segunda-feira, 11 de junho de 2018

ABORTO





O DEBATE CONTINUA


CHAI - (Vida em hebraico)


     No pensamento judaico, a Lei Oral (Torah she’be’ al peh) encerra uma verdade fundamental: o significado do texto não nos é dado pelo próprio texto. Entre o texto e o seu significado encontra-se o acto da interpretação — dependendo de quem o interpreta, em que contexto, e aquilo em que acredita. Todavia sem uma interpretação autorizada pela tradição, a Lei Oral mergulharia no caos.

     Convém lembrar que no Judaísmo houve grupos sectários — saduceus, caraítas e outros — que aceitaram a Torah Escrita, mas não a Lei Oral, uma realidade que se verificaria insustentável. O Talmude da Babilónia demonstra-nos isto mesmo com elegância e humor. Conta-nos a história de um não-judeu que queria converter-se ao Judaísmo, dirigindo-se, para o efeito, ao grande sábio Hillel. Contudo, o candidato fez uma ressalva: «Converto-me na condição de aceitar a Lei Escrita, mas não a Oral.» Hillel não protestou e disse ao homem que o ensinava. 





      No primeiro dia Hillel ensinou-lhe as quatro primeiras letras do alfabeto hebraico: alef, bet, guimel, dalet. No segundo dia ensinou-lhe as mesmas letras, mas na ordem inversa: dalet, guimel, bet, alef. «Mas ontem», protestou o homem, «ensinou-me o contrário.» «Sabe», retorquiu Hillel, «tem de confiar em mim até para lhe ensinar o alfabeto. Tem de confiar em mim, também no que toca à Lei Oral.» (Shabbat 31a). Esta pequena história do Talmude vem lembrar-nos que sem um acordo de princípios não pode haver ensino, nem aprendizagem, nem autoridade, nem genuína comunicação.



Maimónides, Mishneh Torah, Sefer Mishpatim [O Livro do Código Civil], fol. 355v, volume 2, Lisboa, 1471-1472, British Library, Londres


    Em Êxodo 21:22-23 (Parashat Mishpatim) encontramos uma passagem que, embora não diga respeito ao aborto per se, descreve uma situação em que dois homens brigam e uma espectadora, uma mulher grávida, é atingida e em consequência dos ferimentos aborta. Qual o castigo adequado a semelhante caso? Eis o texto:

“Numa briga entre homens, se ferirem uma mulher grávida e for causa de aborto, mas não houver dano [asson] fatal, o culpado será obrigado a indemnizar aquilo que o marido dela exigir, e pagará o que os juízes decidirem. Mas se houver dano fatal, então pagará vida por vida, …”

     A palavra asson significa “prejuízo, maldade, calamidade, dano, desastre”. Jacob usa-a quando os filhos lhe dizem que o vice-rei do Egipto (José) insiste que no regresso levem com eles Benjamim, o irmão mais novo, se querem ser absolvidos do crime de espionagem. Com o desaparecimento de José, Benjamim é o único filho que resta a Jacob, da sua amada esposa Raquel (entretanto falecida). Jacob não autoriza a saída de Benjamim, dizendo: «Se levardes este também de junto de mim e lhe acontecer algum desastre (asson), de tanta dor, fareis descer minha velhice ao túmulo.» (Génesis 44:29)

     No Judaísmo, o significado da lei que decorre da luta entre os dois homens é a seguinte: se a mulher aborta, mas não sofre outras lesões, o culpado é obrigado a pagar uma indemnização pela criança não-nascida, não sofrendo outras penalidades. Mas se a mulher morre, a ofensa é considerada um dano fatal. (Em Sanhedrin 79a, os sábios discordam se deve, ou não, ser aplicada a pena capital.)

     Uma coisa, no entanto, é clara. Causar o aborto a uma mulher grávida— ser responsável pela morte de um feto — não é uma ofensa capital. Até ao nascimento, o feto não tem estatuto de pessoa.



