“Olho por
olho, dente por dente” significará, realmente,
um olho por um olho?
“Olho por olho,
dente por dente”: esta passagem do Livro do Êxodo (Êx. 21:24) é uma das mais
conhecidas da Torah, e também uma das que mais tem prejudicado a reputação do
Judaísmo ao longo dos tempos.
Em sociedades
pré-bíblicas não é difícil imaginar uma vítima de agressão tirar a vida ao seu
agressor, como forma de retaliação, criando assim um ciclo infindável de
conflitos e vinganças, que se prolongaria de geração em geração. Ao definir a
ideia de que uma lesão provocada deve ser objecto de reparação material, a
Torah não aprova a vingança, estabelecendo como reparação uma medida standard
imediatamente perceptível como justa.
Jean Fouquet, Pompeu no Templo de Jerusalém, c. 1470,
BNF, Paris
É do conhecimento geral que a Judeia do Período Romano
estava muito fragilizada. A influência greco-romana era omnipresente e
insidiosa, com manifestações inegáveis de paganismo, e aos problemas
interétnicos entre as populações judaicas e não-judaicas, juntavam-se as
tensões sociais, religiosas e políticas no seio da própria sociedade judaica.
Pode assim deduzir-se que numa população tão heterogénea e conturbada, a Torah
não fosse conhecida de todos, ou que muitos dela tivessem um conhecimento pobre
e limitado, se não mesmo deturpado.
Como mais
adiante tentaremos demonstrar, a frase “olho por olho, dente por dente” faz
parte de uma sentença destinada a implementar normas de justiça e equidade.
Contudo, por muito revolucionária que a directiva “olho, por olho” tenha sido
quando a Torah foi escrita, durante o Período Romano terá degenerado numa
espécie de receita para um legalismo mesquinho e rudimentar — uma troca por
troca.
James Tissot, “O Sermão da
Montanha”, Ilustração para “A Vida de Cristo”, c. 1886-96, Brooklyn Museum of
Art, Nova Iorque
«Não penseis que Eu vim abolir a Lei e os Profetas.
Não vim
abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento.»
(Sermão da Montanha – Mateus 5:17).
No Sermão da Montanha, Jesus fez questão de
realçar o tema, quando repudiou a frase “olho por olho, dente, por dente”, em
concreto: «Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho, dente por dente!” Eu,
porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se
alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda!» (Mateus
5:38-39). Este texto, para ser entendido, não pode ser extirpado do
contexto maior. Ou seja, o propósito de Jesus no Sermão da Montanha não era o
de abolir a Lei de Deus, revelada por meio de Moisés, mas antes de a confirmar,
refutando as distorções que lhe eram feitas.
John
Hamilton Mortimer, Shylock, 1776, Metropolitan
Museum of Art, Nova Iorque
Para a posteridade, “olho por olho, dente por dente”, também
chamada “Lei de Talião”, viria a representar para a Cristandade o que de pior
havia no Judaísmo, uma religião de lei, em vez de uma religião de amor; o
Judaísmo oferece uma vingança rancorosa, enquanto o Cristianismo oferece uma
generosidade sublime – uma equação que foi, e ainda continua a ser,
profundamente influente na cultura ocidental.
Na peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, a
insistência de Shylock, o usurário judeu, em tirar uma libra de carne do corpo
de António, o mercador cristão, conforme o espírito da lei, é uma metáfora eloquente
desta ideia. A disputa entre Shylock e António levanta a questão sobre o
direito do credor à sua propriedade, e o direito à vida. Objectivamente, o mote
central da peça é sobre a Lei e a Justiça, onde subjaz o conflito entre a Cristianismo,
representado por António, e o Judaísmo, representado por Shylock.
O PROBLEMA
Interpretar o
conceito bíblico “olho por olho, dente por dente” como uma forma de
reciprocidade rigorosa entre o crime e a pena, é consensual, como sabemos. Mas
se lermos atentamente o texto da Torah, percebemos que o seu objectivo não é a
vingança, mas sim fazer justiça: “Olho por olho, dente por dente, (…). E quando
ferir um homem o olho de seu escravo ou o olho de sua escrava, e o danificar, o
deixará em liberdade por causa de seu olho.” (Êx. 21: 24-26).
