindo-se, portanto, que pertenceu à roda
dos poetas palacianos, como Sá de Miranda ou Gil Vicente. A sua obra mais
emblemática é o romance Saudades,
mais conhecido como Menina e Moça, um
clássico da nossa literatura. O romance foi editado em 1554, na oficina de
Ferrara de Abraão Usque, sob o título História
de Menina e Moça.
Menina e moça me levaram de
casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha
levada*, era ainda pequena, não a soube.
*Partida
forçada
A «Menina» recorda a infância e todas as mudanças funestas que
marcaram tragicamente a sua vida. Segundo o investigador literário Hélder
Macedo, ao evocar o afastamento de casa,
o autor introduz logo no início o tema do desterro
ou exílio, tema-chave da obra, porque
está na base dos sentimentos que caracterizam as personagens e as identificam
entre si: a tristeza, a saudade. Ignora-se, porém, de que exílio se trata:
amoroso (afastamento da pessoa amada), político (referência às perseguições aos
judeus portugueses), ou místico (alusão à Cabala).
Juntamente com as obras de Bernardim
Ribeiro são editadas obras de Cristóvão Falcão e vários outros.
Lisboa Ribeirinha na primeira metade do séc. XVI. Detalhe de uma iluminura de Simão Bening (1483-1561) in Genealogia dos Reis de Portugal de António de Holanda, Museu Britânico, Londres.
Jorge de Montemor, também
conhecido como Jorge de Montemayor, é um poeta/músico que adoptou como nome, o
da sua terra natal, Montemor-o-Velho, na região de Coimbra. O seu
romance Diana, editado em Ferrara, é
escrito em castelhano, língua da sua eleição. É também em castelhano que
escreve a canção Flerida en cuja mano,
que faz parte do Cancioneiro Musical de Belém. É com ela que terminamos este
artigo. A interpretação é do grupo Segréis
de Lisboa, sob a direcção de Manuel Morais.
Flerida en cuja mano/esta mi
triste vida/no triste mas dischosa estando nella
Pues no te sirves della/bien es
que io la nege/que aun que estoi olvidado
Amor de mi cuidado/y el coraçon
cansado no soçiega/seras en toda cosa
Flerida a min sabrosa
Este artigo foi elaborado pela
nossa amiga
Sónia Craveiro
Muito obrigada J
Beijinhos
Fontes:
WILKE,
Carsten L., HISTÓRIA DOS JUDEUS
PORTUGUESES, Edições 70;
DICIONÁRIO DO JUDAÍSMO PORTUGUÊS, EDITORIAL PRESENÇA;
FERREIRA,
Maria Ema Tarracha, ANTOLOGIA LITERÁRIA
COMENTADA – Época Clássica, século XVI – I parte – Gil Vicente & Bernardim
Ribeiro, EDITORA ULISSEIA;
LOPES,
Óscar, SARAIVA, António José, História da
Literatura Portuguesa;
MORAIS,
Manuel, CANCIONEIRO MUSICAL DE BELÉM,
IMPRENSA NACIONAL – CASA DA MOEDA.
Boa-noite
ResponderEliminarMontemor-o-Velho é uma vila e não uma cidade, situada entre Coimbra e Figueira da Foz. Para além do seu castelo, umas das ruas principais de acesso ao Castelo, denomina-se por "rua da Judiaria".
Cumprimentos
JM
Boa noite Joaquim,
EliminarMuito obrigada pelo seu reparo, tem toda a razão. Foi um lapso da nossa parte mas que já corrigi.
Gratas pela atenção que nos dispensou,
ZD e SC