sábado, 11 de fevereiro de 2023

Gregos e Judeus I

 

Duas Culturas em Confronto Parte I: 

Sacrifícios Humanos

 

A Guerra de Tróia


Cálice-cratera ático de figuras vermelhas, assinado por Eufrónio (pintor) e Euxíteos (ceramista), c.515 a.C., Museu Arqueológico de Cerveteri, Itália

(A cena ilustra o episódio da Guerra de Tróia em que Zeus ordena a Hipno e a Tânato (o Sono e a Morte) que recolham o cadáver de Sarpédon (Ilíada XVI). Hermes, no centro da cena, usa um pétasos, o chapéu dos viajantes, e tem nas mãos o kerykeion, símbolo dos arautos e mensageiros gregos.)



     A Guerra de Tróia, ocorrida entre gregos e troianos numa fase tardia da Idade do Bronze, inspirou grandes escritores da Antiguidade Clássica, como Homero, Heródoto, Sófocles ou Virgílio. A literatura é uma das fontes mais ricas em informação sobre a cultura dos antigos gregos: da sua religião, heróis-guerreiros, costumes… Escavações arqueológicas realizadas na região da Anatólia (actual Turquia), na década de 1870, pelo arqueólogo alemão Heinrich Schliemann, revelaram as ruínas do que foi Tróia, que terá sido destruída cerca de 1180 a.C.. A representação do conflito na literatura, como na “Ilíada” de Homero, escrita 300 a 400 anos depois, tem, no entanto, mais de mito do que realidade. Contudo, ela definiu a maneira como a cultura da antiga Grécia é vista até aos nossos dias.

     De acordo com fontes clássicas, a guerra teve origem no rapto de Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta, por Páris, príncipe de Tróia. Menelau convenceu o seu irmão Agamémnon, rei de Micenas, a organizar uma expedição para a trazer de volta. Reunidos em Áulide, os guerreiros gregos, com uma frota de mais de mil navios de todo o mundo helénico, estavam preparados para atravessar o mar Egeu e atacar Tróia. Entretanto, Agamémnon tinha caçado uma corsa sagrada da deusa Artemisa. Esta, como retaliação, amainou os ventos, impedindo os barcos de navegar. Para serenar Artemisa, Agamémnon sacrifica a própria filha, Ifigénia.

O vento volta a soprar e os barcos zarpam. Agamémnon destrói Tróia e no regresso é assassinado pela mulher, Clitemnestra, inconformada com a perda da filha. Clitemnestra, por sua vez, é assassinada pelo filho, Orestes, que quer vingar a morte do pai.


Agamémnon e Ifigénia



O Sacrifício de Ifigénia, fresco de Pompeia, século I d.C., Museu Arqueológico Nacional de Nápoles 

(Ifigénia é arrastada para o altar sacrificial à deusa Artemisa. De cada um dos lados está o pai, o rei Agamémnon, e a mãe sofredora, a rainha Clitemnestra)


     Nesta tragédia grega, o nosso interesse particular prende-se com o sacrifício de Ifigénia. Em “Cidade Antiga” (1864), o notável historiador francês Fustel de Coulanges expõe a origem das instituições das sociedades grega e romana. Coulanges faz a comparação sistemática das crenças e leis, demonstrando que a família grega e romana foi constituída com base numa religião primitiva. Explica ele que antes do aparecimento das cidades e civilizações, a unidade social e religiosa residia na família, havendo uma relação intrínseca entre três coisas: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Cada família tinha as suas divindades, entre elas os espíritos dos seus falecidos antepassados, a quem pediam protecção e a quem ofereciam sacrifícios. A autoridade do chefe de família, o pater familias, era soberana. Ele tinha poder absoluto sobre a vida e morte da mulher e dos filhos, por estes terem estatuto de propriedade e não de pessoas por direito próprio. Por morte do pai, a autoridade passava invariavelmente para o filho mais velho. Esta ideia persistiu além da era bíblica no princípio da lei romana patria potestas. No reinado de Adriano (r.117-138 d.C.), o poder do pai sobre os filhos já tinha sido seriamente diluído: um pai que matasse o filho sujeitava-se a perder a cidadania romana, ver os seus bens confiscados e, finalmente, ser condenado ao exílio.


