sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Isaac de Castro Tartas – Um Mártir Judeu

 


Em Tartas, localidade francesa da Gasconha, pelo ano de 1625, nasceu uma criança que foi baptizada com o nome de Tomás Luís.

Seus pais (Cristovão Luís e Isabel da Paz) eram cristãos novos de Bragança, fugidos da Inquisição. Ambos se ligavam à família de Oróbio de Castro.



Do álbum de Angel Gabriel Rodriguez



Em Castro viveria até aos 11 anos, altura em que foi para Bordéus estudar gramática e filosofia. Em 1639, a família deixou a França e rumou para a Holanda, fixando-se na cidade de Amesterdão. Ali aderiram abertamente ao judaísmo, fazendo-se circuncidar e tomando nomes hebraicos. Tomás Luís passou a chamar-se Isaac de Castro.

Não sabemos em pormenor que escola frequentou, mas é incontestável que acumulou vastos conhecimentos talmúdicos, conforme ficaria demonstrado ao longo do processo a que foi submetido. Sabemos também que ele dominava perfeitamente o hebraico, o grego, o latim e o francês, para além da língua paterna. Tentou também estudar medicina, matriculando-se para isso na universidade de Leiden mas que por alguma razão, logo a abandonou.

Sendo um jovem muito inteligente, com boa preparação filosófica e teológica, as autoridades judaicas de Amesterdão enviaram-no para o Brasil com a finalidade especifica de ensinar a lei dos judeus. Aliás, ele seguiu para ali como acompanhante do seu “tio” Moses Rafael de Aguilar e do rabino Aboah da Fonseca. E assim andaria o jovem Isaac por terras do Brasil Holandês (Paraíba, Olinda, Recife…) por 3 ou 4 anos.



O retrato é do comentarista, Aboab de Fonseca, que não foi apenas o primeiro rabino do Brasil, mas também o primeiro rabino a ir para a América.



Em dezembro de 1644 tinha já abandonado Pernambuco e encontrava-se na cidade portuguesa da Baía. O objectivo seria catequisar os cristãos-novos que ali havia e levá-los de regresso ao judaísmo para isso precisava de se apresentar como cristão, pois caso contrário seria logo preso. Seguindo esta estratégia, a primeira coisa que fez, foi mudar o nome para Joseph de Lis e apresentar-se ao Bispo da Baía, contando-lhe que nascera em Avinhão, terra governada pelo Papa de Roma, onde era permitido ser judeu e que por esse motivo ele não fora baptizado mas sim circuncidado uma vez que seus pais eram judeus e também ele toda a vida tinha sido judeu mas que agora reconhecera que a verdadeira religião era a católica. Por esse motivo vinha humildemente pedir para ser baptizado e admitido na igreja católica romana.



O mapa de Nicolaes Visscher mostra o cerco a Olinda e Recife em 1630



O bispo desconfiou e depois de algumas investigações mandou prendê-lo e remetê-lo à Inquisição de Lisboa. As razões apontadas podem resumir-se neste testemunho de um familiar do santo ofício que o prendeu: O dito judeu que se chamava Joseph Lis e dizia vulgarmente que viera a esta cidade a chamado de alguns homens da nação hebreia para lhes vir ensinar as cerimónias judaicas…(1)”


Embarcado na Baía a 5 de janeiro de 1645, chegou a Lisboa a 15 de março seguinte. Impossível resumir aqui o seu processo verdadeiramente exemplar em diversos pontos de vista. Desde logo pelos estranhos companheiros (espias) que o meteram no carcere: dois padres sodomitas que o denunciaram por rezar e “gaiar” à maneira dos judeus e fazer muitos jejuns, sempre com os pés descalços e a cabeça coberta. Explicará ele aos inquisidores que cobria a cabeça onde se gravam pensamentos imundos e por isso “era imunda e não se podia falar com Deus com ela descoberta”.

