quinta-feira, 2 de março de 2023

Gregos e Judeus Parte III

 



Gregos e Judeus

Duas Culturas em Confronto

Parte III: Um Diálogo de Culturas



Édipo e a Esfinge de Tebas, cílice ático de figuras vermelhas (detalhe), c.470 a.C., atribuído ao pintor Édipo, Museu do Vaticano, Roma

(A cena ilustra o “Enigma da Esfinge”: «Qual é o ser dotado de voz que anda com quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três ao anoitecer?». Édipo responde que se trata do homem porque, enquanto criança gatinha com todos os seus membros, em adulto anda com as duas pernas e chegando a velho com a ajuda de uma bengala.)


   A antiga Israel e a antiga Grécia — as duas grandes influências da civilização ocidental — tinham pontos de vista profundamente diferentes de tempo e circunstância. Os gregos deram ao mundo o conceito de tragédia. Os judeus deram ao mundo a ideia de esperança.

 

     Os gregos acreditavam em ananké, a fatalidade do destino. Na narrativa de “Édipo” de Sófocles, tudo o que Laio e o seu filho Édipo fazem para frustrar o destino trágico anunciado pelo oráculo, de facto aproxima-os mais da sua concretização. Nós esforçamo-nos, nós lutamos, por vezes alcançamos grandeza, mas evitar a tragédia é inútil porque o destino está traçado. Portanto, fica a pergunta: será que a vida tem um propósito?

     A história de José, o filho de Jacob e Raquel, é exactamente o oposto da história de Édipo.




Adrien Guignet, José interpreta o sonho do Faraó, 1845, Musée des Beaux-Arts, Rouen, França


     No Livro de Génesis, a sequência entre os capítulos 37 a 50 compreende a narrativa mais longa da Torah que, à excepção do capítulo 38 (dedicado a Tamar), é toda ela dedicada a um herói: José. A história começa e acaba com ele. Vemo-lo em criança, amado, mesmo mimado, pelo pai; como adolescente sonhador, provocando ressentimento nos irmãos; como escravo, depois prisioneiro, no Egipto; mais tarde como a segunda figura mais importante do maior império do mundo antigo. A cada etapa, a narrativa gira à volta dele e do impacto que tem sobre os outros. A vida de José emerge como um arquétipo de liderança. Aparentemente cada novo episódio parece conduzir à tragédia, mas em retrospectiva verifica-se que afinal era apenas um passo necessário para salvar vidas e para a materialização dos seus sonhos.


Mashber: crise e nascimento


     Mashber, a palavra hebraica para crise, também significa “cadeira de parto”. Na semântica da consciência judaica, a ideia de sofrimento em tempos difíceis está gravada como uma forma colectiva de sentir as contracções de uma mulher a dar à luz. Qualquer coisa nova está a nascer. Cada adversidade gera uma nova oportunidade.

 

      Para os judeus, de ontem e de hoje, Deus está connosco na jornada que percorremos ao longo do tempo. Acreditamos que somos parte da Criação de um Deus infinitamente bom e todo-poderoso, que nos concedeu o livre arbítrio. Por vezes sentimo-nos perdidos, mas depois descobrimos, como José descobriu, que Ele esteve sempre a guiar os nossos passos. O Judaísmo é antagónico à tragédia. Diz-nos que a cada golpe do destino, devemos lembrar a promessa de Deus de nunca nos abandonar. Alerta-nos para não cedermos ao desespero. Mesmo quando a nossa vida é marcada pelo infortúnio, lacerada pela dor, quando parece que a felicidade nos abandonou, ainda assim há esperança.


Atenas e Israel


Cabeça de mármore de jovem usando um diadema, século III-II a.C., Metropolitan Museum, Nova Iorque


     Os antigos gregos criaram uma das civilizações mais notáveis de todos os tempos. Deram-nos filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, historiadores como Heródoto e Tucídides, dramaturgos como Sófocles e Ésquilo, ou matemáticos como Pitágoras, Euclides e Arquimedes. Produziram arte e arquitectura de uma beleza inexcedível. No período clássico da Grécia Antiga, entre os séculos VI a IV a.C., a par de um desenvolvimento das expressões artísticas, deu-se um florescimento do pensamento racional. Nesse período, as disciplinas de história e medicina conheceram um progresso relevante. Os gregos procuravam a verdade na contemplação da natureza e da razão, emergindo assim o pensamento científico. A filosofia, como forma de reflectir o mundo, foi considerada a base de todas as ciências.

 

     “A Alegoria da Caverna” do Livro VII de A República de Platão, versa sobre a teoria do conhecimento. Neste exercício filosófico de combate à ignorância, Platão, usando a metáfora de um grupo de pessoas que vivem acorrentadas numa caverna, demonstra como o conhecimento humano pode ser pobre e limitado, quando a única percepção que têm da realidade lhes é mostrada, apenas, através de sombras trémulas projectadas por uma fogueira.



