segunda-feira, 3 de abril de 2017

JERUSALÉM | IV Parte



JERUSALÉM

Cidade das Três Religiões Abraâmicas



1948. Av. Princesa Mary, agora Rua Shlom Tziyon HaMalka, Jerusalém. (A Administração Britânica usava arame farpado para bloquear certas zonas da cidade —  zonas de segurança—, que ficaram conhecidas por Bevingrad, em referência ao Ministro Britânico dos Negócios Estrangeiros, Ernest Bevin)



      Os confrontos ocorridos na Palestina durante o Mandato Britânico, que muitas vezes atingiam os britânicos ou exigiam intervenção britânica, tiveram efeitos no apoio do Reino Unido ao território. Já em 1929, alguma imprensa do Reino Unido fazia eco de uma opinião pública favorável à saída britânica da Palestina. A contestação à permanência na Palestina subiria de tom no período da II Guerra Mundial, quando o esforço de guerra exigido aos britânicos fez esmorecer o suporte do país ao Mandato na Palestina.



1947. Plano de Partilha para a Palestina proposto pela Assembleia Geral da ONU



      Em 1946 o Reino Unido concedeu independência à Jordânia e declarou que terminaria o Mandato para a Palestina em Maio de 1948. Nestas circunstâncias, a “Questão da Palestina” passou para a recém-formada Organização das Nações Unidas, que desenhou um Plano de Partilha, aprovado pela sua Assembleia Geral a 27 de Novembro de 1947, com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. 


      O Plano de Partilha, que visava a criação de dois Estados — um árabe e outro judaico —, atribuía a Jerusalém o estatuto de cidade internacional. Assim, Jerusalém estaria fora do controlo, tanto judeu, como árabe, mas cravada no centro de um enorme segmento do futuro Estado Palestiniano. Aliás, a porção árabe contemplava o grosso da zona histórica, ao passo que a judaica, embora mais extensa, englobava os áridos desertos Negueve e Arava. Apesar das condições, o plano foi aceite pela Agência Judaica para a Palestina. Os líderes e os governos árabes, por outro lado, rejeitaram o plano e manifestaram a sua discordância a qualquer divisão do território.



1947. Combatentes árabes nas muralhas de Jerusalém. Fotógrafo: Khalil Rissass. Arquivos Centrais Sionistas, Jerusalém



      A 14 de Maio de 1948, terminado o Mandato Britânico para a Palestina, foi emitida a Declaração da Independência de Israel. A 15 de Maio os exércitos do Egipto, da Síria, da Transjordânia, do Líbano e do Iraque invadiram Israel.



14 de Maio de 1948. Celebrando o Dia da Independência em Jerusalém 
(guardado a partir do youtube.com)



Maio de 1948. Árabes fugindo de Jenin. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      A guerra árabe-israelita de 1948 terminou com a vitória de Israel. Portanto, os israelitas chamam-lhe Guerra da Independência. Os árabes palestinianos chamam-lhe A Catástrofe (Naqba), em virtude do êxodo de cerca de 700 mil árabes que fugiram da Palestina, êxodo que começou ainda em 1947 quando a ONU aprovou o Plano de Partilha.



Voluntários civis carregam um legionário árabe ferido. Maio de 1948, Cidade Velha, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      A guerra de 1948 fez de Jerusalém uma cidade dividida. Antes de 1948 havia vários bairros árabes em Jerusalém Ocidental. Depois veio o bombardeamento da Jerusalém judaica pelos exércitos jordano e egípcio. Quando tudo terminou, milhares de palestinianos tinham abandonado os seus lares. Nesse mesmo ano, na mesma guerra, cerca de um milhão de judeus orientais dos países árabes foram expulsos e muitos deles acabaram em Israel nas mesmas casas que, antes, tinham pertencido aos palestinianos.



População judia tentando sair de uma parte de Jerusalém já ocupada por forças árabes. Junho de 1948. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      Enquanto o sector oriental, incluindo a Cidade Velha e os lugares sagrados, foi anexado pela Jordânia, o sector ocidental foi anexado por Israel. Em Junho de 1948 a Legião Árabe expulsou os cerca de 1500 judeus do Bairro Judeu, deixando um rasto de destruição enorme; as sinagogas foram arrasadas, como as icónicas Tiferet Yisrael e Hurva. O rasto de destruição estendeu-se ao histórico Mugrabi, um bairro árabe contíguo ao Bairro Judeu e ao Kotel (Muro das Lamentações).