Mas o que é “verdadeiramente notável” (2), é um texto de 34 páginas que o jovem “rabi” apresentou para fundamentar a sua crença na lei de Moisés que “não tem coisa repugnante à razão e à verdade natural”, considerando alguns que esta foi uma das primeiras formulações do “direito universal natural à liberdade de consciência”. Mas vejam as suas próprias palavras, em resposta aos inquisidores que o aconselhavam a renunciar à sua fé:

 

“Disse que ele não seguia a lei de Moisés por ser ou não ser baptizado nem duvidar que a podia seguir livremente, senão por lhe parecer melhor para a salvação” (3)”



Terreiro do Paço - (Séculos XVI  e XVIII) (Desenho de Matthaus Santer) LISBOA



E se os homens podiam salvar-se seguindo os preceitos da natureza, ele, por ser hebreu, nascido de pais hebreus e “…sujeito às leis do povo israelítico, não podia haver salvação senão na crença de Moisés”. Fundamentando este argumento, referiu que apesar de todas as “perseguições, calamidades e trabalho de tão longo cativeiro, como tem padecido e padece o povo de Israel, não só não é acabado, mas antes se multiplica e cresce” mais que nenhum outro. E mais ainda: o povo hebreu é tão abençoado por Deus que até os cristãos têm por adágio: corre-lhe o maná como a judeu”.

 

E não apenas os judeus são por Deus beneficiados em riqueza mas até os povos que os admitem entre eles, assim, “…entre as nações do Norte se tem entendido o mesmo, por se experimentar que os aumentos daqueles Estados se ocasionaram na felicidade dos judeus que ali vivem, porque entrando pobres nas ditas províncias, não só se enriqueceram a si mas a todos os moradores delas como estes mesmo confessam”.

 

Impossível resumir aqui todo o seu processo. Diremos tão só que desde o início ele foi tido pelos inquisidores como “judeu profitente” e no próprio carcere lhe foi apreendida uma “nomina” (tefilin) – Duas peças de couro cosidas a maior parte, contendo orações judaicas para por na testa e no braço.

Prova de que os inquisidores o consideravam “professor da lei”, encontra-se no processo de Tomás Gomes, um jovem que foi então apanhado com um “Selly hot”. Chamado a explicar o que aquilo significava, Joseph Lis disse que:

 

“Selly Hot quer dizer madrugada em hebraico (4) e que tem uma cerimónia que os judeus fazem rezando e tendo atos de contrição por um espaço de 40 dias, se começa no mês de agosto e acaba a 10 da lua de setembro.  em que é então o jejum solene que se chama Kipur…”

 

Tentaram os inquisidores reduzi-lo à fé cristã, enviando-lhe os mais qualificados mestres de teologia, mas o jovem “rabi” para tudo encontrava argumentos. Um dos qualificadores concluiu assim: “Digo que esta pessoa me parece tão pertinaz na crença da lei de Moisés, que se deixava queimar vivo por ela.”(5)

 

Na verdade, assim aconteceu. A 15 de dezembro de 1647 foi queimado vivo.



Auto-de-fé no Terreiro do Paço (Lisboa)


E enquanto a fogueira se acendia e as chamas crepitavam, Isaac de Castro Tartas cantava o Shemá.”


Shemá Yisrael, Ado-nai Elohenu, Ado-nai Echad.

Escuta Israel, o Eterno é nosso D-us, o Eterno é um.


Na verdade, ele foi um verdadeiro mártir do judaísmo.




O meu muito obrigada pela permissão de publicação deste artigo ao senhor Henrique Martins:


Fontes/Notas

https://5l-henrique.blogspot.com/2016/06/nos-transmontanos-sefarditas-e-marranos_21.html

 

1 – ANTT, inquisição de Lisboa, processo 11550, de Joseph de Lia, tif.67.

2 – COELHO, António Borges, A Inquisição de Évora 1533-1568. Pp. 268-270, ed. Caminho, Lisboa,2002.

3 – ANTT, pº 11550. Tif.160

4 – ANTT,  inquisição de Lisboa, pº11560, de Tomás Gomes, tif.47.Pub.ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus: Celorico da Beira, ed. Câmara Municipal de Celorico da beira, 2015.

5 – ANTT, pº 11550, tif 151.

