sábado, 30 de janeiro de 2021

O Pecado Original e o Significado das Palavras

 


“E o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: «De toda a árvore do jardim podes comer. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, morrerás!» (Génesis 2:16-17)



Lucas Cranach, o Velho, Adão e Eva no Jardim do Éden, 1526, Courtauld Gallery, Londres


Diz-nos o Livro de Génesis que Deus colocou duas árvores especiais no Jardim do Éden. Adão e Eva, os nossos pais ancestrais, podiam comer livremente de uma delas, a árvore da vida, que lhes garantia a vida eterna. Mas se comessem da outra, a árvore do conhecimento do bem e do mal, morreriam. (Génesis 2:9, 16-17)

 

O pecado original é uma doutrina cristã que descreve o primeiro acto de desobediência humana (quando Adão e Eva sucumbiram à tentação da serpente e comeram o fruto proibido), e da consequente queda da humanidade num estado de irremediável alienação de Deus. Na tradição cristã o pecado original é inerente à condição humana, mas independente de quaisquer pecados que possam ser cometidos ao longo da vida. Enquanto para os cristãos o conceito do pecado original deriva do Antigo Testamento, a doutrina é rejeitada na teologia judaica. Aliás, o Cristianismo é a única das três religiões abraâmicas que defende a ideia de nascermos todos pecadores.






No Judaísmo não há pecado original. Nós não nascemos pecadores. A palavra hebraica para pecado é chet/chatah, que significa literalmente “errar o alvo”. O termo é usado no tiro com arco, quando uma seta se desvia do alvo. “Errar o alvo” pode ser entendido como “perder o rumo”, ter um desvio de comportamento. Chet é qualquer coisa que fazemos, não quem somos.

 

No século III AEC, Ptolomeu II do Egipto encomendou a tradução da Torah para o grego. A tradução dos restantes livros da Bíblia Hebraica, seria realizada ao longo dos dois séculos seguintes. Destinada ao acervo da Biblioteca de Alexandria, a tradução, conhecida por Septuaginta, ficaria para a posteridade como o texto definitivo do que seria designado por «Antigo Testamento». Mas ler a tradução de um livro, qualquer livro, não é o mesmo que o ler na língua original, como adequadamente atesta a frase “perdeu-se na tradução”.

 

Jeff A. Benner, um cristão que estuda as palavras da Bíblia, no seu livro “The Living Words”, alerta para a necessidade crucial de contextualizarmos os textos no seu tempo histórico, bem como na respectiva cultura. De facto, os processos de pensamento das diferentes culturas são distintos uns dos outros. No entendimento de Benner acerca do texto bíblico, há dois tipos de pecado: o acidental e o deliberado.




Mercadores semitas, túmulo de Khnumhotep II, 12ª dinastia, século XIX AEC, Beni Hassan, Egipto


Os hebreus eram um povo nómada do Antigo Próximo Oriente, cuja língua e estilo de vida estavam envoltos naquela cultura. Um dos aspectos da vida nómada é a constante deslocação, de pastagem em pastagem, de fonte de água em fonte de água. Cada palavra descreve uma acção que pode ser observada na vida nómada dos hebreus. Na Bíblia Hebraica Deus dá “direcções” (normalmente traduzidas por “mandamentos”, da palavra mitzvah, cujo sentido em hebraico é “orientar”, uma noção explícita de “apontar o caminho”) para ajudar o seu povo a seguir na direcção do bom caminho. O povo, mesmo quando se desvia acidentalmente do bom caminho é considerado tzadik (normalmente traduzido por “justo”, mas que significa literalmente “no bom caminho”), conquanto regresse (este é o verbo shuv/teshuvah, normalmente traduzido por “arrependimento”, mas que significa literalmente “regressar”) ao bom caminho.

 

Se alguém estiver em viagem (literal ou figurativamente) e “perder-se no caminho”, corrige-se e volta ao bom caminho. Isto é um “erro” não deliberado (errou acidentalmente o alvo). Regressado ao bom caminho, está tudo bem. No entanto se decidir desviar-se do bom caminho e escolher outro, apesar de “perdido no caminho”, desta vez o erro não é acidental, mas deliberado (errou deliberadamente o alvo).






