Uma
Perspectiva Judaica
Adão,
Eva e a serpente (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c. 1350, Museu
Nacional da Bósnia-Herzegovina
“E
o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: «De toda a árvore do jardim podes
comer. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia
em que dela comeres, morrerás!» (Génesis 2:16-17)
Mas, afinal, o que foi o
primeiro pecado? O que era o bem e o mal da Árvore do Conhecimento? O
conhecimento era assim tão mau que tivesse de ser proibido, ou só poderia ser
adquirido através do pecado? Não é essencial ao ser humano conhecer a diferença
entre o bem e o mal? Não quereria Deus que os humanos fossem cientes de uma das
formas mais elevadas de conhecimento? Então porque quereria Ele que o fruto que
o produz fosse proibido?
Não teriam Adão e Eva
conhecimento do bem e do mal antes de terem comido o fruto proibido,
justamente, porque foram criados “à imagem e semelhança de Deus”? O Judaísmo
defende que sim, pelo menos potencialmente. Então, o que é que mudou depois de
terem comido o fruto?
Estas são as perguntas
colocadas pelo rabino Jonathan Sacks num comentário à parashat Bereshit — “The
Art of Listening” —, sobre o episódio do pecado de Adão e Eva. Em artigo
anterior abordámos o tema do pecado original, uma doutrina cristã a que este pecado
está fortemente associado. Impõe-se, portanto, abordá-lo numa perspectiva
judaica. No Judaísmo não há pecado original.
Adão,
Eva e a serpente, Miscelânea Hebraica do Norte de França, c. 1280, folio 520v,
British Library
A reflexão de Sacks assenta nas conclusões do filósofo
medieval Maimónides, que abordou o tema persistentemente no tratado “Guia dos
Perplexos” (Livro I, Capítulo II). Maimónides deduziu o seguinte: os primeiros
humanos já tinham conhecimento do bem e do mal, antes de terem comido o fruto.
O que eles adquiriram ao comer o fruto proibido foi o conhecimento de “coisas
geralmente aceites”. Mas o que é que Maimónides quis dizer com “coisas
geralmente aceites”? É geralmente aceite que matar é mau e a honestidade é boa.
Quereria Maimónides dizer que a moralidade é uma mera
convenção? Certamente que não! O que ele quis dizer é que depois de terem
comido o fruto, o homem e a mulher sentiram vergonha por estarem nus, e isso é
uma mera convenção social, porque nem toda a gente se sente envergonhada com a
nudez. Mas como é que equacionamos sentir vergonha por estar nu com “o
conhecimento do bem e do mal”? Tem tudo a ver com aparências.
Adão,
Eva e a serpente (detalhe). Pentateuco com comentários de Rashi, painel
Bereshit, folio 1, séc. XV, Itália (Ferrara?), Colecção Harley, British Library
Viver em função das
aparências, sujeita-nos a viver segundo as expectativas que os outros têm de
nós, como parecemos (ou imaginamos parecer) aos olhos dos outros. E se
parecemos mal, sentimos vergonha. A primeira reacção instintiva quando sentimos
vergonha, é o desejo de nos tornarmos invisíveis. Por contraste, o sentimento
de culpa não tem nada a ver com a percepção que os outros têm de nós. Não
conseguimos escapar tornando-nos invisíveis ou fugindo. Para onde quer que
formos a nossa consciência acompanha-nos sempre, independentemente da imagem
que os outros têm de nós. Com este contraste em perspectiva, podemos agora
compreender a história do primeiro pecado.
A serpente disse à mulher:
«Deus sabe que no dia em que comerdes dele, vossos olhos se abrirão e sereis
como Deus, conhecedores do bem e do mal.» (Génesis 3:4-5) E o que aconteceu de
facto: «E os olhos de ambos foram abertos e souberam que estavam nus.»; a Torah
enfatiza a aparência da árvore: «A mulher viu que a árvore era boa para comer,
desejável para os olhos e cobiçável para entender o bem e o mal». A
emoção-chave desta história é a vergonha. Antes de comerem o fruto estavam nus,
mas não se envergonhavam. Depois de o comerem sentiram vergonha e procuraram
esconder-se. Cada elemento desta história — o fruto, a árvore, a nudez, a
vergonha —tem a ver com uma cultura de vergonha centrada nas aparências.
