sábado, 12 de janeiro de 2019

José e Judah...



ARREPENDIMENTO E PERDÃO

UMA HISTÓRIA DE IRMÃOS



Ford Madox Brown, “A Túnica de Muitas Cores”, c. 1864-1866, Walker Art Gallery, Liverpool


  A sequência entre os capítulos 37 a 50 do Livro de Génesis compreende a narrativa mais longa da Torah que, à excepção do capítulo 38 (dedicado a Tamar), é toda ela dedicada a um herói: José. A história começa e acaba com ele. Vemo-lo em criança, amado — mesmo mimado —, pelo pai; como adolescente sonhador, provocando ressentimento nos irmãos; como escravo, depois prisioneiro, no Egipto; mais tarde como a segunda figura mais importante do maior império do mundo antigo. A cada etapa, a narrativa gira à volta dele e do impacto que tem sobre os outros. A vida de José emerge como um arquétipo de liderança. Contudo é Judah, o quarto filho de Jacob, que vem a deixar uma marca indelével no povo judeu.

    Mas comecemos por ouvir a canção “Close every door “, do musical “Joseph and the Amazing Techicolor Dreamcoat”. Inspirado na história bíblica de José, a música é de Andrew Lloyd Webber e os líricos de Tim Rice. “Close Every Door” é a penúltima canção do primeiro acto do musical, cantada por José quando estava na prisão, acusado (falsamente) de seduzir a mulher de Potifar.   




Cantores: Yaakov Lemmer, Azi Schwartz e Netanel Hershtik. Orquestra e direcção do maestro Jules van Hessen. Sinagoga Portuguesa de Amesterdão.



József Mólnar, “A partida de Abraão de Ur para Canaã”, 1850, Galeria Nacional da Hungria


      O povo da aliança é conhecido por vários nomes. O primeiro é ivri, “hebreu”, significando “estranho”, “estrangeiro” ou “nómada”. Era assim que Abraão e a multidão que o seguia eram conhecidos. O segundo é Israel, derivado do nome atribuído a Jacob depois deste “ter lutado com Deus e os homens, e ter vencido” (Gen. 32:29). E o terceiro é yehudim, ou judeus.

     Após a divisão do reino e da conquista do Norte pelos assírios em 722 AEC, os descendentes de José, as tribos de Efraim e Manassés, desapareceram das páginas da História, enquanto a tribo de Judah, que dominava o reino do Sul, sobreviveu ao exílio da Babilónia. É a Judah, Yehudah em hebraico, que vamos buscar o nome que nos identifica como povo. Nós somos yehudim, judeus.



 James Tissot, “José conversa com Judah, seu irmão”, c. 1896-1902, Jewish Museum, Nova Iorque


     Mas porquê Judah e não José? A resposta está na passagem que descreve o encontro entre os dois irmãos, quando Judah implora a José pela libertação de Benjamim. Mas recuemos alguns capítulos, ao início da história de José, quando Judah propõe vender José para a escravatura: E disse Judah a seus irmãos: «Que proveito teremos matando o nosso irmão e ocultando o seu sangue? Vamos e o venderemos aos ismaelitas, e não poremos nossas mãos nele, pois ele é nosso irmão, nossa carne e nosso sangue». E os irmãos concordaram. (Gen. 37:26-27)

     Este é um discurso de uma insensibilidade atroz. Judah não quer sujar as mãos de sangue, mas pretende tirar proveito da situação, vendendo o irmão como escravo. Ao contrário de Rúben, o único dos irmãos que faz uma tentativa para salvar José (e falha), Judah mostra-se frio e calculista.  



James Tissot, “José revela a sua identidade aos irmãos”, c. 1896-1902, Jewish Museum, Nova Iorque


     Mas Judah muda. Outrora não hesitou em vender o irmão para a escravatura. Agora face à perspectiva de deixar Benjamim como escravo, diz a José: «E agora, deixa que este teu servo fique teu escravo no lugar do rapaz, e que ele possa voltar com os seus irmãos. Como poderia eu voltar à casa de meu pai sem levar comigo o rapaz? Não quero ver a desgraça que cairia sobre meu pai.» (Gen. 44:33-34)

     O homem que vemos passados tantos anos, não é o mesmo de antes. A frieza deu lugar à preocupação, a indiferença pelo destino de José foi substituída pela coragem em defesa de Benjamim. Judah está disposto a sofrer o destino que outrora infligiu a José, a fim de libertar o irmão mais novo. Isto é arrependimento sincero, e é este gesto que motiva José a revelar a sua identidade e perdoar os irmãos.



Horace Vernet, “Judah e Tamar”, 1840, Wallace Collection, Londres


     Judah é o primeiro penitente — o primeiro baal teshuvah — da Torah. Mas donde surgiu esta mudança de carácter? Para percebermos temos de recuar ao capítulo 38 — à história de Tamar. 

