Gregos e Judeus
Duas Culturas em Confronto Parte II: O Shabbat
Sarcófago de Alexandre (detalhe), séc. IV a.C., período
helenístico da necrópole de Sídon, antiga Fenícia, Museu Arqueológico de
Istambul
Discípulo de Aristóteles, Alexandre, o
Grande (Macedónia, 356- Babilónia, 323 a.C.), foi coroado rei da Macedónia aos
vinte anos. Dando início à expansão territorial do seu reino, viria a
conquistar uma grande parte do que era então considerado o mundo civilizado,
criando um dos maiores impérios da Antiguidade. No seu apogeu, o império
estendia-se da Grécia ao noroeste da Índia.
Em 333 a.C., Alexandre derrotou Dario III,
rei dos persas, na batalha de Isso. No ano seguinte, em 332 a.C., para garantir
a conquista de Gaza e do Egipto, Alexandre precisava de subjugar a Fenícia,
aliada dos persas. No processo, montou um cerco a Tiro, que oferecia
resistência. Uma vez tomada a cidade, a vingança dos macedónios foi terrível:
chacinaram 6000 habitantes, crucificaram outros 2000 e venderam 30 000 sobreviventes
para a escravatura. Em 331 a.C., a derrota dos persas seria confirmada na
batalha de Gaugamela, provocando a queda definitiva da Pérsia a favor dos
Macedónios.
Sebastiano Conca (1680-1764), Alexandre, o Grande, no Templo de
Jerusalém
Museu do Prado, Madrid
Foi nesse ano das
campanhas no Médio Oriente que, segundo o historiador judeu do século I, Flávio
Josefo [Yoseph ben Mattityahu], se deu o encontro de Alexandre com o povo de
Jerusalém. Quando a marcha triunfal do monarca macedónio entrou na cidade, os
seus habitantes esperavam-no vestidos de branco, em sinal de paz. Shimon ben
Yohanam, um membro da Grande Assembleia, que ficaria para a posteridade como
Shimon HaTzadik [Simão, o Justo], terá mesmo convencido Alexandre a não colocar
um ídolo no Templo. Jerusalém foi poupada.
Cabeça em mármore de Alexandre encontrada na Acrópole de Atenas,
c. 338-330 a.C.,
Museu da Acrópole, Atenas
Com
a morte de Alexandre, as disputas políticas entre os seus principais generais
levaram ao desmembramento do império. Em 312 a.C., Seleuco, general da
cavalaria macedónia de Alexandre, tornou-se rei da Babilónia. Os Selêucidas
viriam a dominar um vasto território, que se estendia da Mesopotâmia até ao rio
Indo. A Judeia ficaria sujeita a Ptolomeu I, que governou o Egipto a partir de
305 a.C.
Tanto os Ptolomeus como os Selêucidas
competiam pela fidelidade da população da Judeia. Estrategicamente situada
entre os dois reinos, a Judeia passou para o domínio dos Selêucidas no início
do século II a.C. Entretanto a difusão da cultura grega fez o seu caminho.
Resultaria na cultura helenística, uma fusão entre a cultura grega ou helénica
e as tradições das terras que Alexandre conquistou.
É neste complexo mundo de Alexandre, no
reinado de Ptolomeu II do Egipto (r.285-246 a.C.), concretamente em Alexandria,
uma das grandes cidades da história judaica, que se dá um dos maiores
acontecimentos interculturais de todos os tempos: a tradução da Torah para o
grego. Destinada ao acervo da Biblioteca de Alexandria, a tradução ficou
conhecida por Septuaginta, Hashiv’im em hebraico, porque foi traduzida por uma
equipa de setenta e dois eruditos judeus (seis vezes as doze tribos de Israel).
