sábado, 1 de setembro de 2018

“KOL NIDREI”




UMA HISTÓRIA POR CONTAR


O Talmude a ser carregado em Paris para ser queimado. Diorama de uma Exposição 
do Museu do Povo Judeu (Beit Hatfutsot), Telavive.


    A 12 de Junho de 1242, vinte e duas carroças carregadas com milhares de volumes do Talmude da Babilónia chegam a uma das principais praças de Paris. Os rumores já se haviam espalhado e uma multidão, conduzida pelo apóstata judeu Nicholas Donin, enche as ruas ao redor da Praça Grève para assistir ao grande espectáculo: a queima dos livros judaicos.

     Na base desta sentença encontram-se acusações de Nicholas Donin, entre elas a de que os judeus usavam o texto da oração Kol Nidrei, que permite ao crente a quebra dos seus votos, como forma de escapar ao pagamento de dívidas e assim explorar os gentios.



Maurycy Gottlieb, Judeus em oração na Sinagoga em Yom Kippur, 1878, 
Museu de Arte de Telavive.


    No Yom Kippur, ou «Dia da Expiação», recitam-se súplicas e orações ao longo do dia para implorar o perdão de Deus. A oração Kol Nidrei abre o serviço da noite. Kol Nidrei entrou no ritual como uma fórmula de anulação de promessas feitas a Deus, sem no entanto suprimir as obrigações que um homem possa ter assumido para com outro. É convicção inabalável do Judaísmo que as orações do homem, inclusive as do Yom Kippur, só podem expiar os pecados cometidos para com Deus; os que porventura foram cometidos em prejuízo de outras pessoas não serão perdoados senão pelas pessoas ofendidas.



Kol Nidrei, Machzor de Worms, c. 1272 a 1280, Biblioteca Nacional de Israel, Jerusalém.


     Não havendo certezas quanto à data da criação do Kol Nidrei, assume-se que é do período dos Geonim (século VII a XI). Os Geonim (literalmente “excelência” ou “esplendor”) estavam à frente das Academias Talmúdicas da Babilónia e representavam uma autoridade religiosa e espiritual, reconhecida na generalidade do mundo judaico. 

De acordo com certas fontes actuais, os Geonim rejeitaram o Kol Nidrei por recearem uma deterioração moral causada por crentes pouco escrupulosos relativamente aos próprios votos. Este receio seria mais tarde partilhado por Maimónides, que desprezou a oração nos seus trabalhos. Rashi considerou que o Kol Nidrei se destinava apenas a quebrar votos esquecidos. O texto foi finalmente aprovado e incluído nas orações de Yom Kippur, em 1565, pelo rabi Yosef Caro, autor do “Shulchan Aruch”, o código legal mais consultado do Judaísmo.

     No sentimento dos Judeus, a oração Kol Nidrei ficou ligada às sinagogas secretas dos «marranos» na Espanha medieval. Convertidos pela força ao Cristianismo, os «marranos» ter-se-ão autorizado a si mesmos a recitar as orações do Yom Kippur em boa consciência, depois de terem anulado os votos pronunciados para com uma outra fé professada à força.


A DENÚNCIA DO TALMUDE


Rafael, Papa Gregório IX, fresco, 1511, Palácio Pontifício, Vaticano.


     Nicholas Donin, judeu de La Rochelle, estudou na Yeshiva de Paris, então sob a direcção do reputado rabi Yehiel ben Joseph. Porém, as suas posições face aos textos sagrados e à Lei Oral eram de tal forma radicais que acabou por ser expulso da instituição e em 1225 excomungado da congregação. Anos mais tarde converteu-se ao Cristianismo, vindo a integrar a Ordem Franciscana. Nutrindo um ódio profundo aos seus antigos correligionários, o seu primeiro acto de retaliação foi instigar os Cruzados a uma perseguição sangrenta aos judeus da Bretanha. Em Poitou e Anjou foram assassinados 3000 judeus; 500 aceitaram a alternativa do baptismo.

     Em 1236, Donin enviou ao papa Gregório IX uma denúncia formal contra os judeus, em geral, e contra o Talmude, em particular. Dos 35 artigos acusatórios que elaborou, constam acusações particularmente sensíveis à doutrina cristã, tais como o Talmude conter blasfémias contra Jesus e Maria, ataques à Igreja, agravos a não-judeus e outras falsidades. Donin concluiu que o Talmude era o real impedimento à conversão dos judeus ao Cristianismo. 


A GRANDE DISPUTA DE 1240


Luís IX de França, Bíblia de São Luís (Bíblia Moralizada), França, c. 1227-34, 
The Morgan Library and Museum, Nova Iorque.


   Gregório IX aceitou as denúncias de Donin e decidiu enviá-las aos reis de França, Inglaterra, Castela, Aragão e Portugal, e a todos os principados italianos. Neste âmbito, os bispos daqueles países deveriam proceder ao confisco de todos os exemplares do Talmude, o qual deveria ser executado no primeiro sábado da Quaresma de 1240. Luís IX de França foi o único monarca a obedecer à ordem papal. Além de obedecer à ordem papal, Luís de França promoveu uma disputa pública, a que se seguiu um julgamento do Talmude. A acusação era constituída por cinco clérigos, entre eles Donin e o cardeal Eudes de Châteauroux, reitor da Universidade de Paris; a defesa por quatro rabis, todos renomados Tosafistas franceses, liderados por Yehiel ben Joseph de Paris. No final, e sem surpresas, o tribunal considerou o Talmude uma “obra herética” e condenou-o à fogueira. Dois anos mais tarde, a 12 de Junho de 1242, os preciosos livros foram solenemente queimados.