Por António Júlio Andrade / maria Fernanda Guimarães

In: jornalnordeste.com

https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Aboab_da_Fonseca

Do álbum Angel Gabriel Rodriguez, por Angel Gabriel Rodriguez

 https://www.geni.com/photo/view/6000000040896928849?album_type=photos_of_me&photo_id=6000000142256376833

https://www.geni.com/people/Isaac-de-Castro-Tartas/6000000040896928849

https://www.youtube.com/watch?v=PYg0gWubwt8

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=tqa-S4e9isE&feature=emb_title

https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%B5es_holandesas_no_Brasil#/media/Ficheiro:Nicolaes_Visscher_-_Pharnambuci_(Pernambuco,_Brazil).jpg

http://oridesmjr.blogspot.com/2011/07/o-brasil-na-rota-do-oriente.html

https://aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.com/2014/09/terreiro-do-paco-i.html


domingo, 31 de janeiro de 2021

O Pecado de Adão e Eva – Vergonha e Culpa

 



Uma Perspectiva Judaica



Adão, Eva e a serpente (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c. 1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina


“E o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: «De toda a árvore do jardim podes comer. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, morrerás!» (Génesis 2:16-17)



Mas, afinal, o que foi o primeiro pecado? O que era o bem e o mal da Árvore do Conhecimento? O conhecimento era assim tão mau que tivesse de ser proibido, ou só poderia ser adquirido através do pecado? Não é essencial ao ser humano conhecer a diferença entre o bem e o mal? Não quereria Deus que os humanos fossem cientes de uma das formas mais elevadas de conhecimento? Então porque quereria Ele que o fruto que o produz fosse proibido?

 

Não teriam Adão e Eva conhecimento do bem e do mal antes de terem comido o fruto proibido, justamente, porque foram criados “à imagem e semelhança de Deus”? O Judaísmo defende que sim, pelo menos potencialmente. Então, o que é que mudou depois de terem comido o fruto?

 

Estas são as perguntas colocadas pelo rabino Jonathan Sacks num comentário à parashat Bereshit — “The Art of Listening” —, sobre o episódio do pecado de Adão e Eva. Em artigo anterior abordámos o tema do pecado original, uma doutrina cristã a que este pecado está fortemente associado. Impõe-se, portanto, abordá-lo numa perspectiva judaica. No Judaísmo não há pecado original.




Adão, Eva e a serpente, Miscelânea Hebraica do Norte de França, c. 1280, folio 520v, British Library



A reflexão de Sacks assenta nas conclusões do filósofo medieval Maimónides, que abordou o tema persistentemente no tratado “Guia dos Perplexos” (Livro I, Capítulo II). Maimónides deduziu o seguinte: os primeiros humanos já tinham conhecimento do bem e do mal, antes de terem comido o fruto. O que eles adquiriram ao comer o fruto proibido foi o conhecimento de “coisas geralmente aceites”. Mas o que é que Maimónides quis dizer com “coisas geralmente aceites”? É geralmente aceite que matar é mau e a honestidade é boa.

 

Quereria Maimónides dizer que a moralidade é uma mera convenção? Certamente que não! O que ele quis dizer é que depois de terem comido o fruto, o homem e a mulher sentiram vergonha por estarem nus, e isso é uma mera convenção social, porque nem toda a gente se sente envergonhada com a nudez. Mas como é que equacionamos sentir vergonha por estar nu com “o conhecimento do bem e do mal”? Tem tudo a ver com aparências.




Adão, Eva e a serpente (detalhe). Pentateuco com comentários de Rashi, painel Bereshit, folio 1, séc. XV, Itália (Ferrara?), Colecção Harley, British Library



Viver em função das aparências, sujeita-nos a viver segundo as expectativas que os outros têm de nós, como parecemos (ou imaginamos parecer) aos olhos dos outros. E se parecemos mal, sentimos vergonha. A primeira reacção instintiva quando sentimos vergonha, é o desejo de nos tornarmos invisíveis. Por contraste, o sentimento de culpa não tem nada a ver com a percepção que os outros têm de nós. Não conseguimos escapar tornando-nos invisíveis ou fugindo. Para onde quer que formos a nossa consciência acompanha-nos sempre, independentemente da imagem que os outros têm de nós. Com este contraste em perspectiva, podemos agora compreender a história do primeiro pecado.