A Septuaginta e o Shabbat
Jean Baptiste de Champaigne, Ptolomeu II conversando com alguns
dos 72 sábios judeus sobre a Bíblia na Biblioteca de Alexandria, 1672, Palácio
de Versalhes
Informa-nos o rabi Jonathan Sacks, que no
Talmude são várias as referências aos eruditos envolvidos no projecto de
tradução da Torah, por terem deliberadamente traduzido mal certos textos,
convictos de que uma tradução literal seria incompreensível para o leitor
grego. Um desses textos era a frase «E terminou Deus, no dia sétimo, a obra que
fez» (Génesis 2:2-3). Em vez disso os tradutores escreveram «No sexto dia Deus
terminou».
O que é que eles pensaram que os gregos
não compreendiam? Por que motivo faria mais sentido Deus ter criado o universo
em seis dias, em vez de sete? Parece confuso, mas a resposta é simples. Os
gregos não conseguiam compreender o sétimo dia, Shabbat, como parte da Criação.
Mas, afinal, o que é que o descanso tem de criativo? O que é que alcançamos por
não fazer, não trabalhar, não inventar?
Com efeito, o mundo grego (e greco-romano)
estranhava um conjunto de coisas no Judaísmo, para as quais não via sentido;
além do monoteísmo (uma verdadeira aberração), a recusa em comer porco, a
circuncisão e o Shabbat. Diziam eles que os judeus não trabalhavam um dia em
cada sete, porque eram mandriões. A ideia de que o dia em si pudesse ter valor
próprio, era alheia à sua compreensão.
Haggadah de Sarajevo (2º painel-Bereshit), Barcelona, c. 1350,
Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina
A Haggadah de Sarajevo abre o ciclo bíblico
com a descrição dos sete dias da Criação. No segundo painel podemos observar
(lendo da direita para a esquerda), a criação do sol, da lua e das estrelas;
dos peixes e dos pássaros; dos animais terrestres e do homem [Adam] (Gen.
1:3-31); a última iluminura representa um homem descansando em Shabbat – “E
terminou Deus no dia sétimo a obra que fez, e cessou no dia sétimo toda a obra
que fez. E abençoou Deus o dia sétimo e santificou-o, porque nele cessou toda a
Sua obra, que Deus criara para fazer.” (Gen. 2:2-3).
Na Torah, a ideia de um dia sagrado, ao
contrário de qualquer noção referente a um lugar sagrado, remonta ao início da
existência do mundo. Dom Isaac Abravanel (Lisboa, 1437-Veneza, 1508/09) num
comentário ao IV Mandamento — Lembra o Shabbat —, interpreta o descanso de Deus
no Shabbat não como uma pausa no Seu envolvimento neste mundo, mas como uma
mudança no modo do Seu envolvimento criativo. Enquanto nos primeiros seis dias
foi necessário criar "algo do nada", a partir de Shabbat a energia
criativa de Deus terá assumido uma nova forma. Em vez de se concentrar na
criação de entidades que anteriormente não existiam, a Sua energia foi
canalizada para os seres recém-criados, prenunciando o universo espiritual de
Shabbat.
O fogo
O oitavo dia– o dia depois da Criação
“E a terra era vã e vazia” (Gen. 1:2)
Francisco de Holanda (Lisboa, 1517- Lisboa, 1585), De Aetatibus
Mundi Imagines, Biblioteca Nacional de España, Madrid, Espanha
No princípio Deus criou os
céus e a terra e a terra era “vã e vazia”. Mas dia após dia, a terra começou a
tomar forma. Primeiro foram os domínios: luz e escuridão, a separação das águas
e o surgimento de terra seca com vegetação. Depois os domínios foram
preenchidos com o sol, a lua e as estrelas, os peixes e os pássaros, os animais
terrestres e o homem. Finalmente veio o Shabbat, o sétimo dia.
Eis os sete dias. Mas então e o oitavo
dia, o dia depois da Criação? Para compreendermos o oitavo dia, temos de
recorrer à tradição oral, Torah she-be’al peh.
No sexto dia Deus tomou a Sua decisão mais
significativa: criar um ser que tal como Ele, tivesse a capacidade de criar.
Esta a razão por que somos feitos “à imagem de Deus”. Há que reconhecer, no
entanto, a diferença fundamental entre criatividade humana (“algo de algo”) e
criatividade Divina (“algo do nada”).
