1948. Av. Princesa Mary, agora Rua Shlom Tziyon HaMalka, Jerusalém. (A Administração Britânica usava arame farpado para bloquear certas zonas da cidade — zonas de segurança—, que ficaram conhecidas por Bevingrad, em referência ao Ministro Britânico dos Negócios Estrangeiros, Ernest Bevin)
Os confrontos ocorridos na Palestina durante o Mandato Britânico, que muitas vezes atingiam os britânicos ou exigiam intervenção britânica, tiveram efeitos no apoio do Reino Unido ao território. Já em 1929, alguma imprensa do Reino Unido fazia eco de uma opinião pública favorável à saída britânica da Palestina. A contestação à permanência na Palestina subiria de tom no período da II Guerra Mundial, quando o esforço de guerra exigido aos britânicos fez esmorecer o suporte do país ao Mandato na Palestina.
1947. Plano de Partilha para a Palestina proposto pela Assembleia Geral da ONU
Em 1946 o Reino Unido concedeu independência à Jordânia e declarou que terminaria o Mandato para a Palestina em Maio de 1948. Nestas circunstâncias, a “Questão da Palestina” passou para a recém-formada Organização das Nações Unidas, que desenhou um Plano de Partilha, aprovado pela sua Assembleia Geral a 27 de Novembro de 1947, com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções.
O Plano de Partilha, que visava a criação de dois Estados — um árabe e outro judaico —, atribuía a Jerusalém o estatuto de cidade internacional. Assim, Jerusalém estaria fora do controlo, tanto judeu, como árabe, mas cravada no centro de um enorme segmento do futuro Estado Palestiniano. Aliás, a porção árabe contemplava o grosso da zona histórica, ao passo que a judaica, embora mais extensa, englobava os áridos desertos Negueve e Arava. Apesar das condições, o plano foi aceite pela Agência Judaica para a Palestina. Os líderes e os governos árabes, por outro lado, rejeitaram o plano e manifestaram a sua discordância a qualquer divisão do território.
1947. Combatentes árabes nas muralhas de Jerusalém. Fotógrafo: Khalil Rissass. Arquivos Centrais Sionistas, Jerusalém
A 14 de Maio de 1948, terminado o Mandato Britânico para a Palestina, foi emitida a Declaração da Independência de Israel. A 15 de Maio os exércitos do Egipto, da Síria, da Transjordânia, do Líbano e do Iraque invadiram Israel.
14 de Maio de 1948. Celebrando o Dia da Independência em Jerusalém
(guardado a partir do youtube.com)
Maio de 1948. Árabes fugindo de Jenin. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine
A guerra árabe-israelita de 1948 terminou com a vitória de Israel. Portanto, os israelitas chamam-lhe Guerra da Independência. Os árabes palestinianos chamam-lhe A Catástrofe (Naqba), em virtude do êxodo de cerca de 700 mil árabes que fugiram da Palestina, êxodo que começou ainda em 1947 quando a ONU aprovou o Plano de Partilha.
Voluntários civis carregam um legionário árabe ferido. Maio de 1948, Cidade Velha, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine
A guerra de 1948 fez de Jerusalém uma cidade dividida. Antes de 1948 havia vários bairros árabes em Jerusalém Ocidental. Depois veio o bombardeamento da Jerusalém judaica pelos exércitos jordano e egípcio. Quando tudo terminou, milhares de palestinianos tinham abandonado os seus lares. Nesse mesmo ano, na mesma guerra, cerca de um milhão de judeus orientais dos países árabes foram expulsos e muitos deles acabaram em Israel nas mesmas casas que, antes, tinham pertencido aos palestinianos.