 

A serpente disse à mulher: «Deus sabe que no dia em que comerdes dele, vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal.» (Génesis 3:4-5) E o que aconteceu de facto: «E os olhos de ambos foram abertos e souberam que estavam nus.»; a Torah enfatiza a aparência da árvore: «A mulher viu que a árvore era boa para comer, desejável para os olhos e cobiçável para entender o bem e o mal». A emoção-chave desta história é a vergonha. Antes de comerem o fruto estavam nus, mas não se envergonhavam. Depois de o comerem sentiram vergonha e procuraram esconder-se. Cada elemento desta história — o fruto, a árvore, a nudez, a vergonha —tem a ver com uma cultura de vergonha centrada nas aparências.




Adão e Eva após a expulsão do Paraíso (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c. 1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina



No Judaísmo Deus não é visto, é ouvido. Os primeiros humanos “ouviram a voz de Deus, que se movia no jardim”. Respondendo ao chamamento de Deus, o homem disse: “Ouvi a Tua voz no jardim e tive medo por estar nu, e escondi-me.” Quando Adão e Eva ouviram a voz de Deus no jardim “esconderam-se da presença de Deus entre as árvores do jardim”, uma reacção absolutamente desconcertante. Nós não nos podemos esconder de uma voz. Escondemo-nos, sim, na tentativa de não sermos vistos, uma reacção intuitiva à vergonha. Mas a Torah é o supremo exemplo de uma cultura de culpa, não de vergonha. Não é por nos escondermos que conseguimos escapar a um sentimento de culpa. A culpa não tem nada a ver com aparências, mas tudo com consciência, a voz de Deus no coração humano.


Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos



No conto “O Principezinho”, quando a raposa diz para o principezinho: — "Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.", Antoine de Saint-Exupéry captou admiravelmente a noção de que o essencial, o genuíno, “só se vê bem com o coração”, ao contrário daquilo que os olhos vêem, que pode ser enganador, uma ilusão de aparências.

 

***



Adão e Eva, Golden Haggadah c. 1330, Catalunha (Barcelona?), British Library



O pecado dos primeiros humanos foi o de terem seguido o olhar, em vez do ouvir. As suas acções foram determinadas pelo que viram, a beleza da árvore, e não pelo que ouviram, a palavra de Deus que lhes ordenou que não comessem do seu fruto. Como resultado da sua desobediência, eles adquiriram de facto o conhecimento do bem e do mal, mas do tipo errado. Adão e Eva adquiriram uma ética de vergonha, não de culpa; de aparências, não de consciência. Isto, segundo o rabino Jonathan Sacks, é o que Maimónides tinha em mente com a distinção entre verdadeiro-e-falso e “coisas geralmente aceites”.

 

“Não há sobre a terra alguém tão correcto que só faça o bem e não peque jamais”

 

Eclesiastes [Kohelet] 7:20



Como nos lembra Kohelet, somos todos pecadores. Faz parte da natureza humana. A nossa vida desenrola-se numa constante tensão entre a boa inclinação (yetzer hatov) e a má inclinação (yetzer harah), sendo que Deus nos deu a liberdade de escolher entre o bem e o mal, o livre arbítrio. Se escolhermos bem, estamos no bom caminho. Se escolhermos mal, estamos perdidos no caminho. Mas é sempre possível regressar ao bom caminho, fazer teshuvah. Para tanto, temos de afastar os ruídos indesejáveis que nos perturbam a atenção, criando silêncio na alma, para ouvirmos a voz de Deus.

 

No Yom Kippur, ou «Dia da Expiação», recitamos súplicas e orações para implorar o perdão de Deus. Durante o Viddui toda a congregação confessa uma longa série de pecados, batendo no coração, um gesto simbólico de compromisso num acto de reflexão de consciência. Podemos ter cometido determinado pecado, ou não, mas é suposto juntarmo-nos ao coro de vozes dizendo “Nós cometemos este pecado”. Podemos não ter difamado ninguém, mas fomos capazes de confrontar quem o fez? De uma maneira ou de outra, estamos todos implicados no comportamento dos outros. A nossa responsabilidade é simultaneamente individual e colectiva. Isto reflecte um tema central no Judaísmo: nós somos todos responsáveis uns pelos outros.