Todavia, a capacidade para criar anda de
mãos dadas com a capacidade para destruir. Uma não existe sem a outra. Qualquer
poder, qualquer tecnologia amplia a capacidade humana, tanto para o bem como
para o mal.
O perigo tornou-se imediatamente claro.
Deus disse ao primeiro homem para não comer os frutos de uma determinada
árvore. Uma árvore, cuja função simbólica era representar o princípio de que a
criação tem limites, percepcionando a posição do conhecimento na nossa conduta
moral. Quando os dois primeiros seres humanos comeram o fruto proibido, a
harmonia essencial entre homem e natureza foi quebrada. A Humanidade perdeu a
sua inocência. Pela primeira vez a natureza (o mundo que encontramos) e a
cultura (o mundo que criamos) entraram em conflito. E o resultado foi perdermos
o paraíso.
A cerimónia de Havdalah.
Haggadah de Barcelona, Catalunha, c. 1340. British Library, Londres.
(Um homem empunha um cálice para dizer a bênção de encerramento
do Shabbat, enquanto um menino segura uma vela entrançada de Havdalah.)
De acordo com os sábios,
este drama teve lugar no sexto dia. Naquele dia, os primeiros humanos foram
criados, receberam ordens para não comer da árvore, transgrediram as ordens e
foram condenados ao exílio.
Mas, diz-nos o Midrash, Deus na Sua
compaixão permitiu-lhes ficar além da sentença. Foi-lhes dado um dia extra no
Éden — o Shabbat. Durante todo aquele dia o sol mostrou-se radiante.
Aproximando-se do fim, a luz celestial começava a desvanecer-se. Adão e Eva tinham
medo de ser atacados pela serpente na escuridão. Então Deus mostrou aos
primeiros humanos como fazer luz. Deus iluminou-lhes o entendimento e eles
aprenderam a fazer fogo, esfregando duas pedras, uma contra a outra, e a
produzir luz.
Esta é a razão, dizem os sábios, pela qual
nós acendemos uma vela de Havdalah no fim do Shabbat, para inaugurar a nova
semana. Convém, no entanto, relembrar a diferença primordial entre a luz do
primeiro dia (“E Deus disse: Haja luz…”) e a do oitavo dia. A luz do primeiro
dia foi criada por Deus, a luz do oitavo dia foi aquilo que Deus nos ensinou a
criar. Simboliza “a nossa parceria com Deus no trabalho da Criação”.
Não há, certamente, imagem mais comovente
do que esta quando Deus estimula as nossas capacidades para nos juntarmos a
Ele, trazendo luz para o mundo.
O mito de Prometeu
Jean-Louis-Cesar Lair, A tortura de Prometeu, 1819, Le
Puy-en-Velay, Musée Crozatier, França
Para compreendermos o significado completo
desta história, temos de recorrer a um dos grandes mitos do mundo antigo: o
mito de Prometeu. Na mitologia grega, os deuses hostilizavam os humanos. Zeus
queria guardar segredo da arte de fazer fogo, mas Prometeu (um titã defensor da
humanidade) roubou uma faísca e ensinou ao homem como se fazia. Assim que o
roubo foi descoberto, Zeus condenou-o a um tormento eterno: acorrentou-o a uma
rocha e num ciclo interminável, uma águia picava-lhe o fígado, que se
regenerava durante a noite, para voltar a ser picado no dia seguinte.
Na narrativa rabínica, a maneira como Deus ensinou Adão e Eva a fazer fogo, é exactamente o oposto da história de Prometeu. Num acto de amor, Deus procura conferir dignidade ao ser que criou à Sua imagem. Não escondendo os segredos do universo de nós, Deus não pretende manter-nos num estado de ignorância e dependência. Nós acreditamos que Deus quer que o ser humano conduza a sua vida em liberdade, responsável e criativamente, dentro dos limites que respeitem a integridade da natureza, zelando pelo mundo que criou para nós. Este é o significado do oitavo dia. É a contrapartida humana do primeiro dia de Criação.
