O Ter e o Ser
Iluminura de Eclesiastes
[Kohelet] com a palavra “Divrei/Palavras”, folio 302,
Pentateuco Alemão do
Duque de Sussex, c. de 1300, British Library.
1 1 Palavras de Kohelet, filho de David, rei em Jerusalém.
2 Vaidade das vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.
Começa assim o “Livro de Kohelet”
(Meguilat Kohelet), da Bíblia Hebraica. Na tradução grega é conhecido por
Eclesiastes, literalmente “Membro de uma Assembleia”. O texto, cuja autoria é
atribuída por algumas fontes ao rei Salomão, é de carácter pessoal e
autobiográfico; usando um tom carregado de cepticismo e pessimismo, é uma
reflexão sobre o propósito da vida e a melhor maneira de a conduzir. O autor
diz ter possuído imensas riquezas e experimentado todo o tipo de prazeres,
conforme descreve no livro, concluindo, no entanto, que «devemos temer a Deus e
guardar os Seus mandamentos, pois nisto consiste todo o dever do homem».
(12:13)
A palavra-chave de “Kohelet” é hevel. Hevel, invariavelmente traduzida como
“vaidade, leviano, fútil, sem valor, absurdo, transitório”, aparece nada mais
do que trinta e oito vezes, cinco das quais numa só frase: “Vaidade das
vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Contudo, nenhum
destes significados é o seu significado primordial. O significado original da
palavra hevel é “respiração débil”. Hevel é uma curta, ténue respiração, um
sopro quase imperceptível, um vapor.
Nós humanos somos
seres biológicos de grande complexidade. Todavia, o que nos separa de ser e
não-ser, da vida e da morte, não é nada complexo. É uma simples respiração.
Podemos assim interpretar que o que obcecava Kohelet era a vulnerabilidade da
vida, tão frágil como uma simples respiração. Mas apesar de frágil, ou por essa
razão, Kohelet considera que a vida tem em si um valor inestimável,
contrariamente à posse de bens materiais, que se revela insignificante, fútil,
absurda, uma vaidade. Assim, uma existência apoiada naquilo que se possui é
como um vapor -hevel -, como uma
sombra que passa, um sonho que se desvanece, vã. Daí a tradução «Vaidade das
vaidades, diz Kohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.»
Caim e Abel, 1542-44, por
Ticiano, Basílica de Santa Maria della Salute,
Veneza, Itália
Na sua reflexão
sobre a vida, “Kohelet” também é um midrash (uma interpretação crítica) sobre
as duas primeiras crianças no mundo. Não é por acaso que a primeira vítima de
assassínio na Torah, é chamada Hevel (Abel). Hevel simboliza a fragilidade da
vida, uma vida ceifada na mocidade, breve como uma brisa passageira. Tudo o que
nos separa da morte é um sopro de vida que Deus insuflou em nós. Isto é tudo o
que nós somos: hevel, uma frágil respiração. Mas é o sopro de Deus. Em hebraico
as palavras para alma – nefesh, ruach, neshamah – são todas relacionadas com o
acto de respirar.
O que matou Hevel, foi Kayin (Caim). A
Torah diz explicitamente porque razão lhe foi dado este nome. Chavah (Eva)
disse: «Adquiri [kaniti] um homem com o auxílio do Eterno.» (Génesis 4:1) Kayin
significa «adquirir, possuir, ter». Mas quanto mais temos, mais queremos ter. E
já que todos queremos mais, e não menos, o resultado leva-nos irremediavelmente
ao conflito e à violência.
Por esta razão, o princípio de que não
possuímos nada é fundamental para a visão estabelecida na Torah. Tudo – a
terra, o seu produto, o poder, a soberania, as crianças, a própria vida -, tudo
pertence a Deus. Nós somos apenas administradores, guardiães, em Seu nome.
Kayin (Caim) significa: eu sou aquilo que possuo, e aquilo que possuo
dá-me poder. A sua religião era a vontade de possuir. Por isso Deus rejeitou a
sua oferta. O sacrifício que Deus aceitou foi o de Abel/Hevel, aquele que
provém da humildade da mortalidade - “Senhor do Mundo, eu sou uma frágil
respiração; o sopro da vida recebi-o de Ti. A minha respiração é Tua, não
minha.”
Quando a religião se torna num veículo
para a alcançar o poder, o resultado é derramamento de sangue. Os extremistas,
em qualquer época e em qualquer cultura, ao fazerem uso da violência em nome da
religião, justificam-na por acreditarem que é apropriada e absolutamente
necessária. A isto Deus responde: «A voz do sangue do teu irmão chama por Mim
das profundezas da terra.» (Génesis 4:10)
A grande escolha que a humanidade enfrenta
é a de escolher entre a ambição do poder e a vontade de viver, a motivação para
a vida. Se escolhermos uma cultura que sacrifique a vida em prol do poder,
mesmo que isso implique o recurso à violência, então o resultado só poderá ser
de devastação e derramamento de sangue.
Artigo elaborado por:
Sónia Craveiro
Muito obrigada
Texto adaptado de: The Wiil to Life vs The Will to
Power: In memory of Rabbi Eitam and Naama Henkin, por Jonathan Sacks
http://www.jewishpress.com/indepth/opinions/the-will-to-life-vs-the-will-to-power-in-memory-of-rabbi-eitam-and-naama-henkin/2015/10/11/
Outras fontes:
http://www.aish.com/h/su/tai/48961266.html
http://www.jewishencyclopedia.com/articles/5415-ecclesiastes-book-of
http://www.momentmag.com/religion-violence-a-moment-symposium/
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