“O Sacrifício de Isaac”
Akedat Yitzchak - Parte 2
William Blake, Abraão e Isaac
(1799-1800), Yale Center for British Art,
New Haven, Connecticut.
Na piedade judaica a Akedah é o paradigma do martírio
judaico; o povo judeu está pronto, em todos os tempos, a dar a vida pela
santificação do divino nome (Kidush Ha-Shem). Os judeus, quando consideraram o
motivo sacrificial para além dos limites do texto, fizeram-no como consolação à
perseguição de que eram alvo, como defesa à insegurança, à catástrofe e à
blasfémia. Em suma, fizeram-no para justificar o seu martírio.
Contudo, de uma
forma geral para os pensadores judeus a posição de Deus relativamente à Akedah
está previamente definida: o sacrifício não realizado é reduzido a uma questão
hipotética, um teste a que Abraão é submetido, não implicando Deus no acto
ritual. Mas enquanto o Judaísmo lê a história como o drama de um homem
religioso, o Cristianismo, além de o ler assim, implica Deus, o Próprio, no
drama. Para os teólogos cristãos o sacrifício não realizado pressagia a Paixão,
o sofrimento e a crucificação de Jesus, que define a natureza do Cristianismo.
De acordo com
Santo Agostinho, Isaac representa Jesus na sua disposição em se encaminhar para
a morte, na forma como carrega a lenha para a pira, tal como Jesus carregou a
cruz, e ainda na expectativa, atribuída a Abraão, da sua ressurreição. O
cordeiro preso nos ramos de um arbusto simboliza a coroa de espinhos,
adivinhando Jesus entregue ao suplício.
Marc Chagall, Abraão e Isaac a
caminho do lugar do sacrifício, 1931,
Musée National Marc Chagall, Nice.
Chagall, talvez o
pintor judeu mais notável do século XX, é perturbador na forma sombria como
trata a subida de Abraão e Isaac ao Monte Moriah. Ainda na escuridão da noite,
Isaac carrega ao ombro um saco com a lenha para o seu sacrifício; ao seu lado
Abraão segura uma faca na mão direita, e na esquerda uma vela que ilumina o
caminho. A Akedah, tradicionalmente associada ao martírio judeu — o supremo
acto de sacrifício e expressão de lealdade na Aliança com Deus —, é um tema
recorrente na obra de Chagall.
Marc Chagall, O Sacrifício de
Isaac, 1964-66, Musée National
Marc Chagall, Nice.
No seu quadro “O
Sacrifício de Isaac”, em contraste com as cores sombrias da peça de 1931,
Chagall emprega cores como o azul e o vermelho, com toques de dourado. Isaac é
representado nu, com o corpo alongado, numa atitude passiva; Abraão, de faca em
punho, é interrompido por um anjo; outro anjo (talvez o mesmo, segundos depois)
aponta para o cordeiro enredado, não nos ramos de um arbusto, mas no tronco de
uma árvore, evocando a verticalidade da madeira, tão central para a imaginação
cristã; em cena de fundo há uma crucificação e figuras que choram o
crucificado.
Chagall usou a
figura do crucificado pela primeira vez em 1908, sugestionado pela violência
dos pogroms na sua Rússia natal. Mas é em 1938, depois da Kristallnacht, que
surge a muito controversa “Crucificação Branca”.
Marc
Chagall, Crucificação Branca, 1938, Art Institute of Chicago
A obra representa Jesus, o Judeu, rodeado, à esquerda, de
soldados comunistas que atormentam uma aldeia e, à direita, de nazis que
incendeiam uma sinagoga. O Crucificado, coberto abaixo do ventre com um talit,
ou xaile de oração, está içado no meio, vítima de ódios, à esquerda e à
direita, de igual modo. Para Chagall, Jesus na cruz representa a situação de
todos os judeus, humilhados, perseguidos, enfim, vilipendiados num mundo
aparentemente esquecido de Deus.
Isaac ou Ismael?
Qesas-e Qor’ãn ou Qesas al-anbyiâ
— “Histórias do Corão ou História dos profetas e dos reis do passado” (fol.
40), O Sacrifício de Abraão, c.1595,
Qazvin, BNF, Paris
Abraão
(Ibrahim), «o amigo de Deus», ocupa um lugar importante no Corão. No Corão o
episódio bíblico do Sacrifício do filho é mencionado, sem, no entanto,
mencionar o nome de Isaac. Sujeito a longos debates entre os comentadores
muçulmanos, a opinião dominante é que se trata de Ismael (o primogénito de
Abraão e de Agar), a quem a tradição islâmica atribui a fundação do santuário
de Caaba, em Meca, juntamente com seu pai.
Esta pintura realizada na Corte *safávida de Qazvin
pertence ao manuscrito da “História dos Profetas”, e é um exemplo do requinte e
da riqueza das miniaturas devidas a vários artistas. A intensidade dramática da
história é reforçada na expressão amargurada de Abraão que, contrariamente às
convenções, encosta a faca ao seu ombro, como se quisesse virá-la para si
mesmo; o olhar do filho é impassível, como que perdido algures, numa atitude de
total obediência.
***
Cada uma das
três tradições — judaica, cristã e islâmica — faz uma leitura própria do
Sacrifício de Isaac (ou Ismael para a maioria dos muçulmanos), desenvolvendo
uma narrativa de acordo com a sua identidade particular. Mas há uma mensagem
que é partilhada pelas três religiões: a fé de Abraão.
Lech Lechá (Vai por ti) — E o
Eterno disse a Abrão: “Vai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que te mostrarei. E farei de ti uma grande nação (…); e serão
benditas em ti todas as famílias da terra.” (Génesis 12:1-3)
Obedecendo a um
comando de Deus, Abraão (ou Abrão, como então era chamado), com 75 anos de
idade, parte para o desconhecido, deixando para trás as suas referências, a
casa paterna e a sua terra natal. Ao não se comportar de uma determinada forma,
porque era assim que as pessoas ao seu redor agiam, nem se conformar com os
costumes do seu tempo, Abraão teve a audácia de ser diferente, de “estar de um
lado, enquanto o resto do mundo estava do outro.” [1]
Apesar das
inseguranças, da velhice e de tantos outros obstáculos que pareciam tornar
impossível a realização da promessa que Deus lhe fizera, Abraão seguiu
corajosamente a sua jornada. A vida de Abraão foi longa e atribulada, mas
sempre guiada pela voz de Deus. Talvez toda ela, e não apenas o episódio do
Sacrifício de Isaac, seja um apelo para ouvirmos a voz de Deus, para O
deixarmos entrar nas nossas vidas.
Este artigo foi uma oferta da,
Sónia Craveiro
Muito obrigada J
*Safávidas: dinastia muçulmana de obediência xiita que reinou no Irão de
1501 a 1786.
[1] Bereishit Rabbah 42:8
Fontes:
Bíblia Hebraica, Editora e
Livraria Sêfer Ltda, São Paulo, Brasil, 2006
Livres de Parole, Torah, Bible,
Coran, Bibliothèque Nationale de France, 2005
https://www.firstthings.com/article/2014/04/the-christ-of-marc-chagall
https://www.theway.org.uk/back/s097Mulrooney.pdf
http://shma.com/2011/09/the-binding-of-isaac-or-his-sacrifice-christian-and-jewish-perspectives/
http://rabbisacks.org/inner-directedness-lech-lecha-5778/