De acordo com a tradição judaica, cada um de nós tem duas inclinações que competem entre si: a boa inclinação (yetzer hatov) e a má inclinação (yetzer harah). Embora algumas linhas de pensamento do judaísmo clássico considerem que a má inclinação é mais forte do que a boa inclinação, temos, a cada momento das nossas vidas, liberdade de escolha entre estes dois impulsos. Como nos conta a Torah, quando os ciúmes de Caim por Abel ameaçam tornar-se em fratricídio, Deus dá-lhe a oportunidade de dominar o ciúme e regressar ao bom caminho — “E disse o Eterno a Caim: «Por que te iraste e por que descaiu o teu semblante? Se puderes suportar isto bem, ser-te-á perdoado, mas se não, na porta jaz o pecado, e fazer-te pecar é o seu desejo, mas tu podes dominá-lo.» (Génesis 4:6-7). Caim não dominou a má inclinação, cedeu ao ciúme e matou o irmão. Desperdiçou a oportunidade de regressar ao bom caminho, o caminho de Deus.

 

Historicamente, o Judaísmo considera que o primeiro pecado não alterou a natureza humana. Na tradição rabínica, a má inclinação (yetzer harah) estava presente na natureza original do ser humano, de outra forma Adão e Eva não poderiam ter desobedecido a Deus. Deus deu-nos leis e mandamentos para nos ajudar a vencer a tendência para o mal. Assim, cada um de nós é inteiramente responsável pelos próprios pecados, não herdando pecado algum dos seus antepassados. Todavia, é importante lembrar que aquilo que fazemos não nos afecta só a nós. Se falharmos em honrar as nossas responsabilidades, as vidas das gerações dos nossos filhos serão afectadas. Eles sofrerão por causa dos nossos pecados.

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O Islão ensina que todos os seres humanos nascem inocentes, tornando-se pecadores quando pecam em consciência. De acordo com o Corão, ainda antes da criação de Adão e da humanidade (a sua descendência), Deus já tinha decidido que seriam colocados na Terra. No Islão a vida da humanidade na Terra não é um castigo, mas sim um plano de Deus.

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Andrea del Verocchio e Leonardo da Vinci, O Baptismo de Cristo, 1472-75, Uffizi, Florença


Na Carta aos Romanos (Romanos 5:12-21), São Paulo sustenta que Cristo veio ao mundo como o “novo Adão” para redimir a humanidade do pecado. Paulo contrapõe duas figuras, dois reinos e duas consequências: Adão/Cristo, pecado/graça e morte/vida. Adão é o início e a personificação da humanidade mergulhada no reino do pecado e que caminha para a morte; Cristo, o novo Adão, é o início e a personificação da humanidade introduzida no reino da graça e que caminha para a vida. Na nova aliança, o cristão participará da morte e ressurreição de Cristo por via do Baptismo. (Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Carta aos Romanos, PAULUS Editora)

 

Santo Agostinho (354-430), um dos mais influentes teólogos da Igreja, deduziu das palavras de Paulo que o pecado se tinha transmitido biologicamente de Adão para toda a humanidade pelo acto sexual em si, associando o desejo sexual ao pecado. Maria, filha de pais humanos, sofreria do efeito do pecado original. Como tal, a Igreja instituiu o dogma da Imaculada Conceição: Maria, cheia de graça divina, foi concebida sem mancha. Livre do pecado que aflige a humanidade, a Virgem Maria gerou um filho, Jesus Cristo, sem mácula, porque o seu pai é Deus.



EVA PECADORA, AVE REDENTORA


Fra Angelico, Anunciação, c. 1435, Museu do Prado, Madrid

«Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que vais ficar grávida, terás um Filho, e dar-lhe-ás o nome de Jesus…» (Lucas 1:30-31)


A “Anunciação” de Fra Angelico interpreta de forma clara a visão da Igreja sobre o pecado original: Adão e Eva são expulsos do Paraíso, porque fizeram entrar o pecado na história da humanidade e, consequentemente, a dor, o sofrimento e a morte. Maria, iluminada pelo Espírito Santo, recebe do Arcanjo Gabriel a notícia de que conceberá um filho sem mácula. Seguindo o modelo exegético da Igreja, se o pecado foi introduzido no mundo por uma mulher — Eva-pecadora, seria neutralizado por outra mulher — Maria-redentora.

