Cidade Santa das Três Religiões
Abraâmicas
William Turner, “Jerusalém vista do Monte das Oliveiras”, 1834
«Se eu te esquecer, oh Jerusalém, /que a minha mão direita fique seca!
Que a minha língua se prenda, /se eu perder a tua lembrança,
se eu não elevar Jerusalém/ao cume da minha alegria!»
Canto dos filhos exilados de Israel
(Salmo 137: 5-6)
«Oh Jerusalém, tu que matas os profetas/e apedrejas os que te foram enviados!
Quantas vezes Eu quis juntar os teus filhos/como a galinha junta
os pintos debaixo das asas, mas tu não quiseste!»
Jesus contemplando Jerusalém no Monte das Oliveiras
Mateus 23:37
«Oh Jerusalém, terra eleita de Alá e pátria/dos Seus servidores!
Foi dos teus muros que o mundo/se tornou mundo.
Oh Jerusalém, o orvalho que cai sobre ti/cura todos os males, pois vem dos jardins do Paraíso!»
Hadiths, palavras do profeta Maomé
Caravaggio, “O Sacrifício de Isaac”, 1603, Galeria Uffizi, Florença
A palavra Jerusalém — Yerushalayim em hebraico — aparece pela primeira vez no Livro de Josué (Josué 10:1). Jerusalém — mais concretamente o Monte do Templo (em alusão ao Templo de Salomão), assim chamado por judeus e cristãos, designado Nobre Santuário pelos muçulmanos, é um lugar sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos.
O Monte do Templo, originalmente Monte Moriah, foi palco de importantes passagens bíblicas. Acredita-se que foi lá que Abraão quase sacrificou o seu filho Isaac (Gen.22:1-2).
Livro do Divino Sacrifício, fol.41v, Mishneh Torah, 1457, Norte de Itália,
Museu de Israel
O lugar da “pedra do sacrifício” (a Sagrada Pedra de Abraão), foi eleito pelo rei David para construir um santuário onde acolher a Arca da Aliança, o objecto mais sagrado do judaísmo. David incumbiu o seu filho Salomão de erguer no local um templo que substituísse o Tabernáculo — o Primeiro Templo (Templo de Salomão) —, cuja destruição por Nabucodonosor II, em 586 AEC, deu início ao exílio da Babilónia. No mesmo local, findo o cativeiro na Babilónia, seria reconstruído o Segundo Templo, concluído e dedicado em 516 AEC.
Por volta de 19 AEC, Herodes, o Grande, iniciou um projecto majestoso de expansão do Templo. Do Templo de Herodes, arrasado pelos romanos em 70 EC, restou apenas a Muralha Ocidental — Muro das Lamentações —, que constitui actualmente o local mais sagrado do judaísmo.
Abraão sacrificando Ismael, Antologia do Sultão Iskandar (vol.2, fol.326v), c.1410, Pérsia, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa
Para os muçulmanos, o episódio do sacrifício do filho de Abraão (Ibrahim) aconteceu no mesmo local, mas com Ismael, filho do Patriarca e de Agar; Ismael, a quem, juntamente com seu pai, a tradição islâmica atribui a fundação do templo mais sagrado do Islão — o santuário de Caaba, em Meca. Jerusalém é o terceiro lugar mais sagrado do islamismo (depois de Meca e Medina), por se referir à jornada nocturna (Isra)de Maomé de Meca a Jerusalém.
Ilustração de Khamsa (Cinco Poemas) de Nizami, Tabriz, Pérsia, c.1539-43. British Library, Londres. Descreve a Jornada Nocturna de Maomé (Isra) para Jerusalém, cavalgando Buraq, a sua montada alada com face humana, seguida da sua Ascensão (Mir’aj), para conversar com Abraão, Moisés e Jesus.
Em finais do século VII, encontrando-se Jerusalém sob domínio dos omíadas, foi erguido no local onde outrora se ergueu o Templo, um santuário octogonal com cúpula — o Domo da Rocha. Lá, conforme a visão islâmica, teve lugar a ascensão (Mi‘raj) da alma de Maomé ao Paraíso.
Ilustração otomana da Esplanada das Mesquitas em Jerusalém,
Turquia, séc. XVIII
Na área que circunda a rocha foram construídas várias estruturas, entre elas a grande mesquita Al-Aqsa. Os muçulmanos chamaram a este espaço Esplanada das Mesquitas ou Haram al-Sharif (Nobre Santuário).