O rei assírio Assurbanipal. Detalhe de relevo, Nínive, (actual Iraque), 645-635 AEC



Ainda em Yom Kippur, suavizamos a intensidade do tema da expiação com o tema do perdão. Da selecção da Bíblia Hebraica para a liturgia do serviço da tarde lemos o Livro de Jonas. Neste livro, Deus instrói o profeta Jonas a viajar para Nínive, onde deverá pregar ao povo para abandonar a vida pecaminosa a que estava entregue, ou arriscava o castigo Divino. Jonas, recusa-se a realizar a missão, foge e acaba no ventre

 

de um grande peixe, libertando-se ao fim de três dias. Só depois faz o que Deus lhe tinha pedido. O povo de Nínive arrepende-se e Deus, vendo a sua sinceridade, depressa lhe perdoa. Quando Jonas protesta, clamando que Deus lhe tinha facilitado a vida, Deus deixa claro que ama profundamente o povo de Nínive, que o considera inteiramente merecedor da misericórdia Divina.

 

Nesta história tocante, até porque Nínive era a capital da Assíria, o império que atacou o reino do norte de Israel e foi responsável pelas “tribos perdidas” de israelitas, a mensagem parece ser muito clara: se os teus piores inimigos podem ser perdoados pelos seus pecados, tu também podes.




Albrecht Dürer, Adão e Eva (gravura em cobre), 1504, Pierpont Morgan Library, Nova Iorque



A Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento, as duas árvores especiais que Deus colocou no Jardim do Éden, são elementos-chave no drama de Adão e Eva. Elas representam duas formas diferentes de conhecimento, duas formas distintas de pensamento. No pensamento judaico, este drama não é sobre sexo, pecado original, ou “a Queda”. É sobre outra coisa: o tipo de moralidade que queremos para conduzir as nossas vidas.

 

A primeira e fundamental lição sobre Adão e Eva é a de que cada um de nós é seu descendente directo. Aos olhos de Deus somos todos iguais. Ninguém é superior. Ninguém é inferior.

 

O Talmude contempla uma variedade de interpretações e midrashim sobre o drama de Adão e Eva. Numa leitura mais cuidada do texto, deparamo-nos com mais perguntas do que respostas. Mas, afinal, é isto mesmo o estudo da Bíblia. Não é sobre encontrarmos todas as respostas, é sobre a procura. Não é sobre o destino, é sobre a viagem. É sobre a procura de Deus e do Seu lugar nas nossas vidas.


Post Scriptum:






O rabino Jonathan Sacks faleceu no passado dia 7 de Novembro, deixando um imenso vazio. O seu impacto como educador, filósofo, rabi, professor, foi excepcional. Na forma como tornou acessível a comunicação de conceitos filosóficos de extrema complexidade. No empenho pelo enquadramento do bem comum entre o Judaísmo e as outras religiões. Na coragem em abordar temas controversos. Na defesa incansável dos valores morais do Judaísmo, como inspiração para a Humanidade.

O mundo vai sentir a falta dele. Eu vou sentir a falta dele.

Que a sua memória seja uma bênção.




Rabbi Sacks on The Mutation of Antisemitism 2017

 

Texto adaptado de “The Art of Listening”, do rabino Jonathan Sacks

https://rabbisacks.org/the-art-of-listening-bereishit-5776/



Este artigo foi elaborado por:

Sónia Craveiro

Desde já o meu obrigada

Beijinhos



Outras fontes:

 

Bíblia Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, Brasil

 

HURWITZ, Sarah, HERE ALL ALONG, Spiegel & Grau, New York

 

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de, “O Principezinho” (Capítulo XXI), Editorial Aster, Lisboa

 https://www.myjewishlearning.com/article/the-jewish-view-of-sin/

https://www.myjewishlearning.com/article/understanding-viddui/?utm_source=mjl_maropost&utm_campaign=MJL&utm_medium=email

 


sábado, 30 de janeiro de 2021

O Pecado Original e o Significado das Palavras

 


“E o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: «De toda a árvore do jardim podes comer. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, morrerás!» (Génesis 2:16-17)



Lucas Cranach, o Velho, Adão e Eva no Jardim do Éden, 1526, Courtauld Gallery, Londres


