Entre a lenda e a realidade
Cabeça em mármore de Alexandre, encontrada na Acrópole de Atenas, c. 338-330 AEC,
Museu da Acrópole, Atenas
Alexandre, o Grande (Macedónia, 356 AEC-Babilónia, 323 AEC), educado por Aristóteles, conquistou uma grande parte do que era então considerado o mundo civilizado, criando um dos maiores impérios da Antiguidade. No seu apogeu, o império estendia-se da Grécia ao noroeste da Índia. Em 333 AEC, Alexandre derrotou Dario III, rei dos persas, na batalha de Isso (derrota que seria confirmada em 331 AEC, na batalha de Gaugamela, provocando a queda definitiva da Pérsia a favor dos Macedónios) e em 332 AEC empreendeu a conquista da Síria e do Egipto, onde ainda hoje se ergue a grande cidade de Alexandria, fundada por Alexandre em 331 AEC. É em 332 AEC, o ano das campanhas no Médio Oriente e no Egipto que, segundo o historiador judeu do século I, Flávio Josefo (Yoseph ben Mattityahu), se dá o encontro de Alexandre com os habitantes de Jerusalém.
Alexandre, mosaico em Pompeia, século I AEC (cópia de pintura do século IV AEC),
Museu Arqueológico de Nápoles
Os judeus de Jerusalém foram leais ao Império Persa até ao momento final da sua queda. Mas que atitude tomar perante os novos senhores? Afinal, após a difícil conquista de Tiro, os seus habitantes foram massacrados e os sobreviventes vendidos como escravos. Os judeus de Jerusalém temiam uma terrível vingança dos Macedónios. É aqui que a narrativa de Josefo toma contornos, de alguma forma, fantásticos, parecendo desviar-se da autenticidade dos factos.
Alexandre pagando tributo ao sumo sacerdote Jadua, atribuído a
Jacopo Amigoni (1675-1752)
Musée de l’Hospice Saint-Roche d’ Issoudun, França
Conta ele que Jadua, o sumo sacerdote de Jerusalém, num sonho fora instruído para «ter coragem, enfeitar a cidade e abrir os portões». As pessoas deviam aparecer diante de Alexandre vestidas com o branco da humildade, enquanto Jadua e os sacerdotes do Templo deviam vestir-se sumptuosamente, como era próprio do seu estatuto religioso. A marcha triunfal do monarca macedónio deteve-se num local chamado Sapha (“panorama”), donde se avistavam as muralhas do Templo na encosta da cidade; vitorioso, Alexandre foi ao encontro de uma multidão vestida de branco, encabeçada pelo sumo sacerdote, que usava uma tiara com um painel em ouro onde estava inscrito o tetragrama do nome de Deus. Trocadas as saudações da praxe, Alexandre terá dito que “adorava” o Deus dos israelitas, acrescentando que também tinha tido uma visão em que o sumo sacerdote, vestido exactamente daquela maneira, o abençoaria pela sua vitória sobre os Persas. Depois, Alexandre fez um sacrifício a YHWH no Templo «de acordo com a indicação do sumo sacerdote».
Alexandre, o Grande, no Templo de Jerusalém, Sebastiano Conca (1680-1764),
Museu do Prado, Madrid
No dia seguinte, os judeus de Jerusalém apresentam-lhe o Livro de Daniel que supostamente profetizava a sua vitória sobre os Persas, quando se refere a um poderoso rei «ele governará com poder absoluto e satisfará todas as suas vontades» (Daniel 11:3). Alexandre, retribuindo o gesto de confiança, permite que os Judeus se governem conforme as suas leis, renuncia ao tributo no ano sabático e promete que aqueles que se juntarem ao seu exército poderão viver segundo os seus costumes, sem constrangimentos.
A Carta de Arísteas/A Septuaginta
Arte Greco-Budista, Buda de Gandhara (Paquistão, antiga Índia), I-II século EC,
Museu Nacional de Tóquio
Alexandre praticou sempre a opção de, por um lado, tolerar as religiões locais dos territórios conquistados e, por outro, introduzir nesses territórios a cultura helénica. Tornou assim possível um cruzamento de culturas que resultou na fusão entre a tradição grega e as tradições das terras que efemeramente dominou — a Cultura Helenística. É neste admirável mundo de Alexandre, concretamente em Alexandria, uma das grandes cidades da história judaica, que ocorre um dos maiores acontecimentos interculturais de todos os tempos: a tradução da Bíblia Hebraica para o grego, cujo manuscrito original sobreviveu até ao início da era cristã e que ficou para a posteridade como o texto definitivo do que seria designado por «Antigo Testamento».