População judia tentando sair de uma parte de Jerusalém já ocupada por forças árabes. Junho de 1948. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine
Enquanto o sector oriental, incluindo a Cidade Velha e os lugares sagrados, foi anexado pela Jordânia, o sector ocidental foi anexado por Israel. Em Junho de 1948 a Legião Árabe expulsou os cerca de 1500 judeus do Bairro Judeu, deixando um rasto de destruição enorme; as sinagogas foram arrasadas, como as icónicas Tiferet Yisrael e Hurva. O rasto de destruição estendeu-se ao histórico Mugrabi, um bairro árabe contíguo ao Bairro Judeu e ao Kotel (Muro das Lamentações).
Um Rabino Sefardita discutindo os termos de rendição do Bairro Judeu na Cidade Velha com soldados da Legião Árabe. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine
Famílias judias deixando a Cidade Velha pela Porta do Sião. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine
Os judeus só voltaram a ter acesso aos lugares sagrados em 1967, quando a cidade foi reunificada após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias. Na Jerusalém reunificada e sob bandeira israelita desde 1967, o Monte do Templo/Haram al-Sharif continua até hoje a ser administrado por um Conselho Islâmico conhecido por Waqf (como acontece desde a reconquista muçulmana de Jerusalém aos Cruzados, em 1187), nomeado pela Jordânia. Entretanto, os judeus só podem visitar o Monte do Templo sob supervisão jordana, não lhes sendo permitido rezar lá, um acordo que os sucessivos governos israelitas observam. Para os judeus os direitos de culto estão circunscritos ao Kotel/Muro das Lamentações, situado numa plataforma junto ao Monte do Templo.
Yom Kippur no Muro das Lamentações, 1904, Jerusalém. Matson Collection,
Library of Congress, Washington D.C.
O Muro Ocidental, HaKotel HaMa’aravi em hebraico, também conhecido por Muro das Lamentações (termo usado essencialmente por cristãos que decorre da prática judaica de, no local, lamentar e chorar a destruição dos Templos), é a única parte que resta do Segundo Templo destruído em 70 EC pelos romanos.
O Kotel, apesar de ser o local mais sagrado do Judaísmo, ou por esse motivo, foi palco de muitas hostilidades entre árabes e judeus durante o Mandato Britânico. A este propósito convém lembrar um incidente ocorrido em Setembro de 1928, cujo aproveitamento político conduziria a uma situação verdadeiramente dramática.
Judeus rezando no Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection, Library of Congress,
Washington D.C.
No dia 24 de Setembro de 1928, feriado de Yom Kippur, os judeus colocaram um tabique em frente ao Kotel, destinado a separar os homens das mulheres durante as orações. A atitude em si não podia ser mais insignificante, mas o Grande Mufti Amin al-Husseini usou-a como pretexto para excitar o fanatismo religioso das multidões árabes. De Outubro de 1928 em diante, o Mufti organizou uma série de protestos para demonstrar a exclusividade árabe às pretensões de propriedade do Monte do Templo, consequentemente acusando os judeus de profanarem propriedade árabe e insinuando que o real objectivo era o de se apoderarem do rochedo de onde Maomé ascendera ao Céu.
Um grupo de judeus olhando para o Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection,
Library of Congress, Washington D.C.
Com autorização das autoridades britânicas, o Mufti al-Husseini, não só ordenou novas construções junto ao Kotel, como converteu um edifício que lhe estava adjacente em mesquita, à qual acrescentou um minarete. Um muezzin foi nomeado para fazer a chamada islâmica para a oração e realizar ritos sufis. No Verão de 1929, o Grande Mufti ordenou ainda a abertura de uma passagem que fazia a ligação do Monte do Templo ao Kotel. Tudo isto foi sentido pelos judeus que rezavam no Kotel como uma provocação. Os judeus protestaram e as tensões aumentaram.