     O capítulo abre dizendo-nos que Judah se tinha separado dos irmãos, vindo a casar com uma mulher canaanita, de quem teve três filhos. Tamar (que se depreende fosse igualmente canaanita) foi casada com os dois filhos mais velhos de Judah. Tendo ambos falecido, deixaram-na viúva e sem filhos. Judah, temendo que o seu terceiro filho sofresse a mesma sorte, afastou-o dela, impedindo-a de casar novamente. Tamar, quando compreendeu a sua situação, disfarçou-se de prostituta. Judah dormiu com ela e Tamar ficou grávida. Judah, que ignorava o disfarce da nora, concluiu que ela tinha tido relações proibidas e ordenou que fosse condenada à morte. Entretanto, Tamar, que tinha ficado com o anel de selo, o manto e o cajado de Judah como penhor, enviou ao sogro a seguinte mensagem: «O pai do meu filho é o homem a quem estes objectos pertencem.»



Escola de Rembrandt, “Judah e Tamar”, c. 1650-1660, Rezidenzgalerie, Salzburgo


     Judah agora está ciente de toda a história. Não só colocou Tamar numa situação impossível, condenando-a à viuvez para o resto da vida, e isto além de ser o pai do filho dela, como percebe que Tamar agiu com extraordinária discrição ao revelar a verdade sobre ele, sem o envergonhar (daqui deriva a regra “Mais vale atirarmo-nos a uma fornalha incandescente, do que humilharmos alguém em público”).

     Tamar é a heroína da história, mas há uma consequência de grande significado: Judah reconhece que errou e admite imediatamente «Ela é mais justa do que eu» (Gen. 38:26). Este é o ponto de viragem na vida de Judah. Aqui nasce a capacidade de cada um reconhecer a própria culpa, de sentir remorso, e de mudar — o complexo fenómeno definido por teshuvah — que mais tarde conduz ao momento em que Judah faz com Benjamim, o oposto do que tinha feito com José. O mais importante, sugere a Torah, é que o pecador se arrependa — reconheça e admita o seu erro e tenha a capacidade de mudar a sua atitude. 

    Talvez não seja coincidência que Judah e Tamar tenham gerado Perez, dando assim início a uma árvore genealógica que dez gerações mais tarde nos dá David, o maior rei de Israel. 



Leão de Judá, fachada da Casa do Leão de Judá (ou Casa do Gato Preto), Trancoso, Portugal


     Possivelmente o futuro de Judah estava implícito no seu nome, que deriva do verbo le’hodot, significando “dar graças” (Yehudah recebeu o nome de Leah, que no nascimento do filho disse: «Desta vez dou graças ao Eterno. Por isso, deu-lhe o nome de Yehudah.» (Gen. 29:35). Também significa “admitir, confessar”. O termo bíblico vidui “confissão” — que é parte integrante do processo de teshuvah, e de acordo com Maimónides o seu elemento chave — tem a mesma raiz. Portanto, Judah também significa “aquele que admite o seu pecado”.


   “Onde se encontram os penitentes, nem o mais perfeito dos justos tem lugar”


     No Talmude da Babilónia (Berachot 34b), os Sábios articularam o seguinte princípio: “Onde se encontram os penitentes, nem o mais perfeito dos justos tem lugar”. Apoiaram-se no texto de Isaías “Paz, paz para quem está longe e para quem está perto” (Isaías 57:19), identificando aquele que está longe com o penitente pecador, que assim surge à frente daquele que está perto, o justo perfeito.

      José é conhecido na tradição por ha’ tzaddik, “o justo”. Judah, como vimos, foi um penitente. José tornou-se vice-rei do Egipto, “o segundo, depois do rei”. Judah foi o antepassado de reis. Onde o penitente Judah se encontra, nem o mais perfeito justo como José tem lugar.

     Por mais virtuoso e de natural bom carácter que alguém seja, maior é a grandeza de quem é capaz de crescer e mudar. Este é o poder da penitência, e começou com Judah.



Líricos da canção “CLOSE EVERY DOOR”

JOSEPH
Close every door to me, hide all the world from me
Bar all the windows and shut out the light
Do what you want with me, hate me and laugh at me
Darken my daytime and torture my night

If my life were important I
Would ask will I live or die
But I know the answers lie far from this world

Close every door to me, keep those I love from me
Children of Israel are never alone
For I know I shall find my own peace of mind
For I have been promised a land of my own.

CHILDREN
Close every door to me, hide all the world from me
Bar all the windows and shut out the light

La la la la la la (REPEAT)

JOSEPH
Just give me a number instead of my name
Forget all about me and let me decay
I do not matter
I'm only one person
Destroy me completely then throw me away

If my life were important I
Would ask will I live or die
But I know the answers lie far from this world

Close every door to me keep those I love from me
Children of Israel are never alone
For we know we shall find our own peace of mind
For we have been promised a land of our own


E este é mais um artigo elaborado por

Sónia Craveiro


Muito obrigada


Fontes:

Bíblia Hebraica, EDITORA E LIVRARIA SÊFER LTDA, São Paulo, Brasil
https://www.sefaria.org/Berakhot.34b.22?lang=bi
Rabi Jonathan Sacks:
“Choice and Chance” (Vayigash 5777)
http://www.rabbisacks.org/choice-change-vayigash-5777/
“The Unexpected Leader”
http://www.jewishpress.com/judaism/jewish-columns/rabbi-lord-jonathan-sacks/the-unexpected-leader-2/2018/12/13/
“DO NOT SHAME TAMARS RIGHTEOUS LESSON”
http://www.jewishpress.com/judaism/jewish-columns/rabbi-lord-jonathan-sacks/do-not-shame-tamars-righteous-lesson/2015/12/03/

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