Parte I
Fotografia de Frederic Brenner | Os Últimos Marranos
O interesse pelo marranismo nasceu em Belmonte, onde
sobreviveu uma comunidade cujos membros eram/são identificados como judeus.
Em 1972, fui encarregada pelo Ministério da Educação para
proceder à abertura de uma escola oficial do Ciclo Preparatório nesta vila da
Beira Baixa. Foi uma surpresa a linguagem que então ouvimos, porque a
julgávamos desaparecida.
“Há muitos judeus
matriculados? Alugou uma casa a um judeu?”, eram frases cuja mensagem
ultrapassava a mera interrogação. Não descodificávamos os matizes das
significações, mas apercebíamo-nos do aviso/censura que as envolvia, quando
mais tarde, não judeus afirmavam explicitamente: “Cuidado! Quando os conhecer,
verá que não prestam para nada!”. Estranhámos ainda mais ao ouvir comentar a
qualificados democratas da vila: “Não tenho nada contra eles, mas não gosto
deles!”. Era uma opinião alargada, partilhada por elementos exteriores à
comunidade, que aos judeus belmontenses aconselhavam, de acordo com o contexto,
ora a assunção da diferença, ora a assimilação. Ouvíamos: Sejam
judeus verdadeiros! Deixem de ser judeus!
Quem
eram estes judeus?
Fotografia de Frederic Brenner
Na Escola, não notávamos quaisquer atitudes que os
diferenciassem da maioria dos alunos. Reconhecíamo-los pelos sobrenomes que nos
haviam indicado: Nunes, Morão, Caetano, Henriques, Rodrigues, Vaz, Diogo...
cruzavam-se em combinações múltiplas, confirmando uma opção duradoura pela
endogamia. Mas eram sempre elementos da sociedade envolvente que se
pronunciavam. As pessoas a quem identificavam como judias fechavam-se ou,
inteligente e ambiguamente, respondiam: “Somos pessoas como as outras”.
Porém, dia a dia, íamos registando indícios reveladores da
diferença. Por exemplo: decidimos pagar o aluguer da casa, “Sexta-feira, depois
do pôr-do-sol”. A proprietária, judia, como dissemos, recusou receber o
dinheiro, apesar da insistência. A limpeza meticulosa de Sabat era outro sinal;
depois, aqui e ali, começámos a ouvi-los lamentar-se sobre discriminações de
que eram alvo, a verificá-las(1), mas a ocultação e o secretismo eram a prática
corrente. Casa na Judiaria de Belmonte. Foto: Um Jeito Manso
Só após Abril de 1974, foi possível estabelecer uma relação
mais próxima com elementos da comunidade. O convívio que tínhamos mantido até
então, favorecera a ideia de que havia uma cumplicidade de crenças. Argumentava
o proprietário da casa onde vivíamos: “A Senhora ‘acareou’ o meu filho, quando
íamos para os mercados. Eu sempre disse à minha: a Senhora é das nossas! É da
família!”. Pudemos, então, verificar que, cinco séculos após a criação da
Inquisição, em Belmonte sobreviviam festas, rituais, orações preservadas por
uma comunidade herdeira de uma religião que vingou apesar das perseguições, do
potro, dos tratos de polé, dos autos da fé.
Lemos em “Libération”, (1990): “Mais à Belmonte, peut-on
expliquer pourquoi le marranisme s'est maintenu?”; respondeu Frédéric Brenner,
autor de “Les Marranes”: “Je n'ai pas cessé de me poser la question, ça tient
du miracle”.(2)
E outras razões, por certo.
Fotografia de Frederic Brenner | Os Últimos Marranos
Judeus em Belmonte
Centro de Belmonte
| Centro do Cripto-judaísmo
O documento mais antigo que conhecemos é uma lápide com uma
inscrição(3) em hebraico, datada de 1297 (segundo leitura de Samuel Schwarz), e
que pertencia à Sinagoga.
Portanto, antes da expulsão dos judeus de Espanha, em
1492, vivia em Belmonte uma comunidade organizada. É plausível que o número de
elementos tenha aumentado com a decisão dos Reis Católicos. Em Dezembro de
1496, D. Manuel I publica o Édito de Expulsão dos Judeus; em 1497, o monarca
obriga ao baptismo forçado, à conversão os que permaneceram, voluntária ou
involuntariamente, em Portugal. Serão os cristãos-novos, os marranos.
Belmonte | Fotografia de Frederic Brenner
Para Elias Lipiner, trata-se de uma designação “(...) dada
aos judeus que foram tornados cristãos à força, mas continuavam a seguir
ocultamente os ritos da lei velha”(4). O vocábulo teria raiz hebraica ou
aramaica: mar-anús, ou seja, baptizado à força. Afeiçoado à fonologia das
línguas ibéricas tornar-se-ia marrano. Foi, porém, a conotação pejorativa,
registada por Frei Francisco de Torrejoncillo, que fez escola. Marrano “(...)
que en Hespanhol quer dizer, porcos, e assim por infâmia lhe davam este nome
com grande propriedade: porque entre os marranos, ou marroens, quando grunhia e
se queixa algum deles, todos os mais acodem a seu grunhido, como assim são os
judeus.”(5). Era este o significado que ainda sobrevivia em Belmonte, associado
ao foetur judaicus e a outros estereótipos. Mantinham-se superando, afinal, o
tempo marcado pela Inquisição.