Polícia Britânica de guarda ao Kotel, Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)
No dia 14 de Agosto, depois de vários ataques a judeus que rezavam no Kotel, 6000 judeus manifestaram-se em Telavive, gritando “O Kotel é nosso”. No dia seguinte, jejum de Tisha B’av, 300 jovens ergueram a bandeira sionista no Kotel e cantaram o hino “Hatikvah”. No dia 16, uma multidão organizada de 2000 árabes invadiu o Kotel, agredindo os judeus e queimando livros de orações e outros objectos de culto. Nessa semana os tumultos alastraram a outras zonas de Jerusalém, e também a outras cidades. Os árabes atacavam, os judeus retaliavam. Um dos piores ataques de judeus a árabes ocorreu num bairro entre Jafa e Telavive, onde foram assassinados o Imame da mesquita local e outras seis pessoas. Embora sem mortes a lamentar, mas provocando grandes danos, no dia 26 de Agosto, em Jerusalém, um grupo de judeus atacou a mesquita Nebi Akasha e profanou o Túmulo dos Profetas.
De 23 a 29 de Agosto, grupos de árabes perpetraram os massacres do Hebron e de Safed. Foram assassinados 133 judeus e 339 ficaram feridos; entre os árabes registaram-se 110 mortos e 232 feridos, na sua maioria por polícias britânicos no processo de dominar os tumultos.
1967. Paraquedistas israelitas no Kotel. Fotógrafo: David Rubinger
Durante os dezanove anos de ocupação jordana os judeus foram completamente banidos da Cidade Velha e, por conseguinte, impedidos de rezar no Kotel. Este período terminou a 10 de Junho de 1967, quando o exército israelita retomou o controlo do sítio, após a Guerra dos Seis Dias. Quarenta e oito horas depois de retomarem o controlo do Kotel (que estava transformado em lixeira), os militares, sem ordens explícitas do governo israelita, procederam à demolição do Bairro Marroquino (Mugrabi), que se situava a uns meros quatro metros do Kotel. 106 famílias árabes receberam ordens para abandonar as suas casas.
Kotel, 15/1/2006. Fotógrafo: David Harris
No período pré-1948, o espaço que corria ao longo do Kotel tinha 120 m2. Depois da demolição do Mugrabi, o espaço foi alargado para 2 400 m2.
O Bairro Mugrabi com o Kotel ao fundo, Jerusalém. Matson Collection,
Library of Congress, Washington D.C.
O nome Mugrabi deriva de “Magreb”, referindo-se ao Norte de África, ou especificamente a Marrocos. O Bairro Marroquino ou Mugrabi foi fundado em finais do século XII por um filho de Saladino, Malik Al Afdal, que o dedicou a imigrantes oriundos do Norte de África.
No período pós-1967, muitos residentes do Bairro Marroquino emigraram para Marrocos com a assistência do rei Hassan II. Outros encontraram refúgio noutras zonas de Jerusalém. Em Abril de 1968 o governo israelita expropriou os terrenos do Mugrabi para uso público, indemnizando cada uma das famílias deslocadas com 200 dinares jordanos.
“Jerusalém”, Zeev Raban (1890-1970)Polícia Britânica de guarda ao Kotel,
Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)
“Jerusalém” do poeta israelita
Yehuda Amichai (1924-2000)
Jerusalém
Num terraço da Cidade Velha
há roupa estendida à luz do fim
de tarde:
o lençol branco de uma mulher
que me odeia,
a toalha de um homem que me
odeia,
que ele usa para limpar o suor
do rosto.
Nos céus da Cidade Velha
um papagaio de papel.
No outro lado do cordel,
uma criança
que não consigo ver
por causa do muro.
Içamos muitas bandeiras,
eles içam muitas bandeiras.
Para nos fazer acreditar que são felizes.
Para os fazer acreditar que somos felizes.
Yehuda Amichai. Do livro Poemas, 1948-1962.