Um Rabino Sefardita discutindo os termos de rendição do Bairro Judeu na Cidade Velha com soldados da Legião Árabe. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



 Famílias judias deixando a Cidade Velha pela Porta do Sião. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      Os judeus só voltaram a ter acesso aos lugares sagrados em 1967, quando a cidade foi reunificada após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias.  Na Jerusalém reunificada e sob bandeira israelita desde 1967, o Monte do Templo/Haram al-Sharif continua até hoje a ser administrado por um Conselho Islâmico conhecido por Waqf (como acontece desde a reconquista muçulmana de Jerusalém aos Cruzados, em 1187), nomeado pela Jordânia. Entretanto, os judeus só podem visitar o Monte do Templo sob supervisão jordana, não lhes sendo permitido rezar lá, um acordo que os sucessivos governos israelitas observam. Para os judeus os direitos de culto estão circunscritos ao Kotel/Muro das Lamentações, situado numa plataforma junto ao Monte do Templo.



Yom Kippur no Muro das Lamentações, 1904, Jerusalém. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      O Muro Ocidental, HaKotel HaMa’aravi em hebraico, também conhecido por Muro das Lamentações (termo usado essencialmente por cristãos que decorre da prática judaica de, no local, lamentar e chorar a destruição dos Templos), é a única parte que resta do Segundo Templo destruído em 70 EC pelos romanos.


        O Kotel, apesar de ser o local mais sagrado do Judaísmo, ou por esse motivo, foi palco de muitas hostilidades entre árabes e judeus durante o Mandato Britânico. A este propósito convém lembrar um incidente ocorrido em Setembro de 1928, cujo aproveitamento político conduziria a uma situação verdadeiramente dramática.   



Judeus rezando no Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection, Library of Congress, 
Washington D.C.



      No dia 24 de Setembro de 1928, feriado de Yom Kippur, os judeus colocaram um tabique em frente ao Kotel, destinado a separar os homens das mulheres durante as orações. A atitude em si não podia ser mais insignificante, mas o Grande Mufti Amin al-Husseini usou-a como pretexto para excitar o fanatismo religioso das multidões árabes. De Outubro de 1928 em diante, o Mufti organizou uma série de protestos para demonstrar a exclusividade árabe às pretensões de propriedade do Monte do Templo, consequentemente acusando os judeus de profanarem propriedade árabe e insinuando que o real objectivo era o de se apoderarem do rochedo de onde Maomé ascendera ao Céu.



Um grupo de judeus olhando para o Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      Com autorização das autoridades britânicas, o Mufti al-Husseini, não só ordenou novas construções junto ao Kotel, como converteu um edifício que lhe estava adjacente em mesquita, à qual acrescentou um minarete. Um muezzin foi nomeado para fazer a chamada islâmica para a oração e realizar ritos sufis. No Verão de 1929, o Grande Mufti ordenou ainda a abertura de uma passagem que fazia a ligação do Monte do Templo ao Kotel. Tudo isto foi sentido pelos judeus que rezavam no Kotel como uma provocação. Os judeus protestaram e as tensões aumentaram.



Polícia Britânica de guarda ao Kotel, Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)



      No dia 14 de Agosto, depois de vários ataques a judeus que rezavam no Kotel, 6000 judeus manifestaram-se em Telavive, gritando “O Kotel é nosso”. No dia seguinte, jejum de Tisha B’av, 300 jovens ergueram a bandeira sionista no Kotel e cantaram o hino “Hatikvah”. No dia 16, uma multidão organizada de 2000 árabes invadiu o Kotel, agredindo os judeus e queimando livros de orações e outros objectos de culto. Nessa semana os tumultos alastraram a outras zonas de Jerusalém, e também a outras cidades. Os árabes atacavam, os judeus retaliavam. Um dos piores ataques de judeus a árabes ocorreu num bairro entre Jafa e Telavive, onde foram assassinados o Imame da mesquita local e outras seis pessoas. Embora sem mortes a lamentar, mas provocando grandes danos, no dia 26 de Agosto, em Jerusalém, um grupo de judeus atacou a mesquita Nebi Akasha e profanou o Túmulo dos Profetas.


      De 23 a 29 de Agosto, grupos de árabes perpetraram os massacres do Hebron e de Safed. Foram assassinados 133 judeus e 339 ficaram feridos; entre os árabes registaram-se 110 mortos e 232 feridos, na sua maioria por polícias britânicos no processo de dominar os tumultos. 



1967. Paraquedistas israelitas no Kotel. Fotógrafo: David Rubinger



    Durante os dezanove anos de ocupação jordana os judeus foram completamente banidos da Cidade Velha e, por conseguinte, impedidos de rezar no Kotel. Este período terminou a 10 de Junho de 1967, quando o exército israelita retomou o controlo do sítio, após a Guerra dos Seis Dias. Quarenta e oito horas depois de retomarem o controlo do Kotel (que estava transformado em lixeira), os militares, sem ordens explícitas do governo israelita, procederam à demolição do Bairro Marroquino (Mugrabi), que se situava a uns meros quatro metros do Kotel. 106 famílias árabes receberam ordens para abandonar as suas casas.