Diz-nos o Livro de Génesis que Deus colocou duas árvores especiais no Jardim do Éden. Adão e Eva, os nossos pais ancestrais, podiam comer livremente de uma delas, a árvore da vida, que lhes garantia a vida eterna. Mas se comessem da outra, a árvore do conhecimento do bem e do mal, morreriam. (Génesis 2:9, 16-17)

 

O pecado original é uma doutrina cristã que descreve o primeiro acto de desobediência humana (quando Adão e Eva sucumbiram à tentação da serpente e comeram o fruto proibido), e da consequente queda da humanidade num estado de irremediável alienação de Deus. Na tradição cristã o pecado original é inerente à condição humana, mas independente de quaisquer pecados que possam ser cometidos ao longo da vida. Enquanto para os cristãos o conceito do pecado original deriva do Antigo Testamento, a doutrina é rejeitada na teologia judaica. Aliás, o Cristianismo é a única das três religiões abraâmicas que defende a ideia de nascermos todos pecadores.






No Judaísmo não há pecado original. Nós não nascemos pecadores. A palavra hebraica para pecado é chet/chatah, que significa literalmente “errar o alvo”. O termo é usado no tiro com arco, quando uma seta se desvia do alvo. “Errar o alvo” pode ser entendido como “perder o rumo”, ter um desvio de comportamento. Chet é qualquer coisa que fazemos, não quem somos.

 

No século III AEC, Ptolomeu II do Egipto encomendou a tradução da Torah para o grego. A tradução dos restantes livros da Bíblia Hebraica, seria realizada ao longo dos dois séculos seguintes. Destinada ao acervo da Biblioteca de Alexandria, a tradução, conhecida por Septuaginta, ficaria para a posteridade como o texto definitivo do que seria designado por «Antigo Testamento». Mas ler a tradução de um livro, qualquer livro, não é o mesmo que o ler na língua original, como adequadamente atesta a frase “perdeu-se na tradução”.

 

Jeff A. Benner, um cristão que estuda as palavras da Bíblia, no seu livro “The Living Words”, alerta para a necessidade crucial de contextualizarmos os textos no seu tempo histórico, bem como na respectiva cultura. De facto, os processos de pensamento das diferentes culturas são distintos uns dos outros. No entendimento de Benner acerca do texto bíblico, há dois tipos de pecado: o acidental e o deliberado.




Mercadores semitas, túmulo de Khnumhotep II, 12ª dinastia, século XIX AEC, Beni Hassan, Egipto


Os hebreus eram um povo nómada do Antigo Próximo Oriente, cuja língua e estilo de vida estavam envoltos naquela cultura. Um dos aspectos da vida nómada é a constante deslocação, de pastagem em pastagem, de fonte de água em fonte de água. Cada palavra descreve uma acção que pode ser observada na vida nómada dos hebreus. Na Bíblia Hebraica Deus dá “direcções” (normalmente traduzidas por “mandamentos”, da palavra mitzvah, cujo sentido em hebraico é “orientar”, uma noção explícita de “apontar o caminho”) para ajudar o seu povo a seguir na direcção do bom caminho. O povo, mesmo quando se desvia acidentalmente do bom caminho é considerado tzadik (normalmente traduzido por “justo”, mas que significa literalmente “no bom caminho”), conquanto regresse (este é o verbo shuv/teshuvah, normalmente traduzido por “arrependimento”, mas que significa literalmente “regressar”) ao bom caminho.

 

Se alguém estiver em viagem (literal ou figurativamente) e “perder-se no caminho”, corrige-se e volta ao bom caminho. Isto é um “erro” não deliberado (errou acidentalmente o alvo). Regressado ao bom caminho, está tudo bem. No entanto se decidir desviar-se do bom caminho e escolher outro, apesar de “perdido no caminho”, desta vez o erro não é acidental, mas deliberado (errou deliberadamente o alvo).