O Judaísmo não é sobre a verdade como sistema, mas sobre a verdade como história


     A antiga Israel (séculos antes dos gregos) procurava a verdade na história, nos acontecimentos e como Deus nos instruiu a aprender com eles. A Torah não é um tratado teológico, mas também não é uma simples história apresentada numa sequência de acontecimentos. Invocando princípios universais, é com as histórias de Adão e Eva, Caim e Abel, Noé e a geração do Dilúvio e a Torre de Babel, que nos fala de uma interacção entre Deus e a humanidade, cada uma delas representando um passo na sua maturação. Com a subtileza e a profundidade da Torah, observamos a condição humana e o seu crescimento psicológico, do instinto à consciência, do “pó da terra” até à responsabilidade moral, “à imagem de Deus”. Numa série de histórias interligadas que se desenrolam no tempo, desde a saída de Sara e Abraão da Mesopotâmia até Moisés e os israelitas errantes no deserto, fala-nos de uma viagem religiosa cheia de dúvidas, dificuldades e traumas. Fala-nos da natureza humana.

 

     Citando Thomas Cahill, “a Bíblia Hebraica conta-nos a história de uma “família”, que no decurso de dois milénios — dois milénios que estão hoje entre dois a quatro mil anos antes de nós — acumulou todas as confusões e antagonismos da vida humana. A história da Bíblia Hebraica é a história de uma consciência em evolução.”


História/Memória


Haggadah para crianças, de 1945. Compara a narrativa de Pessach com o Holocausto (Yeshiva University Museum/Center for Jewish History/via JTA)



     Muitas culturas da Antiguidade observavam o tempo apenas na sua natureza cíclica: as estações sucedem-se umas às outras, as pessoas nascem e morrem, e tudo regressa ao início. Nada muda realmente. Há mais de 5000 anos, os Sumérios inventaram a escrita cuneiforme. O desenvolvimento do sistema cuneiforme de escrita teve como resultado prático um sistema formal de educação, uma suprema realização do ponto de vista da história das civilizações. Todavia, diz-nos o académico Thomas Cahill, na cultura intemporal dos Sumérios, as cidades-estado tinham sido fundadas por deuses em tempos imemoriais. As invenções eram propriedade dos deuses, tal como os seres humanos, que tinham sido criados para ser seus servos. A escrita, o instrumento que torna a História possível porque fixa o passado como algo que não se pode mudar, não reflectia a história temporal. Não existia futuro tal como aprendemos a compreendê-lo.

 

     Os Judeus foram o primeiro povo a pensar no tempo como uma arena de transformação, um tempo linear e irreversível. Desbravando uma nova maneira de compreender e sentir o mundo, abriram a possibilidade a uma história pessoal, a uma vida individual com valor. No entanto, o hebraico bíblico não tem uma palavra que signifique “história” (o equivalente mais próximo é divrei hayamim, “crónicas”). Em vez disso usa a raiz zachor, que significa “memória”.

 

     Entre história e memória há uma diferença fundamental. História é a “história dele”, um conjunto de eventos que aconteceram a alguém, num certo tempo. Memória é “a minha história”. É o passado interiorizado que faz parte da minha identidade. Como Elie Wiesel escreve no prefácio do seu livro “From the Kingdom of Memory”, “Ser judeu é lembrar, reclamar o nosso direito à memória bem como o dever de a manter viva. Lembrar… lembra-te que foste escravo no Egipto. Lembra-te de santificar o Shabbat… — Esquecer para um judeu é negar o seu povo – e tudo o que ele simboliza – e também negar-se a si próprio.”


Corpo e Alma


Rafael, Escola de Atenas/Platão e Aristóteles (detalhe), 1509-1511, fresco, Stanza della Segnatura, Vaticano.  (Platão, à esquerda, aponta para os céus e para o reino das formas. Aristóteles, à direita, aponta para a terra e para o reino das coisas)


     Platão, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, viveu entre 428 e 347 a.C. Tinha 29 anos quando Sócrates foi condenado a beber a taça de cicuta. Inspirado pelo método dialéctico de Sócrates, Platão fundou em Atenas a sua própria escola de filosofia — a Academia. Para Platão, o homem é um ser dividido em duas partes: um corpo que flui e uma alma imortal. Ela é a sede da razão. Em “Fedro”, a metáfora que Platão usa para descrever a relação da alma com o corpo é a de uma pessoa encerrada numa prisão. A filosofia platónica almeja libertar a pessoa do seu corpo, que é sentido como uma prisão. Só assim se pode alcançar a perfeição.

