William Blake, Adão e Eva encontram o corpo de Abel, c.
1826,
Tate Gallery, Londres
Ao longo de
dezasseis versículos do quarto capítulo do Livro de Génesis (4:1-16),
assistimos ao desenrolar da tumultuosa história de rivalidade entre Caim e Abel.
Como sabemos, Caim assassina o irmão. Mas antes de cometer este pecado terrível,
Deus dá-lhe a possibilidade de escolher entre ceder ao impulso de matar o seu
irmão Abel, ou de lhe resistir.
Este episódio, que introduz o tema do
livre arbítrio, aparece em Génesis 4:6-7, logo depois de Deus ter aceite a
oferenda de Abel e ter rejeitado a de Caim.
Génesis4:6E disse o Eterno a Caim: «Por que te iraste e por que
descaiu o teu semblante?7Se puderes suportar isto bem, ser-te-á perdoado, mas se não,
na porta jaz o pecado, e fazer-te pecar é o seu desejo, mas tu podes
dominá-lo.»
Nota: A passagem
de Gen.4:6-7 foi retirada da Bíblia
Hebraica, editora & livraria Sêfer.
TIMSHEL – (“TU PODES”)
John Steinbeck, membro
da Igreja Episcopal, era um homem versado nos textos da Bíblia. Um deles, em
especial, despertou o seu interesse: a história de Caim e Abel. O romancista
considerava que a partir desta pequena história bíblica estavam lançados os
pilares da responsabilidade individual e a invenção da consciência. Foi
inspirado nela que escreveu a sua obra magna “A Leste do Paraíso”.
No entanto, a variedade de traduções do
hebraico para o vernáculo, neste caso o inglês, captou a atenção de Steinbeck,
muito em particular na passagem final de Génesis 4:7. Por exemplo, enquanto
certas traduções dizem «domina-o» (o pecado), a versão King James diz: «dominarás
sobre ele». O «tu dominarás sobre ele»,
promete ao homem uma vitória certa sobre o pecado. Todavia, «domina-o» já não é
uma promessa, mas sim uma ordem. Uma palavra, em concreto, intrigou Steinbeck –
timshel. Por esta razão decidiu
consultar o académico Louis Ginzberg, especialista em textos hebraicos.
W. A. Bouguereau, O Primeiro Luto (Adão e Eva encontram o
corpo de Abel), 1888, Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires
A palavra hebraica timshel(תמשול), quando surge sozinha pronuncia-se timshol. Mas na passagem em questão surge associada à palavra bo, o que lhe altera a pronúncia. Assim,
a vogal “o” passa a pronunciar-se timsh’l
(timsh’l bo). Steinbeck, para quem o fundamental não era a
pronúncia da palavra, mas o seu significado, escolheu representar o som com a
vogal “e”, optando pela pronúncia timshel.
No
romance, as personagens principais discutem a história de Caim e Abel. Debatem,
sobretudo, o significado correcto da palavra timshel. Steinbeck acabaria por afirmar, através das suas
personagens, que “tu podes” (em inglês “thou mayest”) era a tradução que melhor
exprimia a intenção da Torah. Uma dessas personagens, Lee, o criado chinês, argumenta
que a palavra timshel ─ tu podes ─ talvez
seja a palavra mais importante do mundo, porque deixa o caminho aberto à
escolha. Em última instância, conclui ele, a responsabilidade de escolher ou
não escolher incumbe ao homem.
Ainda através da voz de Lee, Steinbeck
afirma: «Nas seitas e nas igrejas, milhões de fiéis obedecem à ordem «domina»,
e entregam-se de alma e coração à obediência; milhões de outros acreditam na
predestinação do «tu dominarás», e nada do que poderão fazer deterá a marcha do
destino. Mas «tu podes» é algo que engrandece o homem e o eleva ao tamanho dos
deuses, porque, apesar da sua fraqueza, da sua imundície e do assassínio do
irmão, é ele ainda quem dispõe da grande escolha. Pode escolher o caminho,
lutar para o percorrer e vencer.»
תמשול
Steinbeck, ao
escolher “thou mayest - tu podes” como a tradução mais fiel da palavra timshel ao texto bíblico (aliás,
consistente com as fontes judaicas), quis realçar a importância da liberdade de
escolha na forma como conduzimos a nossa vida.
Entre
muitas lições, a história de Caim e Abel ensina-nos que o Livre Arbítrio,
embora inerente à condição humana, para ser exercido em liberdade, em
consciência, não pode estar à mercê de impulsos, do medo, da ignorância. A
liberdade de escolha aprende-se, na relação com o outro, no estabelecer de
afectos, na vida em comunidade, no desenrolar da aventura humana, que é a maior
aventura de todas.
Esta breve
reflexão sobre o Livre Arbítrio encerra com o tema Timshel, da banda Mumford & Sons. O tema, inspirado no romance
“A Leste do Paraíso”, traduz com grande expressividade a lição de Steinbeck ─
nós podemos dominar o pecado, se essa for a nossa escolha.
And you have your choices
And these are what make man great
His ladder to the stars
Timshel - Mumford and Sons
Cold is the water
It freezes your already cold mind
Already cold, cold mind
And death is at your doorstep
And it will steal your innocence
But it will not steal your substance
But you are
not alone in this
And you are not alone in this
As brothers we will stand and we'll hold your hand
Hold your hand
And you are
the mother
The mother of your baby child
The one to whom you gave life
And you have your choices
And these are what make man great
His ladder to the stars
But you are
not alone in this
And you are not alone in this
As brothers we will stand and we'll hold your hand
Hold your hand
And I will tell the night
Whisper, "Lose your sight"
But I can't move the mountains for you
Artigo elaborado por:
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Fontes:
Bíblia Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São
Paulo, Brasil;
STEINBECK, John, A Leste do Paraíso, Editora Livros do
Brasil;
"We remember what happens when hate takes hold of
the human heart and turns it to stone; what happens when victims cry for help
and there is no one listening. We remember and pay tribute to the
survivors."