Adão
e Eva após a expulsão do Paraíso (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c.
1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina
No Judaísmo Deus não é visto, é ouvido. Os primeiros humanos “ouviram a voz de Deus, que se movia no jardim”. Respondendo ao chamamento de Deus, o homem disse: “Ouvi a Tua voz no jardim e tive medo por estar nu, e escondi-me.” Quando Adão e Eva ouviram a voz de Deus no jardim “esconderam-se da presença de Deus entre as árvores do jardim”, uma reacção absolutamente desconcertante. Nós não nos podemos esconder de uma voz. Escondemo-nos, sim, na tentativa de não sermos vistos, uma reacção intuitiva à vergonha. Mas a Torah é o supremo exemplo de uma cultura de culpa, não de vergonha. Não é por nos escondermos que conseguimos escapar a um sentimento de culpa. A culpa não tem nada a ver com aparências, mas tudo com consciência, a voz de Deus no coração humano.
Só
se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos
No conto “O
Principezinho”, quando a raposa diz para o principezinho: — "Vou dizer-te o meu
segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível
para os olhos.", Antoine de Saint-Exupéry captou admiravelmente a noção de que
o essencial, o genuíno, “só se vê bem com o coração”, ao contrário daquilo que
os olhos vêem, que pode ser enganador, uma ilusão de aparências.
***
Adão
e Eva, Golden Haggadah c. 1330, Catalunha (Barcelona?), British Library
O pecado dos primeiros
humanos foi o de terem seguido o olhar, em vez do ouvir. As suas acções foram
determinadas pelo que viram, a beleza da árvore, e não pelo que ouviram, a
palavra de Deus que lhes ordenou que não comessem do seu fruto. Como resultado
da sua desobediência, eles adquiriram de facto o conhecimento do bem e do mal,
mas do tipo errado. Adão e Eva adquiriram uma ética de vergonha, não de culpa;
de aparências, não de consciência. Isto, segundo o rabino Jonathan Sacks, é o
que Maimónides tinha em mente com a distinção entre verdadeiro-e-falso e
“coisas geralmente aceites”.
“Não
há sobre a terra alguém tão correcto que só faça o bem e não peque jamais”
Eclesiastes
[Kohelet] 7:20
Como nos lembra Kohelet,
somos todos pecadores. Faz parte da natureza humana. A nossa vida desenrola-se
numa constante tensão entre a boa inclinação (yetzer hatov) e a má inclinação
(yetzer harah), sendo que Deus nos deu a liberdade de escolher entre o bem e o
mal, o livre arbítrio. Se escolhermos bem, estamos no bom caminho. Se
escolhermos mal, estamos perdidos no caminho. Mas é sempre possível regressar
ao bom caminho, fazer teshuvah. Para tanto, temos de afastar os ruídos
indesejáveis que nos perturbam a atenção, criando silêncio na alma, para
ouvirmos a voz de Deus.
No Yom Kippur, ou «Dia da
Expiação», recitamos súplicas e orações para implorar o perdão de Deus. Durante
o Viddui toda a congregação confessa uma longa série de pecados, batendo no
coração, um gesto simbólico de compromisso num acto de reflexão de consciência.
Podemos ter cometido determinado pecado, ou não, mas é suposto juntarmo-nos ao
coro de vozes dizendo “Nós cometemos este pecado”. Podemos não ter difamado
ninguém, mas fomos capazes de confrontar quem o fez? De uma maneira ou de
outra, estamos todos implicados no comportamento dos outros. A nossa
responsabilidade é simultaneamente individual e colectiva. Isto reflecte um
tema central no Judaísmo: nós somos todos responsáveis uns pelos outros.