 

     Num comentário à parashat Veyetze — “Be Fearful of Religion” —, o rabi Nathan Lopes Cardozo diz-nos que no Judaísmo, e de acordo com o pensamento bíblico, o corpo não é percepcionado como estando em conflito com a alma. Não é um obstáculo, mas antes um companheiro bem-vindo. De outra forma, qual seria a serventia do corpo? Apenas um fardo, sem o qual estaríamos melhor? O pensamento judaico atesta que a intenção de Deus não poderia ser a de criar um corpo humano, que deliberadamente causasse frustração à pessoa. É verdade, por vezes o corpo coloca-nos desafios, mas em última instância esses desafios fazem parte do nosso “crescimento” como seres humanos. No Judaísmo, o propósito do ser humano não é o de viver no Céu em contemplação, mas o de agir com os seus corpos para trazer o Céu para o domínio material, de forma a transformar o mundo num lugar melhor.



Aristóteles: filósofo e cientista


     Aristóteles (Macedónia, 384-Atenas, 322 a.C.), não só foi o último grande filósofo grego, como também o primeiro grande biólogo da Europa. Filho de um médico reconhecido, observava meticulosamente a natureza e as suas transformações. Fundou e ordenou as diversas ciências, criando uma linguagem técnica e uma lógica de pensamento analítico — o método científico. Em 335 a.C. fundou em Atenas a sua escola de filosofia — o Liceu.

 

     Aristóteles defendia que todos os pensamentos e ideias chegam à nossa consciência através daquilo que vimos e ouvimos. Além disso, temos uma capacidade única que não pode ser encontrada em nenhum outro ser vivo: a de pensar racionalmente. Uma distinção que retém uma centelha da razão divina. O seu conceito teórico sobre a alma difere do de Patão e de René Descartes (1596-1650 d.C.). Para ele, a alma não é um agente imaterial que age no interior de um corpo. A própria essência da alma é definida pela sua relação com o corpo.


Aristóteles e o Pensamento Judaico


     Há dois aspectos do pensamento aristotélico que sustentam um paralelo extraordinário com o pensamento judaico. O primeiro concerne ao envolvimento de Aristóteles no estudo do mundo, cuja realidade é inegável e digna, tanto de uma compreensão plena, como de vivermos nele. Assim se compreende que Aristóteles se tenha dedicado a tópicos tão diversos como a ética, a física, a psicologia ou a política.

 

     O segundo é sobre “propósito”, que no pensamento aristotélico é chamado “telos”. O propósito é considerado uma das quatro causas através das quais chegamos a um entendimento do universo e é referido como a “causa final”. A causa final deve reflectir-se numa “boa vida”.

 

     Na “Ética a Nicómaco”, Aristóteles advoga uma vida governada, antes de tudo, pela razão, mas reconhecendo, como no Judaísmo, que a humanidade tem um lado não-racional e que outras condições devem ser satisfeitas, tais como uma boa saúde, a amizade, a família, as nossas necessidades estéticas ou até as nossas necessidades sensuais. Isto é referido como uma vida de verdadeira felicidade, “eudaimonia” na terminologia aristotélica. Um tema que Viktor Frankl, um filósofo moderno judeu, clarifica na sua obra clássica “Man’s Search for Meaning”, que lida com a procura de um propósito além da Shoah.


***

     «Num mundo cíclico, não há princípios nem fins. Mas para nós, o tempo teve um começo. Seja pelas palavras de Deus no Livro de Génesis quando «no princípio criou Deus os céus e a terra», ou no Big-Bang da ciência moderna, um conceito que não seria possível sem os Judeus.» Thomas Cahill - “A Herança Judaica”

 

Nota: a teoria da origem do universo — o Big Bang — foi criada por Georges Lemaître (1894-1966), um padre católico, astrónomo, cosmólogo e físico belga.



Artigo de,

Sónia Craveiro 

Muito obrigada




Fontes:

 CAHILL, Thomas, “A Herança Judaica”, Contexto Editora, Lda. 1999, Lisboa

 Rabi Jonathan Sacks:

 “Choice and Chance” (Vayigash 5777) http://www.rabbisacks.org/choice-change-vayigash-5777/

 “A Nation of Storytellers” (Ki Tavo 5779) https://rabbisacks.org/ki-tavo-5779-nation-storytellers/

 “Improbable Endings and the Defeat of Despair” (Vayeshev 5778) http://rabbisacks.org/improbable-endings-defeat-despair-vayeshev-5778/

“The Ever-Repeated Story” (Bamidbar 5777) http://rabbisacks.org/ever-repeated-story-bamidbar-5777/

 “Be Fearful of Religion”: Parashat Veyetze by Rabbi Nathan Lopes Cardozo http://www.jewishpress.com/judaism/jewish-columns/rabbi-dr-nathan-lopes-cardozo/be-fearful-of-religion-parashat-veyetze/2017/11/24/ https://www.britannica.com/biography/Aristotle/Philosophy-of-mind https://www.britannica.com/biography/Aristotle/Political-theory#ref1204151 https://www.britannica.com/biography/Aristotle/Philosophy-of-mind “Aristotle and Jewish Thought: A Harmonious Encounter” By Howard Zik https://www.jewishpress.com/indepth/aristotle-and-jewish-thought-a-harmonious-encounter/2014/12/28/0/


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