Abraão: de Ur para Canaã



Padrão de Ur, Paz (detalhe), 2600-2400 a.C., British Museum, Londres


     Diz-nos a Bíblia que Abraão, de seu nome original Av ram [Abrão], nasceu em *Ur dos Caldeus, na Suméria, num mundo pagão onde os sacrifícios humanos não eram estranhos. Na Bíblia Hebraica, Abraão é o primeiro patriarca, o primeiro monoteísta, fundador das três fés monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islão. Obedecendo ao comando de Deus, Abraão [Abrão], juntamente com a mulher Sara [Sarai], o sobrinho Lot e os seus servos, por volta de 1850 a.C. deixa a sua terra natal e dirige-se para Canaã, uma terra desconhecida. Deus prometera-lhe que ele seria o pai de uma grande nação e que os seus descendentes, Isaac, Jacob (depois chamado Israel) e mais tarde todos os filhos de Israel, herdariam a Terra Prometida.

Quem era Abraão, e por que razão foi escolhido? Este é um mistério que a narrativa bíblica não explica. Mas sabemos que aceitou corajosamente uma vida de incertezas, guiado por uma fé inabalável em Deus. E sabemos que foi escolhido para ser um pai. De realçar que o nome original de Abraão, Av ram, significa “nobre pai”, e o seu nome alargado, Avraham, significa “pai de muitas nações”. Mas Abraão foi o pai a quem Deus ordenou que sacrificasse o seu filho:

«Então Deus disse: Toma o teu filho, teu único filho Isaac, a quem amas, e vai à terra de Moriah, e oferece-o ali como oferta de elevação, sobre um monte que Eu te vou indicar.»

(Génesis 22:1-2) Que sentido tem isto? Se já é difícil compreender semelhante ordem em si, quanto mais ditada a Abraão que deveria tornar-se um símbolo de pai-modelo.



Caravaggio, O Sacrifício de Isaac, 1603, Galerias Uffizi, Florença


     A interpretação convencional deste episódio dramático em que Abraão quase sacrifica o filho, conhecido entre os judeus por Akedah, é a de que Deus estava a testar o patriarca, pondo à prova o seu amor por Ele. Mas entre outras, há uma considerada basilar na tradição judaica: a de que esta história é um protesto contra o sacrifício humano, sendo o ponto nevrálgico o momento em que o anjo intervém para impedir o assassínio, que Deus, ao contrário dos deuses pagãos, condena enquanto um acto abominável. Depois da Akedah, a Aliança que Deus fez com Abraão foi selada, não com a morte de Isaac, mas com o sacrifício de um cordeiro oferecido no lugar do rapaz.

     Argumenta o rabi Jonathan Sacks que Deus, além de não pretender o sacrifício de Isaac, queria que Abraão renunciasse à posse do seu filho. Contrariamente à ideia universalmente aceite nas culturas pagãs de que os filhos são propriedade dos pais, o episódio do sacrifício de Isaac é uma rejeição desse princípio. Deus queria consagrar na Lei Judaica o princípio irrevogável de que os filhos não são propriedade dos pais, vinculando a ideia de que aos pais cabe o papel de serem guardiães dos seus filhos.

A ênfase na parentalidade é vital na espiritualidade judaica: maternidade no caso de Eva, paternidade no de Abraão. Mas enquanto a maternidade é um fenómeno biológico, a paternidade é um fenómeno cultural, que precisa de ser reforçado com códigos de conduta moral. O conceito de uma relação sagrada entre pai e filho tal como hoje a entendemos, não fazia parte da mentalidade do mundo antigo. Aquilo que o monoteísmo abraâmico trouxe ao mundo não foi só a redução de muitos deuses para um. O Deus de Israel é o Deus que, com amor infinito, nos ampara e zela por nós como um pai zela pelos seus filhos. Na Bíblia Hebraica [Tanach], às vezes Deus é descrito como um pai: «Não temos todos nós um mesmo pai? Não nos criou a todos um mesmo Deus?» (Malaquias 2:10). Outras vezes é descrito como uma mãe: «Como quem recebe de sua mãe conforto, Eu vos consolarei» (Isaías 66:13). O primeiro atributo de Deus é compaixão, da palavra hebraica rachamin, que vem de rechem, significando “ventre”.


Sacrifícios humanos na Bíblia Hebraica



Rombout van Troyen, Acaz sacrifica o seu filho a Moloch, 1626, SØR Collectio


     O Tanach conta como o rei Meshah, de Moab, sacrifica o príncipe herdeiro para evitar um desastre militar (II Reis 3:27). A Bíblia Hebraica revela-nos um mundo intrincado e não raras vezes violento, onde também houve reis de Israel e de Judah que se deixaram seduzir pela idolatria. Acab, rei de Israel (r.874-853 a.C.), que tomou como esposa a poderosa fenícia Jezabel, ergueu um templo a Baal, em Samaria, praticando sacrifícios humanos (I Reis 16:29-33).