A história de Jerusalém desenrola-se ao longo dos séculos com muitos actos de violência. Muitas vezes, talvez demais, cometidos em nome de Deus. A religião é frequentemente acusada de ser a raiz do problema. Acusação injusta que carece de fundamento. Afinal, os regimes comunistas, não esquecendo o nacional-socialismo num passado recente, regem-se por ideais ateus, que estão longe de ser um exemplo de paz e amor. Mas, não sendo a religião o verdadeiro problema, é uma criação humana, e por isso parte do problema. E se é parte do problema, então tem de ser parte da solução. O rabino Jonathan Sacks a este propósito diz uma coisa muito simples, mas muito pertinente: «Se queremos viver a nossa fé em liberdade, então temos de garantir aos outros a liberdade de cultuarem as suas fés. Precisamos de criar espaço teológico para o outro que não é da minha fé, que não pertence ao meu ciclo de salvação».
Hannah Arendt, na sua obra “A Condição Humana” considera que a condição humana é essencialmente trágica. Mas defende que a capacidade de perdoar pode transformar a tragédia em esperança. A tragédia alimenta-se de azedume, de pessimismo, de vingança, de ódio; sentimentos intimidatórios, paralisantes, corrosivos, que conduzem ao fanatismo. E nós precisamos de esperança, não de fanatismo.
Yehuda Amichai, no poema «O lugar onde tenho razão» expressa o fanatismo como só um poeta consegue fazê-lo:
«Do lugar onde temos razão não podem crescer flores na Primavera»
Este ciclo de quatro artigos sobre Jerusalém, que não são mais que uma tímida tentativa para compreender a difícil história de uma cidade única, que combina o mundano e o sagrado, visão e realidade, judeus, árabes, arménios, gregos, etíopes, entre outros, chega ao fim. Mas com esperança. Jerusalém tem muitas cicatrizes, mas tem também cada vez mais gente, de entre as suas comunidades, consciente que está destinada a viver lado a lado. E é nesta união de pessoas e de comunidades, particularmente de árabes e judeus, que reside a esperança de encontrar um caminho para a paz.
Despedimo-nos com um convite à música: o concerto “Jerusalém: a Cidade das Duas Pazes”, dirigido por Jordi Savall, acompanhado pelo seu Ensemble Hèsperion XXI e pela Capela Real da Catalunha. São convidados músicos israelitas, palestinianos, iraquianos, gregos, arménios e turcos, que transportam para o palco uma odisseia musical das três fés abraâmicas.
Postal ilustrado comemorativo da festa anual de Chanukah e da libertação de Jerusalém pelo General Allenby, que coincidiram na data de 9 de Dezembro de 1917. (Judas Macabeu e General Allenby em Jerusalém. M. M. Harris, Chanukah. Cincinnati, Ohio, EUA)
A 2 de Novembro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, foi emitida a Declaração Balfour, segundo a qual o governo britânico se comprometia a apoiar os representantes do movimento sionista na criação de um Lar Nacional Judeu na Palestina, caso a Grã-Bretanha conseguisse derrotar o Império Otomano (aliado da Alemanha), que à data dominava a região. A 9 de Dezembro de 1917 o general Allenby entrou em Jerusalém à frente das tropas britânicas, pondo termo a 400 anos de domínio otomano na Palestina.
General Allenby em
Jerusalém – 11 de Dezembro de 1917
Os britânicos,
que governaram primeiro com um governo militar e a partir de 1920 até à
independência de Israel em 1948, com um mandato de administração atribuído pela
Liga das Nações, estabeleceram a sede administrativa do território em
Jerusalém.
Nos 30 anos que
se seguiram Jerusalém conheceu um crescimento urbano exponencial, beneficiando
de melhorias tecnológicas, tais como a electricidade ou a água canalizada, que
se tornaram uma realidade em muitos lares. Ao mesmo tempo, a violência e o
conflito germinavam na cidade. Duas forças opositoras nacionais colidiam nos
seus interesses, o que veio a reflectir-se no futuro do território.
Jerusalém.
Soldados britânicos evacuam judeus da Cidade Velha durante os motins
árabes,
1936 (Wikipedia)
Jerusalém.