Fílon de Alexandria. André Thévet: Les vrais pourtraits et vies des hommes 
illustres grecz, latins et payens (1584)


      Ao mesmo tempo que em Israel os sábios ensinavam esta lei, havia em Alexandria, no Egipto, uma comunidade judaica considerável. Uma passagem no Talmude descreve o esplendor da sinagoga daquela cidade. A comunidade judaica alexandrina, cujo membro mais famoso foi o filósofo Fílon (c.20 AEC-c.50 EC), estava profundamente helenizada; desenvolveu as suas próprias tradições, por vezes diferentes da norma rabínica. Fílon, num dos seus trabalhos, explica a passagem bíblica em questão a um público não-judeu, parafraseando-as nas seguintes palavras:

«Mas se alguém tiver uma disputa com uma mulher grávida, a ferir na barriga e ela abortar, se a criança que foi concebida nela ainda não está moldada e não formada, ele será punido com uma multa, tanto para o assalto que cometeu, mas também porque impediu a natureza, que estava a formar e a preparar a mais excelente de todas as criaturas, um ser humano, de a trazer para a existência. Mas se a criança que foi concebida assumiu uma forma distinta em todas as suas partes, tendo recebido todas as suas próprias qualidades conjuntivas e distintivas, ele morrerá. Para uma criatura como essa, é um ser humano quem ele matou enquanto ainda estava na oficina da natureza, que entendeu ainda não ser o momento adequado para o trazer à luz, mas o manteve como uma estátua pousada na oficina do escultor, nada mais exigindo além de ser lançado e enviado para o mundo.» (Leis Especiais, III: XIX)

     Fílon interpretou a palavra asson, não como “calamidade”, mas como “forma”. Isto altera completamente o sentido dos versículos bíblicos em causa. Em ambos os casos, Fílon refere-se exclusivamente ao feto, nunca à mulher. No primeiro caso “não há asson”, pois o feto ainda não estava “moldado”, por se encontrar numa fase precoce; o segundo caso fala de um feto “já com forma”, numa fase adiantada de gestação. Fílon é particularmente expressivo quando compara um feto desenvolvido a uma escultura acabada, mas que ainda não deixou a oficina do escultor. Segundo este ponto de vista, o feticídio — aborto — pode ser considerado um acto de homicídio.



Apóstolo João (esq.) e Márcion de Sinope (dir.), MS 748, Itália, 
séc. XI, Morgan Library, Nova Iorque


      A interpretação de Fílon, bem como o ponto de vista da generalidade da comunidade judaica alexandrina (certamente influenciados pela perspectiva aristotélica que faz a distinção entre o feto “inanimado” e o “animado”), viriam a desempenhar um papel importante na história religiosa do Ocidente. A vitória decisiva da Igreja Paulina sobre a Igreja de Jerusalém, liderada por Tiago, irmão de Jesus, significou que o Cristianismo se difundiu especialmente entre os gentios, e não tanto entre os judeus.

     É justamente em Alexandria que acontece a tradução da Bíblia Hebraica para o grego (conhecida por Septuaginta/Antigo Testamento). Assim, os primeiros textos cristãos, se bem que profundamente dependentes da Bíblia Hebraica, foram escritos em grego. De facto, a única tentativa séria para separar completamente o Cristianismo da Bíblia Hebraica foi da responsabilidade do Gnóstico Márcion (séc. II) que por esta razão seria condenado por heresia.

     Os cristãos estavam, portanto, dependentes das traduções da Bíblia Hebraica, e respectivos comentários, para o grego, que eram realizadas no seio da comunidade judaica alexandrina. Como resultado, no caso particular que toca ao ensino sobre o aborto, os cristãos primitivos seguiram o pensamento de Fílon, em detrimento de o dos Sábios de Israel.