O rei Acaz de Judah sacrificou o filho ao deus Moloch (II Reis 16:3). Manassés, neto de Acaz, um politeísta entusiasta que levou uma vida aventureira entre o Egipto e a Assíria, ergueu altares ao deus fenício Baal, recorrendo a sacrifícios de crianças, entre as quais o próprio filho (II Crónicas 33:6). O culto a Moloch, o terrível deus devorador de crianças, era praticado num local específico, fora das muralhas de Jerusalém no *vale de Ben Hinnom. Estava firmemente instituído nos reinados de Manassés e do seu filho Amon, assim chamado em honra ao culto egípcio do Sol. Foi completamente erradicado por Josias, que sucedeu ao pérfido Amon. Na sequência de um dos pontos mais indignos da história judaíta, Josias (r.640-609 a.C.), no âmbito das suas actividades reformistas, regressou ao culto do Deus único e restaurou o Templo, que se encontrava num estado de ruína degradante (II Reis 


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No mundo antigo a disposição para oferecer os filhos em sacrifício era lugar-comum. Aliás, baseada na crença de que os seres humanos foram criados para ser servos dos deuses, e que para os aplacar era preciso oferecer-lhes sacrifícios. Os Judeus foram o primeiro povo a quebrar este círculo. Um dos aspectos fundamentais da Torah (os cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica) é não contemplar sacrifícios humanos, o que torna o Judaísmo bíblico altamente distintivo.

     Reflectindo na análise de Fustel de Coulanges, conclui-se que enquanto os pais acreditassem ser donos dos seus filhos, ainda não havia a ideia de indivíduo. Nesta perspectiva, diz-nos o saudoso rabi Jonathan Sacks, podemos interpretar a Akedah, o sacrifício de Isaac, como uma mensagem sobre a independência das crianças como indivíduos, uma proclamação de que paternidade não deve ser posse, mas sim tutela. A Torah representa o nascimento do indivíduo como figura central na vida moral, a integridade de cada um de nós como agente moral por direito próprio. Esta foi uma das maiores revoluções morais na História da humanidade.


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     Terminamos este artigo com dois temas musicais. O primeiro — “Ya’ala, Ya’ala” —, normalmente cantado nas comunidades Mizrahi, na celebração do nascimento e Bat Mitzvah de uma filha. “Ya’ala, Ya’ala” é um poema litúrgico [Piyut] da autoria do rabi Israel Najara (Safed, c.1555-Gaza, c.1625, Palestina, Império Otomano), que exalta o amor entre o dod (o amante) e a ra’aya (a mulher). A ra’aya aqui é referida por Ya’ala. Das várias melodias compostas para este poema, a mais famosa é de Ezra Aharon (Bagdade, 1903-Israel, 1995).





“Ya’ala, Ya’ala” Hibbat hapiyut

 

O segundo tema — “Father and Daughter” — de Paul Simon, é uma balada que o autor dedica à sua amada filha, Lulu. 

There could never be a father 

Who loved his daughter more than I love you



 
Paul Simon and Friends (1/6) "Father and Daughter" (2007) HD 

I'm gonna watch you shine 

Gonna watch you grow 

Gonna paint a sign

So you'll always know 

As long as one and one is two 

There could never be a father 

Who loved his daughter more than I love you

 

*Abraão pertencia a uma família de Semitas caldeus há muito estabelecidos em Ur, que séculos mais tarde dariam o nome à minoria cristã caldeia do Iraque. 

*O vale de Ben Hinnom, identificado como local de culto de sacrifícios de crianças pelo fogo, é conhecido entre os cristãos por Geena (uma concepção de Inferno).

 


Artigo de

Sónia Craveiro


Muito obrigada


Fontes:

Bíblia Hebraica, Editora e Livraria Sêfer Ltda, São Paulo, Brasil, 2006

 

SCHAMA, Simon, A História dos Judeus – 1000 AC – 1492 DC (As Palavras), Círculo de Leitores, Lisboa, Portugal https://www.ancient.eu/Trojan_War/ https://www.thecollector.com/trojan-war-heroes/ https://www.ancient.eu/image/3853/the-sacrifice-of-iphigenia/ https://latim.paginas.ufsc.br/files/2012/06/A-Cidade-Antiga-Fustel-de-Coulanges.pdf https://www.rradar.com/post/roman-law-patria-potestas http://www.rabbisacks.org/to-bless-the-space-between-us-vayera-5776/ https://rabbisacks.org/vayera-5771-the-binding-of-isaac-a-new-interpretation

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