…NOS
RETÁBULOS DA ESPANHA MEDIEVAL
COMUNHÃO
OU CONVIVÊNCIA TOLERADA?
A convivência entre mouros, judeus e
cristãos na Península Ibérica, que decorreu da invasão árabe em 711, passando
pela reconquista cristã, está envolta num certo mito de coexistência idílica,
de fraternidade multicultural. A verdade, porém, é que as minorias religiosas,
quer do lado muçulmano, quer do cristão, eram toleradas num regime de excepção.
Como tal, não só não tinham os mesmos direitos da maioria, da qual eram
separadas e demarcadas, como estavam sujeitas a todo o tipo de arbitrariedades.
Para os judeus esta discriminação era sentida, tanto do lado cristão, onde, por
exemplo, no Verão de 1391, nos reinos de Castela e Aragão os massacres
atingiram picos de violência inauditos, como do muçulmano; no século XV, no
moderado reino mouro de Granada, era imposto aos judeus o uso de uma sineta, o
joljol.
Baptismo
das Mouriscas, baixo-relevo do altar-mor da Capela Real de Granada
A conquista do reino de Granada em 1492,
por Fernando e Isabel, resultou em conversões forçadas maciças e na expulsão
dos judeus de Espanha (com reflexos em Portugal, que quatro anos depois
expulsou mouros e judeus). Em breve seria consumada uma nova realidade política
e religiosa ─
um rei, um reino, uma religião. Feito este preâmbulo, concentremo-nos no tema
deste artigo: judeus e cristãos nos retábulos da Espanha medieval.
Os
Retábulos
O Nascimento de São João Baptista,
Retábulo com cenas da vida de São João Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo
entre 1464-1507), The Metropolitan Museum of Art
Uma das regras da pintura medieval era a
sua contemporaneidade, o que a torna num manancial de informação sobre o viver
da época. Na Espanha medieval, cristãos, judeus e conversos, trabalhavam juntos
na mesma oficina, produzindo retábulos ou ilustrando manuscritos.
Os retábulos eram pinturas sobre painéis
de tábuas, isolados ou em sequência temática e cronológica que enchiam o fundo
dos altares. Os cristãos que sabiam ler eram poucos, assim o catecismo tinha de
ser reforçado com a leitura de imagens. Toda a Igreja se transformava num
grande livro ilustrado.
A Crucificação, Retábulo com cenas da
vida de São João Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507), The
Metropolitan Museum of Art
Neste
painel dedicado à Crucificação, podemos observar o episódio dos soldados romanos
que, depois de crucificarem Jesus, repartiram as suas vestes e fizeram um
sorteio para ver quem ficava com o manto. Sem esquecermos o conceito de
contemporaneidade na pintura medieval, ao olharmos para estas quatro figuras
não temos a percepção de ver soldados, mas antes judeus comuns, com destaque
para o ancião.
Este detalhe exprime a imagem que a
Igreja queria dar dos judeus, que podemos sintetizar em dois princípios:
tolerância e aviltamento. Santo Agostinho defendeu que os judeus tinham de ser
um povo pequeno, pobre e abatido, para lembrar à Humanidade o que acontece
quando se rejeita Cristo. Para ser pequeno, pobre e abatido, o judeu tinha de
ser aviltado e reduzido à infâmia. Mas tinha de ser tolerado no seio da
sociedade cristã, pois só assim podia cumprir a sua função de lembrar à
Humanidade o que acontece quando se rejeita Cristo. E, porventura, haveria
maneira mais eficaz de o fazer do que acusá-lo de deicídio?!
Miguel
Jiménez/Martin Bernat, “Os Profetas Jeremias, Joel e Miqueias”, Retábulo
de
Santa Cruz de Blesa (1483-1487), Saragoça
A inclusão dos profetas da Bíblia Hebraica
na iconografia dos retábulos inscreve-se no pensamento teológico cristão, que
estabelece a concordância entre a mensagem do Antigo Testamento, onde os
profetas anunciam a salvação, com o Novo Testamento, onde se cumpre a mensagem
com o sacrifício de Cristo na cruz.
Jaume Huguet, O Anjo Custódio conduz o
Povo Hebreu na Travessia do Mar Vermelho, painel do Retábulo de São Bernardino
e do Anjo Custódio (1462-1475), Museu da Catedral de Barcelona
Numa
política de domínio cristão, esta concordância podia ainda ser moldada à vida
dos santos, como no caso do Retábulo de São Bernardino e o Anjo Custódio, onde
podemos observar o Anjo Custódio conduzindo o povo hebreu na travessia do Mar
Vermelho.