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O farol de Alexandria. Gravura de Maarten van Heemskerck.
Impressão de Phillips Galle, 1572
Quando pensamos em gregos e judeus,
facilmente fazemos a associação a Chanukah, que remete para o período trágico
do reinado do grego-selêucida Antíoco IV Epifânio (c.215-164 a.C.), que na sua
loucura de acabar com o Judaísmo, atirava rapazinhos circuncidados do alto das
muralhas de Jerusalém, juntamente com as suas mães. Portanto, imaginar um judeu
helenizado parece uma contradição. Mas não é. No seu livro “História dos Judeus
– 1000 a.C. a 1492 d.C.”, Simon Shama diz-nos que durante os duzentos anos que
mediaram entre as conquistas de Alexandre e o domínio romano, as culturas grega
e judaica conseguiram encontrar pontos de convergência.
Os judeus, tanto na sua terra natal, como
na diáspora, especialmente na grande metrópole de Alexandria, estavam
familiarizados com a poesia e a filosofia da Grécia antiga, reconhecendo-lhes o
apelo universal. A comunidade judaica alexandrina desenvolveu mesmo as suas
próprias tradições, por vezes diferentes da norma rabínica. Entre os escritores
judeus havia poetas, dramaturgos, historiadores e filósofos. O filósofo Fílon
de Alexandria (c.20 a.C.-c.50 d.C.) foi de todos o maior.
No entanto, a relação do helenismo com o judaísmo, não sendo completamente discordante, não resultou num sincretismo. Em vez disso, os judeus reexaminaram as suas próprias tradições à luz das várias culturas gregas que encontraram ao longo do Mediterrâneo, conseguindo reter a sua particularidade cultural. Ou seja, o helenismo pagão não destronou a assunção monoteísta do discurso rabínico.
Hallelu Avdei Adonai
Aleluia, Servos do Eterno
Hallelu Avdei Adonai, Ensemble da Orquestra Hibba
Hallelu Avdei Adonai
pertence à tradição litúrgica dos judeus do Iraque, uma comunidade milenar,
cuja origem remonta ao período da História Judaica, quando os judeus do antigo
Reino de Judah foram cativos na Babilónia, convencionalmente entre 586-538 a.C.
Os judeus da Babilónia (antiga Suméria) dominaram cultural e religiosamente o
mundo judaico até ao século XI, altura em que a comunidade começou a entrar em
declínio, eclipsada pelos judeus da Península Ibérica.
Artigo elaborado por :
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Fontes:
https://en.wikipedia.org/wiki/Alexander_the_Great
Alexander's
Siege of Tyre, 332 BCE
https://www.worldhistory.org/article/107/alexanders-siege-of-tyre-332-bce/
Who
Were the Hasmoneans? BY DAN SHAPIRA
https://www.tabletmag.com/sections/history/articles/who-were-the-hasmoneans
http://www.rabbisacks.org/renewable-energy-beshallach-5776/
Septuagint/Shabbat
.http://rabbisacks.org/light-make-shemini-5777/
8º dia-Havdalah
https://biblehub.com/sep/genesis/2.htm
«And God finished on the sixth day his works which he made, and he ceased on
the seventh day from all his works which he made. » Brenton's Septuagint
Translation
Hellenism.
https://www.jewishvirtuallibrary.org/alexandria
A
Lei de Moisés – Torá, Génesis, editora & livraria Sêfer; São Paulo, Brasil
SCHAMA,
Simon, A História dos Judeus – 1000 AC – 1492 DC (Judeus Clássicos?), Círculo
de Leitores, Lisboa, Portugal
GREEN,
Arthur, “Estas são as Palavras: Um Vocabulário da Vida Espiritual
Judaica-Shabath”, Editores Solomon, Rio de Janeiro, Brasil
Comentário à parashat “Yitro” (o IV Mandamento – “Lembra o Shabbat”), por Rabi Eli Rosenfeld
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