 

Ave é Eva escrito ao contrário, o que não é por acaso. Porque Eva e Ave têm significados opostos. Ave-Maria, plena de graça e pureza, é redentora/obediente, por oposição a Eva, pecadora/desobediente. Na história da civilização ocidental, nos inícios da Idade Média, Maria, mãe de Jesus, tornar-se-ia objecto de um culto de grande fervor, que a diferenciava cada vez mais de Eva, mãe da humanidade. Expressão do culto mariano são as mais de 400 “Cantigas de Santa Maria” elaboradas em Toledo, sob orientação de Afonso X, o Sábio (1221-1284). Na cantiga 60 —“Entre Eva e Ave”—, Afonso X contrapõe as duas mulheres, apresentando Maria num estado superior de graça e pureza, que tem de encontrar forma de anular ou redimir as acções desafortunadas de Eva.


Cantiga 60-“Entre Eva e Ave”

 

Esta é de loor de Santa María, do departimento que há entre Ave e Eva.

Eva nos fez perder

 

Amor de Deus e ben,

 

E pois Ave haver no-lo fez



Intérpretes: Ensemble Unicorn

 

A dicotomia entre Eva e Ave é igualmente expressa com elegância no poema “Our Lady´s Salutation”, do jesuíta Robert Southwell (1561-1595), um dos mártires católicos da Inglaterra isabelina.


OUR LADY’S SALUTATION

 

Spell “Eva” back and “Ave” you shall find,

The first began, the last reversed our harms;

An angel’s witching words did Eva blind,

An angel’s “Ave” disenchants the charms.

Death first by woman’s weakness entered in;

In woman’s virtue life doth now begin.

(…)



Berthold Furtmeyr, “A Árvore da Vida e da Morte”, Missal de Salzburgo, c. 1481



A iluminura “A Árvore da Vida e da Morte” do artista alemão Berthold Furtmeyr (1446-1501), pertence ao missal de Bernhard von Rohr, arcebispo de Salzburgo. O medalhão central apresenta uma árvore que carrega o fruto proibido e as hóstias sacramentais; combina a Árvore da Vida com a Árvore do Conhecimento, ambas do Jardim do Éden. À direita está Eva que oferece o fruto proibido a um homem ajoelhado junto dela. Entre os frutos do seu lado da árvore aparece uma caveira. A serpente da tentação, enrolada ao tronco da árvore, segura na boca outro fruto proibido, que oferece a Eva. Do lado esquerdo está Maria-Ecclesia. Em vez da caveira, é um crucifixo suspenso que se encontra do seu lado da árvore. Em vez do fruto proibido, Maria-Ecclesia administra uma das hóstias a um homem ajoelhado, que abre a boca para a receber, enquanto com a outra mão retira mais uma hóstia da árvore. Ela representa o inverso de Eva, oferecendo o antídoto que salva a humanidade da “Queda”. Um anjo acompanha Maria-Ecclesia, ao passo que Eva é acompanhada pela Morte. Adão está reclinado na base da árvore, numa atitude de arrependimento.

 

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A doutrina do Pecado Original da Igreja Católica Romana seria adoptada pelas Igrejas Ortodoxas do Oriente, com algumas restrições. Plenamente aceite pelos protestantes reformistas como Martinho Lutero ou João Calvino, foi transmitida para as principais Igrejas Protestantes. Contudo, a doutrina foi reinterpretada, ou mesmo negada, por várias denominações cristãs contemporâneas.

 


Nota: O próximo artigo será dedicado ao pecado de Adão e Eva, numa perspectiva judaica.

 

Fontes:

 

Bíblia Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, Brasil

 

Bíblia Sagrada, Novo Testamento, PAULUS Editora

 

HURWITZ, Sarah, HERE ALL ALONG, Spiegel & Grau, New York

 

A study of Hebrew words in the Old and New Testament from their original Hebraic perspective.

https://www.ancient-hebrew.org/living-words/the-living-words.htm (Jeff Benner)

https://www.myjewishlearning.com/article/the-jewish-view-of-sin/ The Original View of Original Sin:

https://www.vision.org/the-original-view-of-original-sin-1140 (Peter Nathan)

https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Original_sin

https://www.poetrynook.com/poem/our-ladys-salutation

https://inpress.lib.uiowa.edu/feminae/DetailsPage.aspx?Feminae_ID=30970

https://en.wikipedia.org/wiki/Septuagint

 

Artigo elaborado por Sónia Craveiro

Muito obrigada

Beijinhos


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