O
rei assírio Assurbanipal. Detalhe de relevo, Nínive, (actual Iraque), 645-635
AEC
Ainda em Yom Kippur,
suavizamos a intensidade do tema da expiação com o tema do perdão. Da selecção
da Bíblia Hebraica para a liturgia do serviço da tarde lemos o Livro de Jonas.
Neste livro, Deus instrói o profeta Jonas a viajar para Nínive, onde deverá
pregar ao povo para abandonar a vida pecaminosa a que estava entregue, ou
arriscava o castigo Divino. Jonas, recusa-se a realizar a missão, foge e acaba
no ventre
de um grande peixe,
libertando-se ao fim de três dias. Só depois faz o que Deus lhe tinha pedido. O
povo de Nínive arrepende-se e Deus, vendo a sua sinceridade, depressa lhe
perdoa. Quando Jonas protesta, clamando que Deus lhe tinha facilitado a vida,
Deus deixa claro que ama profundamente o povo de Nínive, que o considera
inteiramente merecedor da misericórdia Divina.
Nesta história tocante,
até porque Nínive era a capital da Assíria, o império que atacou o reino do
norte de Israel e foi responsável pelas “tribos perdidas” de israelitas, a
mensagem parece ser muito clara: se os teus piores inimigos podem ser perdoados
pelos seus pecados, tu também podes.
Albrecht
Dürer, Adão e Eva (gravura em cobre), 1504, Pierpont Morgan Library, Nova
Iorque
A Árvore da Vida e a
Árvore do Conhecimento, as duas árvores especiais que Deus colocou no Jardim do
Éden, são elementos-chave no drama de Adão e Eva. Elas representam duas formas
diferentes de conhecimento, duas formas distintas de pensamento. No pensamento
judaico, este drama não é sobre sexo, pecado original, ou “a Queda”. É sobre
outra coisa: o tipo de moralidade que queremos para conduzir as nossas vidas.
A primeira e fundamental
lição sobre Adão e Eva é a de que cada um de nós é seu descendente directo. Aos
olhos de Deus somos todos iguais. Ninguém é superior. Ninguém é inferior.
O Talmude contempla uma
variedade de interpretações e midrashim sobre o drama de Adão e Eva. Numa
leitura mais cuidada do texto, deparamo-nos com mais perguntas do que
respostas. Mas, afinal, é isto mesmo o estudo da Bíblia. Não é sobre
encontrarmos todas as respostas, é sobre a procura. Não é sobre o destino, é
sobre a viagem. É sobre a procura de Deus e do Seu lugar nas nossas vidas.
Post
Scriptum:
O rabino Jonathan Sacks
faleceu no passado dia 7 de Novembro, deixando um imenso vazio. O seu impacto
como educador, filósofo, rabi, professor, foi excepcional. Na forma como tornou
acessível a comunicação de conceitos filosóficos de extrema complexidade. No
empenho pelo enquadramento do bem comum entre o Judaísmo e as outras religiões.
Na coragem em abordar temas controversos. Na defesa incansável dos valores
morais do Judaísmo, como inspiração para a Humanidade.
O mundo vai sentir a falta
dele. Eu vou sentir a falta dele.
Que a sua memória seja uma
bênção.
Rabbi
Sacks on The Mutation of Antisemitism 2017
Texto
adaptado de “The Art of Listening”, do rabino Jonathan Sacks
https://rabbisacks.org/the-art-of-listening-bereishit-5776/
Este
artigo foi elaborado por:
Sónia
Craveiro
Desde
já o meu obrigada
Beijinhos
Outras
fontes:
Bíblia
Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, Brasil
HURWITZ,
Sarah, HERE ALL ALONG, Spiegel & Grau, New York
SAINT-EXUPÉRY,
Antoine de, “O Principezinho” (Capítulo XXI), Editorial Aster, Lisboa
https://www.myjewishlearning.com/article/the-jewish-view-of-sin/
https://www.myjewishlearning.com/article/understanding-viddui/?utm_source=mjl_maropost&utm_campaign=MJL&utm_medium=email
Grata
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