Soldados britânicos escoltam um grupo de prisioneiros árabes na Cidade Velha,
durante os motins contra a autoridade britânica, 1938 (Wikipedia)
A revolta árabe
contra a tutela britânica, que exigia a independência de uma Palestina árabe e
o fim da imigração judaica, registou episódios de violência em 1920, 1921,
1929, 1935 e 1936-39. Em resposta ao terror árabe surgiram organizações
judaicas paramilitares: a Haganah, precursora do Exército de Israel; a Etzel (Irgun
Tzvai Leumi) e a Lehi, estas, duas organizações cujas actividades se
caracterizaram pelo terrorismo. O ambiente de guerrilha que se vivia no
território levou os britânicos a limitar a circulação em alguns sectores de
Jerusalém, criando as “zonas de segurança”. Entretanto a população civil, quer
árabe, quer judaica, vivia aterrorizada. A cada dia que passava, era maior o
abismo entre as duas comunidades.
Retirada do
Exército Turco, 9 de Dezembro de 1917, Jerusalém. Biblioteca da Universidade
Monash, Melbourne, Austrália
Para os
britânicos Jerusalém era uma cidade especial; estavam familiarizados com o seu
passado glorioso através da Bíblia e das lições de história. Mas a cidade que
encontraram no Inverno de 1917 achava-se numa situação desesperada. A retirada
do exército turco tinha levado as provisões mais básicas, como comida,
combustível e medicamentos; muitas das tradicionais fontes de abastecimento de
bens alimentares ficavam além das linhas de frente; as estradas estavam
arruinadas e a quase totalidade das linhas ferroviárias tinha sido
desmantelada; grande parte da população masculina tinha sido deslocada; os
serviços sanitários tinham cessado e as epidemias pareciam inevitáveis. À
situação já de si dramática, juntava-se a escassez de água.
Enforcamentos pelo
exército turco junto à Porta de Jafa, Jerusalém, 1917
Neste cenário
devastador os habitantes de Jerusalém estavam felizes por se terem libertado
dos abusos do exército turco, depositando grandes expectativas na chegada das
tropas britânicas. Contudo, a má experiência recente com uma ocupação militar
de grande escala era motivo de apreensão, nomeadamente quanto ao impacto no
abastecimento de água e comida, já tão restritivo.
O Alto Comissário
para a Palestina, Herbert Samuel (sentado ao centro) e o Governador de
Jerusalém, Ronald Storrs (em pé, o quarto a contar da direita) recebem os
representantes religiosos da cidade, depois de um serviço para comemorar a
libertação britânica, 1924.
Em 28 de Dezembro de 1917 Ronald Storrs foi
designado governador militar de Jerusalém (mais tarde governador civil), em
substituição do general Bill Borton que ocupou o cargo apenas durante algumas
semanas. Storrs tinha pela frente uma tarefa gigantesca: impedir que a
população morresse de fome, de desidratação, de epidemias e de frio. A primeira
coisa que Storrs fez, com a assistência do general Allenby, comandante da Força
Expedicionária Egípcia, foi importar 200 toneladas de trigo do Egipto. As
linhas ferroviárias foram reparadas, transportando água para a cidade enquanto
as condutas eram instaladas.
Para além de
abastecer a cidade de comida e impedir que a população morresse literalmente de
fome, a administração britânica foi muito eficaz no domínio da saúde pública.
Jerusalém já tinha muitos hospitais, mas a saúde pública, severamente afectada
no período da Grande Guerra, enfrentava a possibilidade eminente de epidemias.
A nova administração tomou várias medidas para corrigir a situação: removeu
quantidades maciças de lixo; instalou caixotes de lixo públicos; toda a
população foi vacinada contra a varíola; piscinas e cisternas foram cobertas
com repelente de mosquitos, numa campanha bem-sucedida para erradicar a
malária.
Judeus de Bucara
na Festa dos Tabernáculos (Sukkot) em Jerusalém, 1900-1920. American Colony (Jerusalem).