Gregório Lopes, Enterro de Cristo, 1539, MNAA, Lisboa
Na interpretação cristã, o sacrifício de Isaac prefigura o sofrimento de Cristo. Em Jerusalém, o rochedo chamado Gólgota é identificado como o local onde Cristo foi crucificado, e o túmulo dito Anastasis (ressurreição em grego) é reconhecido como o local onde foi sepultado e onde, segundo a fé cristã, ressuscitou no Domingo de Páscoa. Como tal, são considerados dos locais mais sagrados do cristianismo. Neste ponto afigura-se oportuno ouvir a Ária “Erbarme dich, mein Got” (Tem piedade de mim, meu Deus) da Paixão segundo S. Mateus, de Bach, uma obra-prima da História da Música.
Nota: Paixão, do latim passio (sofrimento), é a história da crucificação de Jesus contada nos quatro Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren willen!
Schaue hier, Herz und Auge weint vor dir bitterlich.
Tem piedade, meu Deus, pelas
minhas lágrimas!
Vê como o meu coração e os meus
olhos
choram amargamente na tua
Presença.
Tem piedade, meu Deus!
Bach: Erbarme dich, mein Gott (Matthäuspassion) -
Galou (Roth)
Arco de Tito, em
Roma. Relevo interior: marcha triunfal de Tito, em Roma, com a exibição dos
tesouros apreendidos no Templo de Jerusalém.
Entre 66-73 EC, durante
a primeira guerra judaico-romana, as Legiões Romanas destruíram Jerusalém. O
exército de Tito celebrou a vitória com uma marcha triunfal pelas ruas de Roma,
em que exibiu os prisioneiros e as pilhagens, nomeadamente o mobiliário e os
utensílios do Templo. Em Jerusalém, a população judaica foi substituída por
soldados da Décima Legião, respectivas famílias e alguns civis oriundos da
Síria e territórios vizinhos.
Na sequência da destruição de Jerusalém, o imperador
Adriano, de visita à cidade em 130, ordena a sua reconstrução. A nova cidade seria chamada Aelia Capitolina e
obedeceria a um plano de características estritamente romanas, portanto pagãs. Para impedir o culto de judeus e cristãos, Adriano ergueu
no local da Crucificação, um templo dedicado a Vénus, e no Monte do Templo, um
outro dedicado a Júpiter.
Moeda cunhada por
Bar Kochba: numa face a fachada do Templo;
na outra, um lulav com a inscrição
«Pela Liberdade de Jerusalém»
Em 132 Simão bar
Kochba revoltou-se contra os romanos, chegando mesmo a cunhar moeda com a
inscrição «Pela Liberdade de Jerusalém». Por fim, os romanos optaram por uma
guerra de desgaste que praticaram até à capitulação dos rebeldes, o que se verificou
em 135. A Revolta de Bar Kochba custou milhares de vidas judaicas e também
romanas. Adriano, como retaliação, numa tentativa de apagar a memória dos
reinos de Judá e de Israel, criou uma nova província imperial, resultante da
fusão da Síria e da Judeia, a que chamou Syria Palaestina.
As medidas
punitivas de Adriano que baniam a Torah, o estudo, a circuncisão, ou o
cumprimento do Shabbat, foram todas revogadas no reinado do seu sucessor,
Antonino Pio. Aos judeus, só foi mantida a proibição de entrar e de residir em
Jerusalém, à excepção da lamentação anual no nono dia de Av — Tisha Beav —,
data da destruição do Templo.
Jerusalém com a
Cardo Maximus (avenida principal) de Aelia Capitolina, Mapa de Madaba em
mosaico bizantino, séc. VI EC, Igreja de São Jorge em Madaba, Jordânia
Com o decorrer
dos anos, Aelia Capitolina, a única cidade do Império Romano que foi criada e
colonizada pelo exército (na realidade, uma base militar para prevenir
eventuais revoltas), perdeu a sua utilidade e em 289 a Décima Legião foi
transferida para Eilat. Por esta altura as relações entre Roma e os judeus
estavam pacificadas, acabando por se radicar em Jerusalém uma pequena
comunidade judaica.
