terça-feira, 28 de junho de 2016

JUDEUS E CRISTÃOS...




…NOS RETÁBULOS DA ESPANHA MEDIEVAL
COMUNHÃO OU CONVIVÊNCIA TOLERADA?



     A convivência entre mouros, judeus e cristãos na Península Ibérica, que decorreu da invasão árabe em 711, passando pela reconquista cristã, está envolta num certo mito de coexistência idílica, de fraternidade multicultural. A verdade, porém, é que as minorias religiosas, quer do lado muçulmano, quer do cristão, eram toleradas num regime de excepção. Como tal, não só não tinham os mesmos direitos da maioria, da qual eram separadas e demarcadas, como estavam sujeitas a todo o tipo de arbitrariedades. Para os judeus esta discriminação era sentida, tanto do lado cristão, onde, por exemplo, no Verão de 1391, nos reinos de Castela e Aragão os massacres atingiram picos de violência inauditos, como do muçulmano; no século XV, no moderado reino mouro de Granada, era imposto aos judeus o uso de uma sineta, o joljol.



Baptismo das Mouriscas, baixo-relevo do altar-mor da Capela Real de Granada


    A conquista do reino de Granada em 1492, por Fernando e Isabel, resultou em conversões forçadas maciças e na expulsão dos judeus de Espanha (com reflexos em Portugal, que quatro anos depois expulsou mouros e judeus). Em breve seria consumada uma nova realidade política e religiosa um rei, um reino, uma religião. Feito este preâmbulo, concentremo-nos no tema deste artigo: judeus e cristãos nos retábulos da Espanha medieval.


Os Retábulos


O Nascimento de São João Baptista, Retábulo com cenas da vida de São João Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507), The Metropolitan Museum of Art


    Uma das regras da pintura medieval era a sua contemporaneidade, o que a torna num manancial de informação sobre o viver da época. Na Espanha medieval, cristãos, judeus e conversos, trabalhavam juntos na mesma oficina, produzindo retábulos ou ilustrando manuscritos.

     Os retábulos eram pinturas sobre painéis de tábuas, isolados ou em sequência temática e cronológica que enchiam o fundo dos altares. Os cristãos que sabiam ler eram poucos, assim o catecismo tinha de ser reforçado com a leitura de imagens. Toda a Igreja se transformava num grande livro ilustrado.



A Crucificação, Retábulo com cenas da vida de São João Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507), The Metropolitan Museum of Art



Neste painel dedicado à Crucificação, podemos observar o episódio dos soldados romanos que, depois de crucificarem Jesus, repartiram as suas vestes e fizeram um sorteio para ver quem ficava com o manto. Sem esquecermos o conceito de contemporaneidade na pintura medieval, ao olharmos para estas quatro figuras não temos a percepção de ver soldados, mas antes judeus comuns, com destaque para o ancião.

      Este detalhe exprime a imagem que a Igreja queria dar dos judeus, que podemos sintetizar em dois princípios: tolerância e aviltamento. Santo Agostinho defendeu que os judeus tinham de ser um povo pequeno, pobre e abatido, para lembrar à Humanidade o que acontece quando se rejeita Cristo. Para ser pequeno, pobre e abatido, o judeu tinha de ser aviltado e reduzido à infâmia. Mas tinha de ser tolerado no seio da sociedade cristã, pois só assim podia cumprir a sua função de lembrar à Humanidade o que acontece quando se rejeita Cristo. E, porventura, haveria maneira mais eficaz de o fazer do que acusá-lo de deicídio?!



Miguel Jiménez/Martin Bernat, “Os Profetas Jeremias, Joel e Miqueias”, Retábulo 
de Santa Cruz de Blesa (1483-1487), Saragoça


     A inclusão dos profetas da Bíblia Hebraica na iconografia dos retábulos inscreve-se no pensamento teológico cristão, que estabelece a concordância entre a mensagem do Antigo Testamento, onde os profetas anunciam a salvação, com o Novo Testamento, onde se cumpre a mensagem com o sacrifício de Cristo na cruz.



Jaume Huguet, O Anjo Custódio conduz o Povo Hebreu na Travessia do Mar Vermelho, painel do Retábulo de São Bernardino e do Anjo Custódio (1462-1475), Museu da Catedral de Barcelona


    Numa política de domínio cristão, esta concordância podia ainda ser moldada à vida dos santos, como no caso do Retábulo de São Bernardino e o Anjo Custódio, onde podemos observar o Anjo Custódio conduzindo o povo hebreu na travessia do Mar Vermelho.