Anónimo, Cristo entre os Doutores, séc.
XV, Catalunha,
The Metropolitan Museum of Art
Vários pintores do século XV que
trabalharam para a Igreja em Espanha, adoptaram o conceito da vida comunitária
no espaço judaico ─ a sinagoga e a judiaria ─ como modelo para representar o antigo Templo e a Terra
Santa em pinturas sobre a vida de Jesus ou dos santos; esses judeus
contemporâneos foram, em certa medida, substitutos daqueles que viveram durante
os primeiros séculos da história da Igreja. Os retábulos são uma fonte
riquíssima de informação sobre o interior das sinagogas e do cerimonial que
nelas se desenrolava, onde os judeus de Espanha ganham vida, personificando
gente de carne e osso.
“Cristo entre os Doutores” refere-se a um
episódio do Evangelho de Lucas (2:41-51), onde se descreve a ansiedade dos pais
de Jesus que procuravam o filho adolescente, desaparecido durante as
festividades da Páscoa. Ao cabo de três dias encontraram-no, no Templo, entre
os doutores. Nesta pintura espanhola, Maria e José parecem implorar ao filho
que regresse a casa, enquanto Jesus, inclinado, lhes faz um gesto como que a
dizer «só mais um minuto». O Templo é retratado como uma sinagoga
contemporânea, com as suas lanternas mouriscas, os judeus sentados a estudar o
texto sagrado, ao fundo a Arca Sagrada (Aron Kodesh), e a bimah (pódio para a
leitura da Torah), onde Jesus se encontra. Entretanto, escavações na Judiaria
de Lorca, uma cidade na província espanhola de Múrcia, puseram a descoberto uma
sinagoga que se assemelha à retratada nesta pintura anónima catalã do século
XV.
Painéis com cenas da vida de São João
Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507),
The Metropolitan Museum
of Art
Na Idade Média, judeus e
cristãos tinham o hábito de assistir aos serviços uns dos outros, por razões de
disputa religiosa. Esta prática de ouvir e julgar os sermões da tribo rival terá
contribuído para um certo grau de conhecimento. No caso espanhol, mercê da
convivência entre cristãos, judeus e conversos, encontramos em alguma pintura
evidências de um conhecimento muito específico da cultura religiosa hebraica.
O Sumo Sacerdote e a Corrente Dourada
Painel de um Anjo a aparecer a Zacarias
(Retábulo com cenas da vida de São João Baptista), Domingo Ram, Aragão (activo
entre 1464-1507)
The Metropolitan Museum of Art
O
tema cristão aqui ilustrado ─ a Anunciação a Zacarias ─, retrata Zacarias (pai de São João Baptista) no seu
papel de Sumo Sacerdote, em Yom Kippur (Dia do Perdão), sozinho no Santo dos
Santos. Zacarias veste uma túnica sumptuosa, donde pendem sinos e romãs,
conforme a solenidade do acto e o seu estatuto religioso. Muito do que sabemos
sobre o serviço de Yom Kippur no Tabernáculo (mais tarde no Templo em
Jerusalém), consta do Levítico (Lev. 16-20), mas há um detalhe na pintura ─ a corrente
dourada ─ que deriva
de textos bastante mais tardios: o Tratado Talmúdico Yoma e o Zohar (Livro do
Esplendor).
Os textos falam de uma corrente dourada
que seria presa à perna do Sumo Sacerdote, enquanto este estava sozinho no
Santo dos Santos. Do lado de fora, encontrar-se-ia um outro sacerdote, cuja
missão era a de puxar o Sumo Sacerdote, caso ele morresse enquanto cumpria os
seus deveres sagrados.
Terá sido um judeu, quem sabe um judeu
convertido ao cristianismo, a incluir um detalhe tão específico no retábulo de
Domingo Ram?
Nota:
O Zohar, considerado a obra mais importante da Kabbalah, é um comentário
místico sobre a Torah e foi escrito ou compilado em Espanha nos finais do
século XIII. O entusiasmo despertado pelo Zohar foi partilhado por muitos
académicos cristãos do século XVI, como Pico della Mirandola, Reuchlin, Egídio
de Viterbo, etc., que acreditavam que o livro tinha provas sobre a verdade do
Cristianismo.
Artigo elaborado por
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Fig.1 – Capa de “Uneasy Communion – Jews, Christians
and the Altarpieces of Medieval Spain”, editado por Vivian Mann
Fontes:
MAALOUF, Amin, “O Leão Africano”, Bertrand Editora;
“O Retábulo do Paraíso”, Serviço de Educação, MNAA;
“Bíblia Sagrada – Marcos 15:24”, Editora Paulus;
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