Sarcófago de Alexandre (detalhe), séc. IV AEC, Museu Arqueológico de Istambul
Com a morte de Alexandre, as disputas políticas entre os seus principais generais provocam o desmembramento do império. Para o assunto que nos interessa, vamos mencionar apenas dois sucessores: Seleuco I, que governou a Síria e a Mesopotâmia, e Ptolomeu Lagos, que ficou com o Egipto. Os Ptolomeus e os Selêucidas competiam pela fidelidade da população da Judeia (estrategicamente situada entre os dois reinos), que ao longo do século III AEC é governada pelos Ptolomeus, e no início do século II AEC, passa para o domínio do rei selêucida Antíoco III.
A história da tradução da Bíblia Hebraica para o grego, conhecida por Septuaginta, é contada na Carta de Arísteas, sobre a qual Flávio Josefo inclui uma versão resumida nas suas Antiguidades Judaicas. Escrita no século II AEC, apresenta-se sob a forma de relato de um alto conselheiro de Ptolomeu II Filadelfo — Arísteas.
Especialistas contemporâneos consideram que o verdadeiro Arísteas terá sido completamente alheio à Carta. Muito provavelmente, o seu autor foi um judeu familiarizado com a linguagem dos cortesãos e dos estudiosos e que pretendia estabelecer um diálogo entre a Torah e a filosofia grega.
Jean Baptiste de Champaigne, Ptolomeu II conversando com alguns dos 72 sábios judeus sobre a Bíblia na Biblioteca de Alexandria, 1672, Palácio de Versalhes
Segundo a Carta, Ptolomeu II (reinou de 285-246 AEC) envia uma missão exploratória a Jerusalém, com o objectivo de persuadir o sumo sacerdote a deslocar-se a Alexandria, juntamente com os seus escribas, para fazerem a tradução da Torah (Pentateuco — os cinco primeiros livros da Bíblia) para o grego. Eleazar e setenta e dois escribas, seis por cada uma das doze tribos de Israel, viajam para a capital egípcia, onde começam a trabalhar na tradução, destinada a integrar o acervo da recém-criada Biblioteca de Alexandria. O grupo de tradutores finaliza o seu trabalho em setenta e dois dias e é honrado pelo rei, que se ajoelha sete vezes diante do Livro.
A Carta de Arísteas, ficcionada, ou não, é ilustrativa de uma interacção cultural entre judaísmo e helenismo que terá, de algum modo, sido experienciada em Alexandria, onde gregos e judeus conversaram e meditaram sobre a sabedoria. Na Carta o rei faz perguntas respeitosas sobre a melhor maneira de viver e reinar, e o sumo sacerdote Eleazar dá-lhe respostas muito judaicas:
REI: O que é uma vida boa?
ELEAZAR: Conhecer Deus.
REI: Como nos libertamos do medo?
ELEAZAR: Quando a mente está consciente de que não procedeu mal.
REI: Qual é a forma mais grosseira de negligência?
ELEAZAR: Que um homem não cuide dos seus filhos ou que não dedique todos os seus esforços à sua educação.
Há também perguntas sobre educação política, como Aristóteles ensinara a Alexandre:
REI: Qual é o bem mais precioso que um soberano pode ter?
ELEAZAR: O amor dos seus súbditos.
Terminamos este breve artigo com um convite à música: a Oratória “O Banquete de Alexandre”, de Händel.
Oratória “O Banquete de
Alexandre”, de Händel.
Artigo elaborado e oferecido por,
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Notas
1. A tradução dos restantes livros
da Bíblia Hebraica para o grego foi realizada nos séculos II e I AEC, por uma
escola de tradutores, em Alexandria; o Eclesiastes, no século I EC,
provavelmente na Palestina.
2. As autoridades rabínicas fixaram
o cânone judaico — Bíblia Hebraica ou Tanakh em 24 livros, os mesmos usados em
muitas Bíblias da Reforma Protestante. A Versão dos Setenta (Septuaginta)
inclui livros que não constam do Tanakh; alguns destes livros fazem parte do
cânone católico e as Igrejas Ortodoxas usam todos os livros conforme a
Septuaginta.
Fontes:
SCHAMA, Simon, A História dos Judeus – Judeus Clássicos?,
Temas e Debates – Círculo dos Leitores
Bíblia Hebraica, Editora e Livraria Sêfer Ltda, São Paulo,
Brasil
http://www.jewishencyclopedia.com/articles/1120-alexander-the-great
http://www.wikiwand.com/it/Septuaginta
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jadua
https://powerimagepropaganda.wordpress.com/page/2/
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