Anónimo, Cristo entre os Doutores, séc. XV, Catalunha,
The Metropolitan Museum of Art


    Vários pintores do século XV que trabalharam para a Igreja em Espanha, adoptaram o conceito da vida comunitária no espaço judaico a sinagoga e a judiaria como modelo para representar o antigo Templo e a Terra Santa em pinturas sobre a vida de Jesus ou dos santos; esses judeus contemporâneos foram, em certa medida, substitutos daqueles que viveram durante os primeiros séculos da história da Igreja. Os retábulos são uma fonte riquíssima de informação sobre o interior das sinagogas e do cerimonial que nelas se desenrolava, onde os judeus de Espanha ganham vida, personificando gente de carne e osso.





    “Cristo entre os Doutores” refere-se a um episódio do Evangelho de Lucas (2:41-51), onde se descreve a ansiedade dos pais de Jesus que procuravam o filho adolescente, desaparecido durante as festividades da Páscoa. Ao cabo de três dias encontraram-no, no Templo, entre os doutores. Nesta pintura espanhola, Maria e José parecem implorar ao filho que regresse a casa, enquanto Jesus, inclinado, lhes faz um gesto como que a dizer «só mais um minuto». O Templo é retratado como uma sinagoga contemporânea, com as suas lanternas mouriscas, os judeus sentados a estudar o texto sagrado, ao fundo a Arca Sagrada (Aron Kodesh), e a bimah (pódio para a leitura da Torah), onde Jesus se encontra. Entretanto, escavações na Judiaria de Lorca, uma cidade na província espanhola de Múrcia, puseram a descoberto uma sinagoga que se assemelha à retratada nesta pintura anónima catalã do século XV.



Painéis com cenas da vida de São João Baptista, Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507), 
The Metropolitan Museum of Art


    Na Idade Média, judeus e cristãos tinham o hábito de assistir aos serviços uns dos outros, por razões de disputa religiosa. Esta prática de ouvir e julgar os sermões da tribo rival terá contribuído para um certo grau de conhecimento. No caso espanhol, mercê da convivência entre cristãos, judeus e conversos, encontramos em alguma pintura evidências de um conhecimento muito específico da cultura religiosa hebraica.


O Sumo Sacerdote e a Corrente Dourada



Painel de um Anjo a aparecer a Zacarias (Retábulo com cenas da vida de São João Baptista), Domingo Ram, Aragão (activo entre 1464-1507)
The Metropolitan Museum of Art


    O tema cristão aqui ilustrado a Anunciação a Zacarias , retrata Zacarias (pai de São João Baptista) no seu papel de Sumo Sacerdote, em Yom Kippur (Dia do Perdão), sozinho no Santo dos Santos. Zacarias veste uma túnica sumptuosa, donde pendem sinos e romãs, conforme a solenidade do acto e o seu estatuto religioso. Muito do que sabemos sobre o serviço de Yom Kippur no Tabernáculo (mais tarde no Templo em Jerusalém), consta do Levítico (Lev. 16-20), mas há um detalhe na pintura a corrente dourada que deriva de textos bastante mais tardios: o Tratado Talmúdico Yoma e o Zohar (Livro do Esplendor).

     Os textos falam de uma corrente dourada que seria presa à perna do Sumo Sacerdote, enquanto este estava sozinho no Santo dos Santos. Do lado de fora, encontrar-se-ia um outro sacerdote, cuja missão era a de puxar o Sumo Sacerdote, caso ele morresse enquanto cumpria os seus deveres sagrados.
     Terá sido um judeu, quem sabe um judeu convertido ao cristianismo, a incluir um detalhe tão específico no retábulo de Domingo Ram?


Nota: O Zohar, considerado a obra mais importante da Kabbalah, é um comentário místico sobre a Torah e foi escrito ou compilado em Espanha nos finais do século XIII. O entusiasmo despertado pelo Zohar foi partilhado por muitos académicos cristãos do século XVI, como Pico della Mirandola, Reuchlin, Egídio de Viterbo, etc., que acreditavam que o livro tinha provas sobre a verdade do Cristianismo.


Artigo elaborado por
Sónia Craveiro
Muito obrigada

Fig.1 – Capa de “Uneasy Communion – Jews, Christians and the Altarpieces of Medieval Spain”, editado por Vivian Mann

Fontes:

MAALOUF, Amin, “O Leão Africano”, Bertrand Editora;
“O Retábulo do Paraíso”, Serviço de Educação, MNAA;

“Bíblia Sagrada – Marcos 15:24”, Editora Paulus;


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