Procissão das Cruzes ou a Matança dos Judeus
Cavaleiros Guardiães de Santa Maria do Olival
Cavaleiros Guardiães de Santa Maria do Olival
Já se chamou a “Matança dos Judeus”. Agora é comum
designar-se por Aleluia ou Cortejo das Cruzes. Acontece todos os anos em Cem
Soldos, aldeia do concelho de Tomar. Há quem diga que a tradição tem mais de
quinhentos anos. A Igreja Católica não se intromete.
Por: Elsa Ribeiro Gonçalves
Cortejo das Cruzes Cem Soldos
Os sinos repicam alegremente. É domingo de Páscoa e ainda
não são dez horas. Pelas ruas de Cem Soldos, freguesia da Madalena, em Tomar,
ouve-se gritar: “Aleluia, Aleluia. Já ressuscitou o Nosso Senhor”. Apesar do
tom religioso o pároco não participa. A frase que anuncia a Ressurreição é
repetida até à exaustão. As vozes vão ficando roucas à medida que o tempo
passa.
Organiza-se um cortejo que integra pessoas de todas as
idades. Os rapazes e os homens levam nas mãos cruzes feitas de cana, enfeitada
com flores campestres como aleluias, goivos, malmequeres, lírios ou jarros. As
raparigas e mulheres levam ramos de flores. Tudo começou a ser preparado na
Sexta-feira Santa.
Cruzes feitas de cana e enfeitadas com flores
No meio da multidão que se desloca em magote, e que durante
hora e meia percorre todas as ruas da aldeia em passo acelerado destacam-se
duas canas pela extravagância das suas dimensões e que, devido aos fios
eléctricos, exigem redobrada atenção por parte de quem as transporta. Uma tem
seis metros e meio, outra pouco menos. Mas no cortejo encontram-se canas de
todos os tamanhos.
Carlos Godinho é um dos veteranos do “Cortejo das Cruzes”
que sai à rua todos os anos em Cem Soldos e que termina com um ritual
denominado “A matança dos Judeus”, no qual as canas e os ramos são destruídos
com violência no portal da igreja da aldeia. É dele a cana mais alta, recolhida
de véspera num canavial das redondezas e que demorou uma tarde a ficar pronta.
A técnica é simples mas requer concentração: com um canivete limpa-se a cana, mete-se
um arco em fio ou arame para colocar as flores de várias qualidades que foram
separadas em raminhos e que, confessa, são apanhadas no campo ou “roubadas” em
quintais de vizinhos. A cana em questão foi isolada, de propósito, de outras
para que pudesse atingir tamanha dimensão. “Um incentivo para que os mais novos
reconheçam a importância desta tradição”, explica a O MIRANTE.
“A matança dos Judeus”, no qual as canas e os
ramos são destruídos com violência no portal da igreja da aldeia
Atento à conversa, Horácio Mourão segura a sua cana de 5
metros e meio. Também ele se entregou de corpo e alma à elaboração da sua cana,
a mesma que no final da procissão vai destruir num ápice e com grande destreza
em frente à igreja de S. Sebastião. Não o incomoda tanto trabalho para nada. A
tradição fala mais alto.
O evento é essencialmente popular. Não é ordenada por
nenhuma regra litúrgica e daí o distanciamento da Igreja. Para uns a destruição
das cruzes significa a libertação de Cristo da Cruz. Para outros um gesto de
vingança pela sua morte e daí a designação que tem vindo a ser abandonada de
“Matança dos Judeus”. Há quem opte por não partir a cruz feita de cana e flores
e a vá depositar à tarde no cemitério, em homenagem aos entes queridos que já
partiram.
Os jovens que encabeçam a procissão são os que completam 20 anos.
Jovens que noutros tempos estariam no ano “das sortes”, ou seja, o ano em que
iriam fazer a inspecção militar, explica Francisca Costa. Actualmente o grupo é
constituído por rapazes e raparigas. É o “pessoal do ano”. O rapaz mais velho
leva uma cruz e os restantes pequenos sinos. Envergam as opas vermelhas da
confraria do Santíssimo Sacramento de Cem Soldos. São eles que organizam tudo
como de um momento iniciático para a vida adulta se tratasse. São eles que no
final vão apanhar os restos das canas partidas que têm como destino o contentor
do lixo.
A verdadeira Matança dos Judeus
A “Matança da Páscoa” ocorrida em Lisboa em 1506. Reza a história que o
país atravessava uma seca prolongada e surtos de peste. A 19 de Abril, na
Igreja de São Domingos, alguém afirmou que vira o rosto de Cristo iluminado num
dos altares, ao que outra pessoa terá dito que seria um reflexo do sol.
Identificado como cristão-novo, foi imediatamente agredido e espancado até à
morte. O rastilho estava pronto: um frade dominicano prometeu indulgências a
quem matasse os hereges. Durante três dias, em plena Semana Santa cristã,
Lisboa assistiu a pilhagens, violações, mortes e duas fogueiras improvisadas no
Rossio e na Ribeira, com o rei e a corte fora da capital. Com o regresso do rei
D. Manuel a Lisboa, os bens dos responsáveis foram confiscados, o frade
instigador foi condenado à morte e o convento fechado durante alguns anos. Mas
o massacre estava consumado.
Publicado por Elsa Ribeiro Gonçalves
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