Piero della Francesca, Santo Agostinho, séc. XV, MNAA, Lisboa


      A principal diferença era, como a colocou Santo Agostinho (354-430), entre embryo informatus e embryo format — o feto ainda por formar e o já formado. Se o feto já estava formado, com mais de 40 a 80 dias após a concepção (decorria uma discussão acerca do período devido), então causar a sua morte era considerado assassínio. Assim pensava o teólogo latino Tertuliano, do século II. A lei permaneceu deste modo até 1588, quando o Papa Sisto V decretou que o aborto em qualquer estágio era considerado crime capital. Esta lei seria revogada três anos mais tarde por Gregório XIV e reintroduzida por Pio IX, em 1869. O Papa Pio IX (responsável pelo dogma da Imaculada Conceição e pela infalibilidade papal) declarou que a vida começa no momento da concepção e que o aborto, em qualquer momento de gestação, é punível com a excomunhão. Esta proclamação tornou-se Lei Canónica da Igreja Católica.


QUANDO COMEÇA A VIDA?


      Na Lei Judaica o estatuto de pessoa resulta de uma consideração legal que estabelece uma distinção, sendo essa distinção o acto do nascimento, a separação física do bebé do corpo da mãe. No entanto, apesar do feto não ter estatuto de pessoa, é uma pessoa em potência, devendo por isso ser protegido. Precisamente porque não podemos determinar o exacto momento em que a vida começa, não devemos admitir o aborto em nenhum estágio de gestação. Todavia, numa situação excepcional em que se coloca o dilema de salvar a vida da mãe, ou a do feto, tem precedência a vida da mãe.


A Lei Judaica permite explicitamente o aborto?


     Sim, mas só em circunstâncias muito limitadas. A situação mais comum, descrita explicitamente na Mishnah, é quando a vida da mãe corre perigo em consequência da gravidez. Alguns consideram que neste caso, o aborto, não só é aconselhável, como é imperativo. Mas quando a cabeça do bebé emerge da mãe (algumas autoridades afirmam que deve ser a maioria do corpo, outras apenas um membro), a terminação da gravidez já não é permitida, pois a Lei Judaica não permite sacrificar uma vida para salvar outra. 

     De salientar que entre as autoridades ortodoxas há controvérsia quanto à permissibilidade do aborto. Ou seja, certas fontes rabínicas ortodoxas defendem o aborto quando a saúde da mãe está vulnerável, sem, no entanto, correr perigo de vida; quando comprovadamente o feto sofre de malformação severa; quando a saúde mental da mãe pode ser comprometida; ou quando a gravidez decorre de uma união sexual proibida. Deste modo, as autoridades rabínicas insistem que cada caso deve ser objecto de análise individual.

     Já o Movimento Masorti (Conservador nos EUA), decretou universalmente em 1983, a permissão do aborto nos casos em que a continuação da gravidez seja susceptível de causar à mãe graves danos físicos ou psicológicos, ou quando o feto for declarado severamente deficiente.

     O Movimento Reformista tem uma abordagem semelhante. Em 1985, o rabinato do movimento incluiu no bem-estar psicológico da mãe casos de violação ou de incesto, enfatizando a oposição ao aborto por razões triviais ou “a pedido”. Em conclusão, no Judaísmo, seja ele ortodoxo, conservador ou reformista, o debate à volta do aborto continua. Mas num ponto todas as correntes estão de acordo: o aborto “a pedido” é inconcebível. 



Este artigo é da inteira autoria de
Sónia Craveiro
 
Muito obrigada


Texto adaptado de “Abortion: The Debates Continues”, por Rabino Lord Sacks
http://www.jewishpress.com/in-print/from-the-paper/abortion-the-debate-continues/2018/02/08/
Outras Fontes:
https://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/2009/05/science-ethics-and-abortion-the-perspective-of-britaine28099s-chief-rabbi
https://embryo.asu.edu/pages/effraenatam-1588-pope-sixtus-v
https://embryo.asu.edu/pages/pope-gregory-xiv-1535-1591
https://embryo.asu.edu/pages/pope-pius-ix-1792-1878