O texto bíblico é claro quando faz a
correspondência entre o mal causado a alguém e o castigo imposto
a quem o causou. Neste caso, o agressor perde o direito à sua propriedade,
enquanto a vítima ganha a liberdade. Nenhum momento do texto aponta para
vingança. Pelo contrário: a vítima, apesar da sua condição de escravo, tem o
direito inalienável a não ser lesada na sua integridade física. Porque o foi, é
indemnizada com o direito à liberdade. Isto não é vingança, é justiça!
Desta forma, “olho por olho, dente por
dente”, não tem o sentido que lhe é atribuído; na verdade é uma lei que impõe
critérios de justiça e equidade, na qual aquele que transgride é obrigado a
compensar a parte lesada.
Partindo da lei bíblica, os rabis produziram uma série de textos legais,
constantes nos tratados Ketuvot 32b e Bava Kama 83b, que integram o Talmude. Embora não se saiba
exactamente quando foi instituída a prática do pagamento de multas para
ressarcir danos físicos causados a outrem, sabe-se que quando a Mishnah foi compilada, no século I da
EC, já era uma prática consagrada.
LER, COMPARAR E CONTEXTUALIZAR
Haggadah
Ashkenazi, Cinco Rabis em Bnei Brak,
c. 1560-1575.
British Library, Londres
“AYIN TACHAT AYIN, SHEIN
TACHAT SHEIN”
“OLHO
POR OLHO, DENTE POR DENTE”
No texto bíblico,
“Olho por olho, dente por dente” apresenta-se em hebraico na forma “Ayin tachat
ayin, shein tachat shein”. Alguns especialistas defendem que a palavra “tachat”,
que é traduzida “por” não tem este significado, significando antes “no lugar
de”. Para o efeito dão alguns exemplos: no episódio do sacrifício de Isaac,
Abraão sacrifica um carneiro tachat o
seu filho Isaac (Génesis 22:13); na história de José na corte do Faraó, Judah
diz a José: «deixa-me ser teu servo tachat
Benjamim» (Génesis 44:33). Ou o episódio da prostituta Rahav em Jericó, quando
os espiões israelitas dizem a Rahav que se esta não os denunciar, a troco da
sua discrição eles empenham as suas vidas tachat
dela (“A nossa vida responderá pela
vossa, se não denunciardes esta nossa conversa.” (Josué – 2:14).
Daqui podemos concluir que alguém que cega
outra pessoa, tem de dar a essa pessoa algo tachat
o olho perdido, alguma coisa no lugar do olho perdido. Essa alguma coisa,
diz-nos a tradição, será uma compensação monetária.
Há um Deus, mas há muitas
fés.
Isto diz-nos que Deus é maior
que a religião.
Um dos momentos
mais trágicos da civilização ocidental, foi quando os cristãos começaram a
distinguir entre aquilo a que chamaram o “Deus de vingança do Velho
Testamento”, por oposição ao “Deus de amor do Novo Testamento”. É uma daquelas
assunções que está de tal forma enraizada na cultura, que nem é posta em causa.
Causa arrepios, só de pensar quantos judeus perderam a vida à luz deste
preconceito.
“Olho por olho, dente por dente, mão por
mão, pé por pé” é apenas um versículo dos 118 que compõem o Código Legislativo,
compreendido entre os capítulos 21 e 24 (Parashat
Mishpatim), do Livro do Êxodo. Interpretar a frase “olho, por olho, dente
por dente” na perspectiva da vingança, não é um erro menor. Afinal, ler um
verso, tirá-lo do contexto, e formular conclusões a partir daí, pode ter
consequências devastadoras. E tem prejudicado gravemente a reputação do
Judaísmo.
Este artigo foi uma oferta da,
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada J
Fontes:
Torá, a Lei de Moisés, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2001, São Paulo, Brasil;
Bíblia Sagrada, Evangelho segundo Mateus, Paulus Editora, 2012, Lisboa;