Library of Congress, Washington D. C.
A Revolução de
Outubro, na distante Rússia, teve um impacto maior na vida de Jerusalém. Os
residentes do influente e elegante Bairro de Bucara eram imigrantes abastados
de Bucara, no Uzbequistão Russo, que dependiam essencialmente de negócios que
mantinham na sua terra natal. A recém-formada União Soviética nacionalizou
esses negócios, negando-lhes assim a sua fonte principal de rendimento. Durante
a Primeira Guerra Mundial o exército turco ocupou diversos edifícios do bairro
e abateu quase todas as árvores. Os dois factores juntos determinaram o rápido
declínio do Bairro de Bucara.
Procissão de
Páscoa do Patriarcado Grego Ortodoxo a entrar na Igreja do Santo Sepulcro,
Jerusalém, 1903. Underwood & Underwood, Londres
O Patriarcado
Grego Ortodoxo de Jerusalém tinha adquirido vastas propriedades, onde
desenvolvia projectos de construção financiados pelo Governo Russo Czarista (o
Czar via-se a si próprio como protector e benfeitor de todos os cristãos
ortodoxos). A suspensão de fundos que se verificou devido à I Guerra Mundial,
depois tornada permanente pela Revolução de Outubro, mergulhou o Patriarcado
Grego numa crise profunda. De forma a aliviar as pesadas dívidas, foram
vendidos muitos lotes de terreno que viriam a constituir as bases da expansão
urbanística de Jerusalém daquele tempo.
“Complexo Russo” em Jerusalém, 1863
O “Complexo
Russo”, que abrangia uma área de 17 hectares na parte central de Jerusalém, era
composto pela Catedral Russa Ortodoxa da Santa Trindade e por um conjunto de
edifícios que serviam como albergues a milhares de peregrinos russos ortodoxos,
desde a sua criação em 1860. A mudança de regime na Rússia estancou o fluxo de
peregrinos e de meios para manter o “Complexo”. Vários edifícios foram arrendados
às autoridades britânicas, onde foram instaladas esquadras de polícia,
tribunais e uma prisão.
O Patriarca de
Jerusalém junto à Catedral Russa Ortodoxa da Santa Trindade,
“Complexo Russo”,
Jerusalém
A mudança de
regime na Rússia também gerou conflitos no que toca ao direito de propriedade
da Igreja Russa Ortodoxa em Jerusalém, dividindo-se esta em duas facções: a
Igreja “Vermelha”, que se identificava com os comunistas e a Igreja “Branca”,
que se mantinha fiel aos familiares do czar no exílio. Cada uma das facções
reclamava o direito de propriedade das várias igrejas e mosteiros russos, em
Jerusalém. A disputa seria resolvida na década de 1950 pelo governo de Israel,
que comprou a maior parte do “Complexo”.
Casa Bonem – Beit
Bonem, Rehaviah, Jerusalém.
Nos anos 1920
os jerosolimitanos mais abastados, querendo melhorar a sua qualidade de vida,
adoptaram um estilo de bairro desenvolvido à maneira inglesa, conhecido por
“Garden Suburb”. A filosofia do “Garden Suburb” consistia em criar uma moradia
unifamiliar rodeada de jardins; as ruas seriam cuidadosamente planeadas, com
alamedas arborizadas. Rehaviah (como o nome de um dos netos de Moisés (1
Crónicas 23:17), é um dos bairros ajardinados dos subúrbios de Jerusalém e foi
construído em terrenos comprados ao Patriarcado Grego Ortodoxo.
Nos anos 30,
com a chegada de Hitler ao poder, deu-se uma vaga de emigração judaica da
Alemanha para a Palestina, da qual faziam parte arquitectos proeminentes. Esses
arquitectos, que tinham sido influenciados pela Escola Bauhaus, produziram
exemplos Bauhaus de excelência, como a casa do Dr. Bonem em Rehaviah,
construída em 1935-36 pelo arquitecto/artista Leopold Krakauer.