De acordo com a tradição judaica, cada um de nós tem duas inclinações que competem entre si: a boa inclinação (yetzer hatov) e a má inclinação (yetzer harah). Embora algumas linhas de pensamento do judaísmo clássico considerem que a má inclinação é mais forte do que a boa inclinação, temos, a cada momento das nossas vidas, liberdade de escolha entre estes dois impulsos. Como nos conta a Torah, quando os ciúmes de Caim por Abel ameaçam tornar-se em fratricídio, Deus dá-lhe a oportunidade de dominar o ciúme e regressar ao bom caminho — “E disse o Eterno a Caim: «Por que te iraste e por que descaiu o teu semblante? Se puderes suportar isto bem, ser-te-á perdoado, mas se não, na porta jaz o pecado, e fazer-te pecar é o seu desejo, mas tu podes dominá-lo.» (Génesis 4:6-7). Caim não dominou a má inclinação, cedeu ao ciúme e matou o irmão. Desperdiçou a oportunidade de regressar ao bom caminho, o caminho de Deus.

 

Historicamente, o Judaísmo considera que o primeiro pecado não alterou a natureza humana. Na tradição rabínica, a má inclinação (yetzer harah) estava presente na natureza original do ser humano, de outra forma Adão e Eva não poderiam ter desobedecido a Deus. Deus deu-nos leis e mandamentos para nos ajudar a vencer a tendência para o mal. Assim, cada um de nós é inteiramente responsável pelos próprios pecados, não herdando pecado algum dos seus antepassados. Todavia, é importante lembrar que aquilo que fazemos não nos afecta só a nós. Se falharmos em honrar as nossas responsabilidades, as vidas das gerações dos nossos filhos serão afectadas. Eles sofrerão por causa dos nossos pecados.

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O Islão ensina que todos os seres humanos nascem inocentes, tornando-se pecadores quando pecam em consciência. De acordo com o Corão, ainda antes da criação de Adão e da humanidade (a sua descendência), Deus já tinha decidido que seriam colocados na Terra. No Islão a vida da humanidade na Terra não é um castigo, mas sim um plano de Deus.

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Andrea del Verocchio e Leonardo da Vinci, O Baptismo de Cristo, 1472-75, Uffizi, Florença


Na Carta aos Romanos (Romanos 5:12-21), São Paulo sustenta que Cristo veio ao mundo como o “novo Adão” para redimir a humanidade do pecado. Paulo contrapõe duas figuras, dois reinos e duas consequências: Adão/Cristo, pecado/graça e morte/vida. Adão é o início e a personificação da humanidade mergulhada no reino do pecado e que caminha para a morte; Cristo, o novo Adão, é o início e a personificação da humanidade introduzida no reino da graça e que caminha para a vida. Na nova aliança, o cristão participará da morte e ressurreição de Cristo por via do Baptismo. (Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Carta aos Romanos, PAULUS Editora)

 

Santo Agostinho (354-430), um dos mais influentes teólogos da Igreja, deduziu das palavras de Paulo que o pecado se tinha transmitido biologicamente de Adão para toda a humanidade pelo acto sexual em si, associando o desejo sexual ao pecado. Maria, filha de pais humanos, sofreria do efeito do pecado original. Como tal, a Igreja instituiu o dogma da Imaculada Conceição: Maria, cheia de graça divina, foi concebida sem mancha. Livre do pecado que aflige a humanidade, a Virgem Maria gerou um filho, Jesus Cristo, sem mácula, porque o seu pai é Deus.



EVA PECADORA, AVE REDENTORA


Fra Angelico, Anunciação, c. 1435, Museu do Prado, Madrid

«Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que vais ficar grávida, terás um Filho, e dar-lhe-ás o nome de Jesus…» (Lucas 1:30-31)


A “Anunciação” de Fra Angelico interpreta de forma clara a visão da Igreja sobre o pecado original: Adão e Eva são expulsos do Paraíso, porque fizeram entrar o pecado na história da humanidade e, consequentemente, a dor, o sofrimento e a morte. Maria, iluminada pelo Espírito Santo, recebe do Arcanjo Gabriel a notícia de que conceberá um filho sem mácula. Seguindo o modelo exegético da Igreja, se o pecado foi introduzido no mundo por uma mulher — Eva-pecadora, seria neutralizado por outra mulher — Maria-redentora.

