AS DEZ REGRAS BÁSICAS PARA
UMA
SOCIEDADE LIVRE
Moisés transmite as Tábuas da Lei aos israelitas,
Hagadah de Pessach, Itália, 1583, BNF
Shavuot marca o dia do encontro
no Sinai, onde Deus se revelou a Moisés e ao povo israelita. Ouviu-se a Voz
promulgando o que ficou conhecido por os “Dez Mandamentos”. Mas esta designação
levanta problemas óbvios. Primeiro, porque a Torah lhes chama aseret hadevarim, “as dez palavras” (Ex.
34:28), e a tradição judaica aseret
hadibrot, “as dez declarações”. Segundo, porque houve um aceso debate (especialmente
a partir das interpretações de Maimónides e Nachmánides) sobre o primeiro verso
─ “Eu sou o Senhor teu Deus…” ─ ser um mandamento ou um
preâmbulo aos mandamentos. Terceiro, o judaísmo tem 613 mandamentos, não dez.
Então, porquê estes e não outros?
Sobre estes assuntos, a descoberta de
tratados políticos oriundos do antigo Próximo Oriente foi pertinente, porque
permite verificar que muitos deles partilham semelhanças na sua forma e
estrutura. Os tratados começam com um preâmbulo identificando quem inicia a
aliança. É por isso que a revelação abre com as palavras “Eu sou o Senhor teu
Deus”; depois vem a recapitulação histórica contextualizando a aliança, neste
caso, “quem te fez sair do país do Egipto, da casa da escravidão”.
Seguidamente, têm lugar as estipulações,
primeiro em linhas gerais, depois em detalhe. Esta é precisamente a relação
entre as “dez declarações”, que contêm as linhas gerais, e os mandamentos nos
livros da Torah, onde são descritas as respectivas especificidades.
Marc
Chagall, Moisés recebe as Tábuas da Lei, 1966,
The Jewish
Museum, Nova Iorque
Assim, as “dez declarações” não
são realmente mandamentos, mas uma articulação de princípios básicos. Porque Deus
fez a aliança no Sinai com todo o povo, sem excepções, impôs-se a necessidade
de uma declaração simples e fácil de memorizar, que toda a gente pudesse
lembrar e recitar.
Habitualmente, os mandamentos são
retratados em dois conjuntos, de cinco cada. O primeiro trata do relacionamento
entre nós e Deus (incluindo “honra teu pai e tua mãe”, já que os pais, como Deus,
são os nossos criadores); o segundo, das relações entre nós e os outros seres
humanos. Contudo, também é razoável agrupá-los em três conjuntos, cada um de
três mandamentos.
Rembrandt, Moisés e as Tábuas da Lei, 1659,
Museu Nacional,
Berlim
Os três do
segundo conjunto ─ o Shabbat, honrar os pais, e a
proibição de matar ─ dizem respeito ao princípio da
criação da vida. Shabbat é o dia dedicado a Deus como criador do universo e de
toda a vida; “Honra teu pai e tua mãe” reconhece a parceria dos pais com Deus
na criação da vida humana; “Não matarás” afirma o princípio central da aliança
com Noé, onde o assassinato não só é um crime contra a humanidade, mas também
contra Deus, em cuja imagem somos criados. Deste modo, os quarto, quinto e sexto
mandamentos formam as bases dos princípios da jurisprudência da vida judaica,
lembrando-nos donde viemos e como devemos reger as nossas vidas.
Os últimos três ─ contra o adultério, o roubo e o falso testemunho ─ afirmam as bases institucionais em que a sociedade assenta. O casamento é
sagrado porque é o laço humano mais próximo da aliança entre nós e Deus. A
proibição de roubar afirma a integridade da propriedade (0s tiranos não
respeitam o direito de propriedade). A proibição de falso testemunho é uma
precondição de justiça. Uma sociedade justa precisa de um corpo de leis, de
tribunais e de agências da ordem e precisa, também, de uma honestidade basilar
da parte de cada um de nós. Não há liberdade sem justiça, e não há justiça sem
que cada um de nós aceite a responsabilidade individual e colectiva de ser fiel
à verdade.
Por fim surge em
separado a proibição contra a inveja ─ “Não cobiçarás a casa do teu
próximo. Não cobiçarás a mulher do teu
próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu burro: nada
do que lhe pertence.”
O grande desafio
para qualquer sociedade é como conter o fenómeno universal da inveja: o desejo
de ter o que pertence a outra pessoa. Se o mais importante é a forma como
conduzimos a nossa vida aos olhos de Deus, então por que razão ambicionamos ter
uma coisa, só porque outros a têm?
Marc Chagall, Caim e Abel, 1960
A inveja pode levar-nos a
quebrar muitos outros mandamentos: pode conduzir ao adultério, ao roubo, ao falso
testemunho e até ao assassínio. Levou Caim a matar Abel, fez com que Abraão
temesse pela própria vida porque era casado com uma mulher de grande beleza,
levou os irmãos de José a odiá-lo e a vendê-lo como escravo. Foi a inveja pelos
vizinhos que levou os israelitas a imitá-los nas suas práticas idólatras. A
inveja é a pulsão mais básica do ser humano; mina a harmonia social e a ordem,
que estão, afinal, no espírito dos Dez Mandamentos como um todo. Portanto, a
proibição da inveja é em tudo coerente com a construção de uma sociedade livre.
Os Dez Mandamentos, trinta e três séculos
depois de nos terem sido oferecidos, continuam a ser o guia mais breve, mais simples,
e mais harmonioso para a construção de uma sociedade livre.
Artigo elaborado por
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada
Fonte:
Texto adaptado de “The Ten Utterances” – Machzor Koren- Shavuot,
Jonathan Sacks
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