Casa Francis –
Beit Francis, Bakah, Jerusalém. Fotógrafo: Shmuel Bar-Am
Bakah,
actualmente um dos “Garden Suburbs” de Jerusalém, nasceu ainda nos finais do
século XIX, junto à antiga estação de caminhos-de-ferro que ligava Jerusalém a
Jafa. É desse período uma das casas mais carismáticas de Bakah; construída para
a família Francis, uma família cristã árabe, a Casa Francis, com os seus arcos
largos, era originalmente térrea. Os andares superiores foram acrescentados em
1920.
Nova Sede dos
Correios, Jerusalém, 1938. Matson Photo Service
Os britânicos,
reconhecendo a necessidade de Jerusalém preservar o seu carácter único, a nível
paisagístico, histórico e cultural, pretendiam ao mesmo tempo transformá-la
numa cidade moderna. Nesse âmbito, Ronald Storrs publicou uma lei determinando
que toda a construção da cidade teria de usar “a pedra nativa de Jerusalém” (pedra
usada em construções como o Muro das Lamentações). Esta lei, ainda em vigor,
tem salvaguardado a beleza única da cidade. Um dos melhores exemplos desta
determinação britânica é o edifício da Nova Sede dos Correios de Jerusalém, do
arquitecto Austen St. Barbe Harrison, inaugurado em 1938.
Monte Scopus.
(Vista do deserto da Judeia, do Mar Morto e dos Montes Moab). Cerimónia de
Inauguração da Universidade Hebraica de Jerusalém. 1 de Abril de 1925. Álbum
Mizpah.
Em 1914 a
Organização Mundial Sionista comprou uma propriedade de Sir John Gray Hill, no
Monte Scopus em Jerusalém, com o propósito de aí construir uma universidade. A
Universidade Hebraica de Jerusalém foi inaugurada a 1 de Abril de 1925. Ao
tempo tinha apenas um edifício: a Escola de Química e Instituto de
Microbiologia Dr. Chaim Weizman. No primeiro ano a instituição acolhia 164
estudantes e tinha uma colecção de 82 500 livros. Para os judeus, a nova
universidade, além de ser uma instituição de ensino superior, tornou-se num
símbolo de progresso e renascimento de um povo.
Jerusalém, Palace
Hotel, c. 1930 (Wikipedia)
Waldorf Astoria
Jerusalem (antigo Palace Hotel) Pormenor da fachada com versos do Corão
(clique na imagem para aumentar)
No lado
ocidental da cidade foram construídos hotéis de luxo, respondendo assim às
exigências dos novos tempos. O Palace Hotel, com projecto do arquitecto turco
Nahas Bey, foi construído em 1928-29 por iniciativa do Supremo Conselho
Muçulmano de Jerusalém. Como veio a verificar-se, o Palace não foi
financeiramente viável; terminada a sua carreira como hotel, o edifício passou
a alojar escritórios da administração britânica. Em 1948, com a fundação do
Estado de Israel, foi sede do Ministério da Indústria e do Comércio. Depois de
um percurso muito atribulado, em 2006 foi comprado pela família Reichman, do Canadá.
Hoje, primorosamente restaurado, é o Waldorf Astoria Jerusalem.
King David Hotel, Jerusalem. Matson Photograph
Collection, 1931.
Library of Congress, Washington,
D. C.
Hotel David depois
do atentado bombista executado pelo Irgun.
Fotografia publicada no Jerusalem
Post, Julho de 1946
A Palestine
Hotel Company, uma empresa com capital da família Mosseri (banqueiros judeus
egípcios), comprou lotes de terreno ao Patriarcado Grego Ortodoxo, com a
finalidade de construir um grande hotel de luxo em Jerusalém. O King David
Hotel, com projecto do arquitecto suíço Emil Vogt, abriu em 1931.