Iluminura de Eclesiastes
[Kohelet] com a palavra “Divrei/Palavras”, folio 302,
Pentateuco Alemão do
Duque de Sussex, c. de 1300, British Library.
1 1 Palavras de Kohelet, filho de David, rei em Jerusalém.
2 Vaidade das vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.
Começa assim o “Livro de Kohelet”
(Meguilat Kohelet), da Bíblia Hebraica. Na tradução grega é conhecido por
Eclesiastes, literalmente “Membro de uma Assembleia”. O texto, cuja autoria é
atribuída por algumas fontes ao rei Salomão, é de carácter pessoal e
autobiográfico; usando um tom carregado de cepticismo e pessimismo, é uma
reflexão sobre o propósito da vida e a melhor maneira de a conduzir. O autor
diz ter possuído imensas riquezas e experimentado todo o tipo de prazeres,
conforme descreve no livro, concluindo, no entanto, que «devemos temer a Deus e
guardar os Seus mandamentos, pois nisto consiste todo o dever do homem».
(12:13)
A palavra-chave de “Kohelet” é hevel. Hevel, invariavelmente traduzida como
“vaidade, leviano, fútil, sem valor, absurdo, transitório”, aparece nada mais
do que trinta e oito vezes, cinco das quais numa só frase: “Vaidade das
vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Contudo, nenhum
destes significados é o seu significado primordial. O significado original da
palavra hevel é “respiração débil”. Hevel é uma curta, ténue respiração, um
sopro quase imperceptível, um vapor.
Nós humanos somos
seres biológicos de grande complexidade. Todavia, o que nos separa de ser e
não-ser, da vida e da morte, não é nada complexo. É uma simples respiração.
Podemos assim interpretar que o que obcecava Kohelet era a vulnerabilidade da
vida, tão frágil como uma simples respiração. Mas apesar de frágil, ou por essa
razão, Kohelet considera que a vida tem em si um valor inestimável,
contrariamente à posse de bens materiais, que se revela insignificante, fútil,
absurda, uma vaidade. Assim, uma existência apoiada naquilo que se possui é
como um vapor -hevel -, como uma
sombra que passa, um sonho que se desvanece, vã. Daí a tradução «Vaidade das
vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.»
Caim e Abel, 1542-44, por
Ticiano, Basílica de Santa Maria della Salute,
Veneza, Itália
Na sua reflexão
sobre a vida, “Kohelet” também é um midrash (uma interpretação crítica) sobre
as duas primeiras crianças no mundo. Não é por acaso que a primeira vítima de
assassínio na Torah, é chamada Hevel (Abel). Hevel simboliza a fragilidade da
vida, uma vida ceifada na mocidade, breve como uma brisa passageira. Tudo o que
nos separa da morte é um sopro de vida que Deus insuflou em nós. Isto é tudo o
que nós somos: hevel, uma frágil respiração. Mas é o sopro de Deus. Em hebraico
as palavras para alma – nefesh, ruach, neshamah – são todas relacionadas com o
acto de respirar.
O que matou Hevel, foi Kayin (Caim). A
Torah diz explicitamente porque razão lhe foi dado este nome. Chavah (Eva)
disse: «Adquiri [kaniti] um homem com o auxílio do Eterno.» (Génesis 4:1) Kayin
significa «adquirir, possuir, ter». Mas quanto mais temos, mais queremos ter. E
já que todos queremos mais, e não menos, o resultado leva-nos irremediavelmente
ao conflito e à violência.
Por esta razão, o princípio de que não
possuímos nada é fundamental para a visão estabelecida na Torah. Tudo – a
terra, o seu produto, o poder, a soberania, as crianças, a própria vida -, tudo
pertence a Deus. Nós somos apenas administradores, guardiães, em Seu nome.
Kayin (Caim) significa: eu sou aquilo que possuo, e aquilo que possuo
dá-me poder. A sua religião era a vontade de possuir. Por isso Deus rejeitou a
sua oferta. O sacrifício que Deus aceitou foi o de Abel/Hevel, aquele que
provém da humildade da mortalidade - “Senhor do Mundo, eu sou uma frágil
respiração; o sopro da vida recebi-o de Ti. A minha respiração é Tua, não
minha.”
Quando a religião se torna num veículo
para a alcançar o poder, o resultado é derramamento de sangue. Os extremistas,
em qualquer época e em qualquer cultura, ao fazerem uso da violência em nome da
religião, justificam-na por acreditarem que é apropriada e absolutamente
necessária. A isto Deus responde: «A voz do sangue do teu irmão chama por Mim
das profundezas da terra.» (Génesis 4:10)
A grande escolha que a humanidade enfrenta
é a de escolher entre a ambição do poder e a vontade de viver, a motivação para
a vida. Se escolhermos uma cultura que sacrifique a vida em prol do poder,
mesmo que isso implique o recurso à violência, então o resultado só poderá ser
de devastação e derramamento de sangue.
Artigo elaborado por:
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Texto adaptado de: The Wiil to Life vs The Will to
Power: In memory of Rabbi Eitam and Naama Henkin, por Jonathan Sacks