Igreja do Santo
Sepulcro em Jerusalém, Nathaniel Everret Green (1823-99)
No início do
século IV o Império Romano ainda era pagão, mas em 313 o imperador Constantino
abraçou o cristianismo. Na prática, isto significou que o cristianismo passou a
ser religião oficial de estado. Contudo Jerusalém permaneceria Aelia Capitolina
até 324, ano em que Constantino conseguiu o pleno domínio do seu império, cuja
capital foi transferida de Roma para Bizâncio, depois denominada
Constantinopla.
Em 325
realizou-se o Primeiro Concílio de Niceia, perto de Constantinopla, onde
estiveram presentes 318 bispos de todo o Império Romano, incluindo Macário,
bispo de Jerusalém. No seguimento do Concílio, é identificado em Jerusalém o
local do túmulo de Jesus: uma caverna que se encontrava por baixo do templo de
Vénus, erigido por Adriano. No seu lugar, Constantino manda construir Anastasis
— a Igreja da Ressurreição, precursora da actual Igreja do Santo Sepulcro, o
santuário mais sagrado do cristianismo em Jerusalém.
Peregrinos em
frente à Igreja do Santo Sepulcro, “Livro das Maravilhas do Mundo”, fol.274, Mestre de
Boucicaut (activo em Paris entre 1390-1430), BNF, Paris
A partir de Constantino até ao século VII, Jerusalém foi de
novo interdita aos judeus, a não ser uma vez por ano, a partir de 430, quando a
imperatriz Eudócia (consorte de Teodósio II) conseguiu licença para a
peregrinação de Tisha Beav. Ao
adoptar o cristianismo como religião oficial do império, Roma passa a designar
a Palestina por “Terra Santa”. Jerusalém prospera, transformando-se num
importante centro de peregrinação da cristandade, onde afluem cristãos de todas
a regiões do império.
Em Maio de 614 o
rei Cosroes II da Pérsia conquista Jerusalém, destruindo praticamente todas as
igrejas e mosteiros, e dizimando a população; em 629, a cidade é reconquistada
pelo imperador Heráclio de Bizâncio. Todavia, onze anos mais tarde, em 637, os
exércitos sarracenos comandados pelo califa Omar conquistam a Palestina
bizantina, passando a controlar Jerusalém.
Nicola Said, “O
Califa Omar em Jerusalém”, 1920, Fundação
Khalid Shoman, Amã, Jordânia
Com a conquista árabe, judeus e cristãos foram
autorizados a regressar à cidade, mediante certas condições, entre elas, o
pagamento da jiziya (imposto exigido a cidadãos não-muçulmanos num estado
islâmico).
Durante os dois
séculos seguintes, enquanto os poderes árabes disputavam entre si o controlo da
região, Jerusalém foi definhando. Ao mesmo tempo que os senhores do Oriente
ignoravam Jerusalém, no Ocidente, o imperador Carlos Magno (742-814) teve uma
acção muito dinâmica no reflorescimento das obras cristãs na cidade.
A conquista de
Jerusalém por Godofredo de Bulhão, Roman de Godefroy de Bouillon et de Saladin,
Paris, 1337. BNF, Manuscrits (Fr 22495 fol.69v)
O século XI foi
difícil para Jerusalém: em 1009, o soberano fatímida Al-Hakim ordenou a
destruição de todos os lugares santos cristãos da cidade. Como consequência, os
cristãos, tanto residentes como peregrinos, foram vítimas de perseguições e de
maus tratos. Estes ataques provocaram várias rebeliões locais, que, por sua
vez, derivaram em ataques violentos às comunidades judaicas. Em 1071, os turcos
seljúcidas conquistaram Jerusalém aos fatímidas, mas brutalizaram-na de tal
forma que a Yeshiva Palestiniana se mudou para Tiro.
Finalmente, em
Julho de 1099, os cruzados chefiados por Godofredo de Bulhão (que viria a ser o
primeiro regente do Reino Latino de Jerusalém) conquistaram a cidade santa aos
muçulmanos. De acordo com as crónicas do arcebispo Guilherme de Tiro
(Jerusalém, c.1130-Tiro, 1185), os cavaleiros cristãos chacinaram os judeus e
os muçulmanos locais. De uma população de cerca de 40 000 pessoas, sobreviveram
apenas algumas centenas, posteriormente vendidas como escravas.