Kotel, 15/1/2006. Fotógrafo: David Harris




      No período pré-1948, o espaço que corria ao longo do Kotel tinha 120 m2. Depois da demolição do Mugrabi, o espaço foi alargado para 2 400 m2.



O Bairro Mugrabi com o Kotel ao fundo, Jerusalém. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      O nome Mugrabi deriva de “Magreb”, referindo-se ao Norte de África, ou especificamente a Marrocos. O Bairro Marroquino ou Mugrabi foi fundado em finais do século XII por um filho de Saladino, Malik Al Afdal, que o dedicou a imigrantes oriundos do Norte de África.   

 
       No período pós-1967, muitos residentes do Bairro Marroquino emigraram para Marrocos com a assistência do rei Hassan II. Outros encontraram refúgio noutras zonas de Jerusalém. Em Abril de 1968 o governo israelita expropriou os terrenos do Mugrabi para uso público, indemnizando cada uma das famílias deslocadas com 200 dinares jordanos.  



“Jerusalém”, Zeev Raban (1890-1970)Polícia Britânica de guarda ao Kotel, 
Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)



“Jerusalém” do poeta israelita
Yehuda Amichai (1924-2000)

 
Jerusalém


Num terraço da Cidade Velha
há roupa estendida à luz do fim de tarde:
o lençol branco de uma mulher que me odeia,
a toalha de um homem que me odeia,
que ele usa para limpar o suor do rosto.

Nos céus da Cidade Velha
um papagaio de papel.
No outro lado do cordel,
uma criança
que não consigo ver
por causa do muro.

Içamos muitas bandeiras,
eles içam muitas bandeiras.
Para nos fazer acreditar que são felizes.
Para os fazer acreditar que somos felizes.

Yehuda Amichai. Do livro Poemas, 1948-1962.



        A história de Jerusalém desenrola-se ao longo dos séculos com muitos actos de violência. Muitas vezes, talvez demais, cometidos em nome de Deus. A religião é frequentemente acusada de ser a raiz do problema. Acusação injusta que carece de fundamento. Afinal, os regimes comunistas, não esquecendo o nacional-socialismo num passado recente, regem-se por ideais ateus, que estão longe de ser um exemplo de paz e amor. Mas, não sendo a religião o verdadeiro problema, é uma criação humana, e por isso parte do problema. E se é parte do problema, então tem de ser parte da solução. O rabino Jonathan Sacks a este propósito diz uma coisa muito simples, mas muito pertinente: «Se queremos viver a nossa fé em liberdade, então temos de garantir aos outros a liberdade de cultuarem as suas fés. Precisamos de criar espaço teológico para o outro que não é da minha fé, que não pertence ao meu ciclo de salvação».


     Hannah Arendt, na sua obra “A Condição Humana” considera que a condição humana é essencialmente trágica. Mas defende que a capacidade de perdoar pode transformar a tragédia em esperança. A tragédia alimenta-se de azedume, de pessimismo, de vingança, de ódio; sentimentos intimidatórios, paralisantes, corrosivos, que conduzem ao fanatismo. E nós precisamos de esperança, não de fanatismo.


    Yehuda Amichai, no poema «O lugar onde tenho razão» expressa o fanatismo como só um poeta consegue fazê-lo:


«Do lugar onde temos razão não podem crescer flores na Primavera»



      Este ciclo de quatro artigos sobre Jerusalém, que não são mais que uma tímida tentativa para compreender a difícil história de uma cidade única, que combina o mundano e o sagrado, visão e realidade, judeus, árabes, arménios, gregos, etíopes, entre outros, chega ao fim. Mas com esperança. Jerusalém tem muitas cicatrizes, mas tem também cada vez mais gente, de entre as suas comunidades, consciente que está destinada a viver lado a lado. E é nesta união de pessoas e de comunidades, particularmente de árabes e judeus, que reside a esperança de encontrar um caminho para a paz.


      Despedimo-nos com um convite à música: o concerto “Jerusalém: a Cidade das Duas Pazes”, dirigido por Jordi Savall, acompanhado pelo seu Ensemble Hèsperion XXI e pela Capela Real da Catalunha. São convidados músicos israelitas, palestinianos, iraquianos, gregos, arménios e turcos, que transportam para o palco uma odisseia musical das três fés abraâmicas.



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