A Queima dos Judeus, “Crónicas de Nuremberga” (Liber Chronicarum), 
impresso em Nuremberga, 1493.


    Os acontecimentos ocorridos em Paris entre 1240 e 1242 provocaram vagas de difamação e de perseguição às comunidades judaicas, cada vez mais violentas e com consequências cada vez mais dramáticas. A Disputa de Paris extravasou fronteiras, servindo de modelo a outras disputas públicas, nas quais os rabis eram obrigados a defender-se de acusações cristãs apresentadas por prelados e apóstatas. Destaquemos a de Barcelona, realizada em 1263, que opôs o Ramban (Nachmanides) a Pablo Christiani, um judeu convertido ao Cristianismo. Nachmanides (que mantinha relações privilegiadas com cristãos) venceu a disputa, sendo agraciado pelo rei Jaime I de Aragão. Mas a sua vitória despoletou a ira dos Dominicanos e, aos 70 anos de idade, Nachmanides viu-se forçado a fugir de Espanha. Encontrando refúgio na Terra Santa, viveu primeiro em Jerusalém, onde fundou uma sinagoga (ainda hoje aberta ao culto) — a Sinagoga Ramban — e depois estabeleceu-se em Acre, onde escreveu o seu famoso comentário da Torah.


JURAMENTUM MORE JUDAICO


Juramento de um Judeu (de pé, em cima de uma pele de porco, apontando para uma Torah). Manuscrito Alemão Schwabenspiegel, f.204r, ilustrador Diebold Lieber, c.1425, Biblioteca Real da Bélgica, Bruxelas.


     Instituído na Idade Média, o Juramentum More Judaico ou Juramentum Judaeorum era uma forma de juramento a que os judeus eram submetidos em processos judiciais com não-judeus. Tanto o texto do juramento, como o simbolismo do ritual, cujo objectivo era o de assegurar que os judeus honrassem compromissos assumidos com gentios, eram explícitos quanto ao castigo atribuído, caso o judeu prestasse falso testemunho. Acima de tudo, o cerimonial destinava-se a humilhar o judeu, numa demonstração de absoluto desprezo. Eis alguns exemplos dos rituais aviltantes que acompanhavam o juramento:

•           França: o ritual era realizado no interior de uma sinagoga com as portas da Arca Sagrada completamente abertas; o judeu, de joelhos, tinha de usar um espinho entre as pernas muito juntas e um colar de espinhos à volta do pescoço;

•           Silésia: o judeu tinha de ficar de pé num banco de três pernas e de cada vez que caía pagava uma multa, perdendo finalmente o caso se caísse quatro vezes;

•           Roménia: o judeu tinha de permanecer deitado com uma vela suspensa sobre a cabeça, ao mesmo tempo que um chifre era soprado 7 vezes e lhe era lida a “Canção de Moisés”; por fim, o judeu colocava as mãos sobre uma Torah e recitava os versos do “Shemá Israel”, enquanto o juiz o ameaçava e à sua família.

     Esta prática degradante vigorou na Europa até meados do século XIX, sendo definitivamente abolida em 1869. Contudo em 1902 um tribunal na Roménia ainda fez uma actualização do juramento.

     O Juramentum More Judaico, embora inserido num quadro geral de anti-semitismo, depois do Julgamento do Talmude ficou intimamente associado ao significado pejorativo que as autoridades cristãs atribuíram à oração Kol Nidrei, incorporando um objectivo particular: o de anular os efeitos da oração.



Isidor Kaufmann, “Dia da Expiação”, c.1907


   KOL NIDREI — Todos os votos, as proibições, os juramentos, os anátemas, as interdições, os empenhos e os compromissos que a nós mesmos impusermos, seja por voto solene, juramento, anátema ou auto-imposição a partir deste Yom Kippur até ao próximo Yom Kippur - que venha a nós em paz -, todos eles são declarados completamente nulos, não ocorridos e inexistentes. Nossos votos não são votos, nossos compromissos não são compromissos e nossos juramentos não são juramentos. 





Kol Nidrei, Cantor Azi Schwartz, Yom Kippur, 2016, Sinagoga de Park Avenue,
Nova Iorque.


     A melodia sublime do Kol Nidrei, provavelmente a mais célebre de todas as da liturgia judaica, inspirou compositores como Beethoven, onde a mesma é reconhecível no seu Quarteto de Cordas nº14, em Dó sustenido menor, ou Max Bruch que a transpôs para violoncelo e orquestra. Terminamos este artigo com o Kol Nidrei, Op.47, de Max Bruch, num concerto realizado no Vaticano, em memória das vítimas do Holocausto. 




Kol Nidrei para violoncelo e orquestra de Max Bruch.  Concerto em memória das vítimas do Holocausto. Vaticano, Roma,7 de Abril de 1994.


GMAR CHATIMAH TOVAH!

Artigo de
Sónia Craveiro
Muito obrigada

Fontes:

HERTZFELD, Arthur, JUDAÍSMO, O grande perdão (Yom Kippur), Editorial Verbo, 1981
https://fr.wikipedia.org/wiki/Proc%C3%A8s_du_Talmud
http://www.morasha.com.br/historia-judaica-na-antiguidade/a-queima-do-talmud.html http://www.jewishvirtuallibrary.org/oath-more-judaico-or-juramentum-judaeorum
http://en.wikipedia.org/wiki/Nahmanides
https://www.jewishhistory.org/the-early-geonic-period/