Heroísmo em Pessach
Pintura de Myriam
Yusgoslávia
A história de Pessach é uma das mais conhecidas. Tem sido
contada por mais de três mil anos. O que mais me fascina, entretanto, é um
aspecto poucas vezes mencionado. Pergunte a qualquer pessoa, judeu ou
não-judeu, quem é o herói humano do Êxodo, e a resposta certamente será: Moisés,
o libertador, profeta e lutador pela justiça.
Porém a Torá conta uma história mais complexa e inesperada.
Juntamente com Moisés - tornando sua missão, até mesmo sua vida, possíveis -
estão outras seis figuras, todas mulheres. Estranho como possa parecer, os
heróis do êxodo são heroínas.
Quem foram elas?
A primeira foi Yocheved, esposa de Amram, e mãe das três
pessoas que se iriam tornar nos grandes líderes dos israelitas, Miriam, Aharon
e o próprio Moisés. Foi Yocheved que, no auge da perseguição egípcia, teve a
coragem de ter um filho, escondê-lo por três meses, e então arquitectar um
plano para lhe dar uma chance de ser resgatado. Sabemos muito pouco sobre
Yocheved. A sua primeira aparição na Torá, não é nomeada. Mesmo assim, lendo a
narrativa, não temos dúvidas sobre sua bravura e presença de espírito. Não foi
por acaso que seus filhos se tornaram todos líderes.
A segunda foi Miriam, filha de Yocheved e irmã de Moisés. Foi ela quem vigiou o bebé enquanto o cestinho flutuava rio abaixo, e quem se
aproximou da filha do faraó com a sugestão de que ele fosse amamentado em meio
a seu próprio povo. Uma vez mais o texto bíblico pinta um retrato da jovem
Miriam como uma figura de invulgar coragem e presença de espírito. A tradição
rabínica vai mais além. Em um notável midrash,
lemos como a jovem Miriam enfrentou o pai, Amram, e persuadiu-o a mudar de ideia.
Informado sobre o decreto dizendo que cada bebê judeu do
sexo masculino seria afogado no rio, Amram apelou aos israelitas a
divorciarem-se, para que não mais houvesse crianças. Havia uma certa lógica
nisso. Seria certo trazer crianças ao mundo, se havia 50% de chance de que
fossem assassinadas logo ao nascer? Mesmo assim, Miriam diz a tradição,
queixou-se a ele: "Seu decreto," disse ela, "é pior que o do
faraó. O dele afeta apenas os meninos; o seu afeta a todos os bebés. O decreto
dele priva as crianças da vida neste mundo; o seu os privará da vida até no
mundo vindouro." Amram cedeu, e como resultado, nasceu Moisés. A
implicação da história é clara - Miriam tinha mais fé que seu pai.
A terceira, e de certo modo a mais intrigante, é a filha do
faraó, que a tradição chama de Batya. Foi ela quem teve a coragem de resgatar
uma criança israelita e criá-la como sua, no próprio palácio onde seu pai
tramava a destruição do povo judeu.
Podemos imaginar uma filha de Hitler,
Eichmann ou Stalin a fazer o mesmo? Existe algo ao mesmo tempo heroico e
gracioso sobre esta figura apenas esboçada, a mulher que deu o nome a Moisés.
A quarta faz sua aparição mais tarde na narrativa. Tsipóra,
a mulher de Moisés. Filha de um sacerdote medianita, mesmo assim está
determinada a acompanhar Moisés em sua missão no Egito, apesar de não ter razão
alguma para colocar em risco sua vida em uma aventura tão delicada.
Numa
passagem profundamente enigmática, é ela quem salva a vida de Moisés ao
realizar a circuncisão em seu filho. Temos sobre ela a impressão de ser uma
figura de tremenda determinação que, no momento crucial, entendeu melhor que o
próprio Moisés a vontade de D'us.
Deixei para o final as figuras que aparecem primeiro, porque
são elas que mais fizeram para alargar os horizontes morais da humanidade.
Refiro-me às duas parteiras, Shifrá e Puá, que frustraram a primeira tentativa
do faraó de cometer genocídio. Instruídas a matar as crianças israelitas na
hora do nascimento, elas;
"temeram a D'us e não fizeram aquilo que o rei do
Egito lhes ordenou fazer e deixaram os meninos viver."
Intimadas e acusadas de desobediência, enganaram o faraó inventando
uma engenhosa história: as mulheres judias, disseram elas, são fortes, e deram
à luz antes que chegássemos. Escaparam do castigo e salvaram vidas.
A importância desta história é que trata-se do primeiro
exemplo que conheço de uma das maiores contribuições do Judaísmo à civilização;
a ideia de que há limites morais para o poder. Existem instruções que não devem
ser obedecidas. São crimes contra a humanidade, que não podem ser desculpados
sob a alegação de que "eu estava apenas cumprindo ordens."
Este conceito, geralmente conhecido como 'desobediência
civil,' é comummente atribuído ao escritor americano do século XIX Henry David
Thoreau, e penetrou na consciência internacional após o Holocausto e os
Julgamentos de Nuremberg. Sua verdadeira origem, entretanto, remonta a milhares
de anos antes, nas acções de duas mulheres, Shifrá e Puá. Com sua coragem não
declarada, mereceram um incomparável tributo entre os heróis da vida moral.
Elas nos ensinaram a primazia da consciência sobre o conformismo, da lei da justiça
sobre a lei do país.
Neste Pessach, contemos a história das mulheres cuja fé,
coragem e recursos morais tornaram possível o êxodo. "Foi por causa de
mulheres justas," disseram os sábios, "que nossos ancestrais foram
redimidos do Egipto." Sua memória ainda tem o poder de trazer-nos
inspiração.
Fonte:
http://www.pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/1174372/jewish/Herosmo-em-Pssach.htm
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