Durante os
motins árabes de 1936-39, o exército britânico arrendou o último andar do
hotel, onde passou a funcionar um quartel general de emergência. Mais tarde,
toda a ala sul foi transformada no centro militar e administrativo britânico da
Palestina. Em Julho de 1946, uma bomba colocada na cozinha pelo Irgun, matou 91
pessoas, feriu 46, destruindo a ala sul do edifício. Em 1967, depois da
reunificação de Jerusalém, a nova gerência reabilitou o hotel e acrescentou-lhe
dois andares. Desde então, o King David Hotel tem recebido muitas
personalidades ilustres.
YMCA, Jerusalém,
c. 1933. Colecção Particular
Em 1924,
contribuições do filantropo James Jarvie de Nova Jérsia, da YMCA americana e
britânica e da Comunidade Judaica de Manchester, tornaram possível a aquisição
de terrenos ao Patriarcado Grego Ortodoxo, com o fim de construir um centro
YMCA. Inaugurado em 1933, o centro está dividido em três unidades: secção
principal, com hotel e instalações para actividades educativas, auditório e uma
ala desportiva. O projecto tem assinatura de Arthur Louis Harmon, o mesmo
arquitecto do Empire State Building em Nova Iorque.
As 40 colunas do pátio...
...e os 12 ciprestes do jardim do Hotel YMCA, em Jerusalém
O edifício foi
concebido de maneira a transmitir uma atmosfera onde as três religiões
abraâmicas pudessem encontrar expressão. Deste modo, as 40 colunas do pátio
representam, tanto os 40 anos em que os israelitas vaguearam pelo deserto antes
de entrarem na Terra Prometida, como os 40 dias da tentação de Jesus. No jardim
foram plantados 12 ciprestes, simbolizando as 12 tribos israelitas, os 12
discípulos de Jesus e os 12 seguidores de Maomé.
Sarcófagos,
cemitério de Deir el-Balah, Idade do Bronze, séc. XIX-XIII AEC; o Grande Rolo
de Isaías, Qumram, século I AEC; Estátua do imperador Adriano, Campo da Sexta
Legião, Tel Shalem, Vale Beth Shean, período romano, 117-138 EC. Museu
Arqueológico Rockefeller, Jerusalém, Israel
A intensa actividade arqueológica na Terra Santa nas
primeiras décadas do século XX, despoletou a necessidade de ter um foro digno
onde armazenar e exibir os achados. O filantropo americano John D. Rockefeller
(um cristão devoto), doou 2 milhões de dólares para construir, equipar e manter
um museu com esse fim. Rockefeller estipulou que as exibições do museu deveriam
mostrar o papel desempenhado pelos povos da Terra Santa na história do mundo.
Museu Arqueológico
Rockefeller, Pátio Interior, Jerusalém, Israel
O Museu
Arqueológico Rockefeller, cujo projecto foi confiado ao arquitecto Austen ST.
Barbe Harrison, foi inaugurado em 1938 e integra o Museu de Israel desde 1968.
Da sua colecção fazem parte milhares de artefactos, que vão desde os tempos
pré-históricos até ao período otomano. Entre os seus tesouros encontram-se os
Manuscritos do Mar Morto.
Os últimos
soldados britânicos do Mandato Britânico para a Palestina descem a sua
bandeira, Porto de Haifa, Junho de 1948 (AFP/Getty)
O Mandato
Britânico para a Palestina terminou a 14 de Maio de 1948. Nas ruas da Cidade
Velha ouviram-se as gaitas de foles anunciando a partida dos soldados
britânicos. Das janelas e na soleira das sinagogas, anciãos de longa barba
observavam o desfile. Desde há três mil anos que os seus antepassados
testemunhavam a partida de muitos outros ocupantes: assírios, babilónios,
persas, gregos, romanos, cruzados, árabes e turcos. Desta vez, cabia aos
militares britânicos deixarem Jerusalém.