Mapa do Reino
Latino de Jerusalém, c. 1200, fragmento de Saltério, Biblioteca Koninklijke,
Haia (Jerusalém está representada dentro do círculo; em baixo os cruzados
protegem-na dos ataques islâmicos)
Entretanto,
judeus e muçulmanos foram proibidos de viver em Jerusalém: os cruzados
consideraram a sua presença um insulto para a santidade da cidade. Com a
chegada de novos residentes a Jerusalém, a cidade organiza-se em bairros
divididos por etnias. Os novos residentes eram na sua maioria europeus,
especialmente franceses, havendo também húngaros, espanhóis, alemães, etc.
Enquanto os cristãos assírios se instalaram na Antiga Judiaria (que manteve o
nome), os arménios criaram um bairro ao redor da Igreja de São Tiago (parte do
qual ainda hoje existe no Bairro Arménio). Já os gregos ortodoxos, depois de a
maioria das suas igrejas ter sido confiscada pelos rivais latinos, mudaram-se
para o lado oposto à Cidadela. Como resultado, desenvolveram-se bairros que
eram autênticos enclaves linguísticos.
Ricardo Coração de
Leão e Saladino (retratado como um demónio), Saltério de Luttrell, fol.82,
Inglaterra, c.1325-1335, British Library, Londres
Saladino, sultão
da Síria e do Egipto, tomou Jerusalém em 1187. Para os cristãos, esta derrota
significou o fim do primeiro Reino Latino de Jerusalém. A Europa lançou a
Terceira Cruzada, retomando a cidade de Acre em 1191. No entanto, os cristãos
não conseguiram reaver Jerusalém. Saladino e Ricardo I de Inglaterra chegaram a
acordo sobre Jerusalém no Tratado de Ramallah, em 1192, segundo o qual a cidade
permaneceria em mãos muçulmanas, mas admitindo as peregrinações cristãs. O
Tratado reduziu o Reino Latino a uma estreita faixa costeira compreendida entre
Tiro e Jafa, sendo a capital estabelecida em Acre — S. João de Acre.
O Cerco, fol.204,
Histoire d’Outremer, por Guilherme de Tiro, Norte de França, 1232-1261,
Manuscrito da British Library: Yates Thompson 12
Em 1229 os cristãos conseguiram reaver Jerusalém, por meio
de um tratado com o sultão aiúbida Al-Kamil, mas voltaram a perdê-la em 1244.
Ao longo do século XIII os mamelucos conquistaram os territórios do reino, até
à queda de Acre, em 1291, pondo fim ao Reino Latino de Jerusalém. A partir de
então, o título de rei de Jerusalém, apesar de sucessivamente reivindicado por
diversos monarcas europeus, foi apenas nominal.
Versos de Vasco
Graça Moura sobre Acre:
13 de Setembro. Variações.
em s. joão de acre
no calor das três da tarde
no passeio entre o cais
e os muros dos cruzados
uma mulher sorria
brincando com a filha
brincava alegremente:
podia ser judia
ou palestiniana
ou cristã ou arménia
ou bósnia ou angolana
foi em s. joão de acre
não há uma semana
Vasco Graça Moura (poema
inédito)
Os otomanos sitiam
os mamelucos em Damasco, "Selīm-nāma," MS H. 1597-8, fol. 235r, c.
1521-24, Museu do Palácio Topkapi, Istambul
Em 1516, os turcos
otomanos derrotaram o exército mameluco em Alepo, na Síria. Em 1517, o sultão
Selim I entrou em Jerusalém, dando início a 400 anos de domínio otomano na
Palestina.
Este artigo é da inteira autoria
de:
Sónia Craveiro
Muito obrigada J
Nota: segundo o Alcorão, os textos
islâmicos mais importantes são os hadiths,
conjunto de tradições relativas ao profeta Maomé, que transmitem os seus ditos,
os seus feitos, ou mesmo a sua atitude silenciosa sobre os assuntos mais
diversos.
Fontes:
LAPIERRE, Dominique, COLINS,
Larry, Oh Jerusalém, Bertand Editora
SCHAMA, Simon, A História dos Judeus – 1000 AC – 1492
DC, Círculo de Leitores
WILLIAMS, John Alden, ISLAMISMO,
Editorial Verbo
INGEBORG
RENNERT CENTER FOR JERUSALEM STUDIES - Bar-Ilan University Ramat-Gan, Israel -
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