 

Ave é Eva escrito ao contrário, o que não é por acaso. Porque Eva e Ave têm significados opostos. Ave-Maria, plena de graça e pureza, é redentora/obediente, por oposição a Eva, pecadora/desobediente. Na história da civilização ocidental, nos inícios da Idade Média, Maria, mãe de Jesus, tornar-se-ia objecto de um culto de grande fervor, que a diferenciava cada vez mais de Eva, mãe da humanidade. Expressão do culto mariano são as mais de 400 “Cantigas de Santa Maria” elaboradas em Toledo, sob orientação de Afonso X, o Sábio (1221-1284). Na cantiga 60 —“Entre Eva e Ave”—, Afonso X contrapõe as duas mulheres, apresentando Maria num estado superior de graça e pureza, que tem de encontrar forma de anular ou redimir as acções desafortunadas de Eva.


Cantiga 60-“Entre Eva e Ave”

 

Esta é de loor de Santa María, do departimento que há entre Ave e Eva.

Eva nos fez perder

 

Amor de Deus e ben,

 

E pois Ave haver no-lo fez



Intérpretes: Ensemble Unicorn

 

A dicotomia entre Eva e Ave é igualmente expressa com elegância no poema “Our Lady´s Salutation”, do jesuíta Robert Southwell (1561-1595), um dos mártires católicos da Inglaterra isabelina.


OUR LADY’S SALUTATION

 

Spell “Eva” back and “Ave” you shall find,

The first began, the last reversed our harms;

An angel’s witching words did Eva blind,

An angel’s “Ave” disenchants the charms.

Death first by woman’s weakness entered in;

In woman’s virtue life doth now begin.

(…)



Berthold Furtmeyr, “A Árvore da Vida e da Morte”, Missal de Salzburgo, c. 1481



A iluminura “A Árvore da Vida e da Morte” do artista alemão Berthold Furtmeyr (1446-1501), pertence ao missal de Bernhard von Rohr, arcebispo de Salzburgo. O medalhão central apresenta uma árvore que carrega o fruto proibido e as hóstias sacramentais; combina a Árvore da Vida com a Árvore do Conhecimento, ambas do Jardim do Éden. À direita está Eva que oferece o fruto proibido a um homem ajoelhado junto dela. Entre os frutos do seu lado da árvore aparece uma caveira. A serpente da tentação, enrolada ao tronco da árvore, segura na boca outro fruto proibido, que oferece a Eva. Do lado esquerdo está Maria-Ecclesia. Em vez da caveira, é um crucifixo suspenso que se encontra do seu lado da árvore. Em vez do fruto proibido, Maria-Ecclesia administra uma das hóstias a um homem ajoelhado, que abre a boca para a receber, enquanto com a outra mão retira mais uma hóstia da árvore. Ela representa o inverso de Eva, oferecendo o antídoto que salva a humanidade da “Queda”. Um anjo acompanha Maria-Ecclesia, ao passo que Eva é acompanhada pela Morte. Adão está reclinado na base da árvore, numa atitude de arrependimento.

 

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A doutrina do Pecado Original da Igreja Católica Romana seria adoptada pelas Igrejas Ortodoxas do Oriente, com algumas restrições. Plenamente aceite pelos protestantes reformistas como Martinho Lutero ou João Calvino, foi transmitida para as principais Igrejas Protestantes. Contudo, a doutrina foi reinterpretada, ou mesmo negada, por várias denominações cristãs contemporâneas.

 


Nota: O próximo artigo será dedicado ao pecado de Adão e Eva, numa perspectiva judaica.

 

Fontes:

 

Bíblia Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, Brasil

 

Bíblia Sagrada, Novo Testamento, PAULUS Editora

 

HURWITZ, Sarah, HERE ALL ALONG, Spiegel & Grau, New York

 

A study of Hebrew words in the Old and New Testament from their original Hebraic perspective.

https://www.ancient-hebrew.org/living-words/the-living-words.htm (Jeff Benner)

https://www.myjewishlearning.com/article/the-jewish-view-of-sin/ The Original View of Original Sin:

https://www.vision.org/the-original-view-of-original-sin-1140 (Peter Nathan)

https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Original_sin

https://www.poetrynook.com/poem/our-ladys-salutation

https://inpress.lib.uiowa.edu/feminae/DetailsPage.aspx?Feminae_ID=30970

https://en.wikipedia.org/wiki/Septuagint

 

Artigo elaborado por Sónia Craveiro

Muito obrigada

Beijinhos