Ser marrano
A instalação do tribunal da Inquisição, em Portugal,
obrigou todos os judeus ao baptismo; também o casamento, os rituais funerários,
os cultos no exterior dos lares seguiam a doutrina católica. A herança cultural
judaica era transmitida oralmente, de geração em geração; mas aprendiam, como
forma de sobrevivência(6), os rudimentos do catolicismo. A“contaminação” de fés
era inevitável e com o decorrer dos tempos, a maioria dos que permaneceram no
país adopta práticas sincréticas. Todavia, os anussim (convertidos à força)
diziam-se e sentiam-se voluntariamente judeus.... e a vontade individual é uma
dimensão que participa na construção da identidade. Não responderam de forma
homogénea ao contexto inquisitorial: a) uns aderiram convictamente à nova fé; b) outros exilaram-se para continuar a praticar a lei de Moisés; c) houve quem
se tornasse céptico, desiludido; d) muitos continuaram a judaizar
clandestinamente, com graus de adesão e de conhecimento diversos, mostrando-se
católicos no exterior.
São os marranos que perpetuaram tradições sagradas, mitos e memórias comuns, produziram e reproduziram laços identitários.
No que respeita a Belmonte, tem-se repetido que os judeus
que residem na vila ali se fixaram, vindos de Marrocos, após a decisão
pombalina. A afirmação mais recente que envolve este domínio, encontrámo-la no
livro “Beira Baixa”: “Nos finais do século XVIII estabeleceu-se em Belmonte uma
grande colónia de judeus. Ocuparam um bairro designado por Marrocos que se
transformou em judiaria fechada”(9). Trata-se duma legenda obviamente sucinta que
sugere mais do que garante. Mas será possível falar duma “judiaria fechada” no
século XVIII? A “grande colónia de judeus” estabeleceu-se em Belmonte porquê?
Vinda de onde? Se eram judeus exilados que regressavam, quando e por que
perderam sobrenomes hebraicos?
Museu Judaico de Belmonte
Na verdade, sabemos que encontrámos dezenas de processos no
A.N.T.T. (Arquivo Nacional da Torre de
Tombo) e que nos séculos XVI, XVII e XVIII, naturais e residentes do concelho
de Belmonte conheceram os cárceres da Inquisição. O último processo que
recolhemos é de “Gracia Nunes, Gracia de Matos, cristã-nova, casada com Diogo
Mendes Loução, lavrador, natural de Maçal do Chão, termo da vila de Celorico, e
moradora na de Belmonte, Bispado da Guarda; é condenada a “cárcere e hábito a
arbítrio”(10). O processo tem a data de 1750.
Museu Judaico de Belmonte
Verificamos também que a designação do Bairro, Marrocos(11),
(cuja toponímia teria origem na ocupação de judeus regressados do país com o
mesmo nome) é anterior às leis pombalinas.
Nos Livros de Décima, Contribuição Predial Rústica,
Contribuição Predial Urbana, de Agências, nos registos de nascimentos,
casamentos e óbitos, bem como nos Livros de Actas da Câmara Municipal, figuram
nomes de ascendentes de membros que integram a comunidade actual.
Eram judeus secretos, transmitiram uma tradição que se habituaram a
ocultar, alternando períodos de maior clandestinidade, com outros de maior
abertura.
Museu Judaico de Belmonte
É Samuel Schwarz que, em 1925, com a publicação do livro
“Os cristãos novos em Portugal no séc. XX”, inicia a desocultação da existência
dos judeus belmontenses, para o mundo. Vindo para o concelho, em 1917, para
dirigir a exploração do couto mineiro da Gaia, um dos mais ricos jazigos de
cassiterite da Europa, ouve qualificar Belmonte como “terra de judeus”. Afirma
que “Só depois de muitos meses de continuados esforços e ainda graças a um
concurso de curiosíssimas circunstâncias, conseguimos ser admitidos no seu
grémio e assistir e tomar parte nas suas orações e cerimónias judaicas”(12).
O
encontro ocasional, em Lisboa, com o belmontense Baltazar Pereira de Sousa,
homem de negócios, que ouvira apelidar de judeu e que levou à Sinagoga de
Lisboa, foi a chave que abriu todas as portas. Regressado à vila, submete-se
ainda a um teste: pedem-lhe que reze uma oração. Fê-lo em hebraico, mas entre
os vocábulos que pronuncia, identificam Adonai. Estava aceite: “E um dos
nossos”.
O tempo era favorável. A implantação da I República
permitia confiança. Nos Livros de Actas da Câmara Municipal é notória a
influência de membros da comunidade durante este período. José Henriques
Pereira de Sousa e José Caetano Vaz, por alvará do Governador Civil de Castelo
Branco de 13 de Outubro de 1910(13), integram a Comissão Municipal Electiva, o
primeiro como Presidente e o último como vereador do pelouro de Caria, a
segunda povoação mais populosa do concelho. O trabalho que desenvolvem,
surpreende se o confrontarmos com o de Executivos camarários anteriores e
posteriores. A criação de escolas, as medidas sanitárias, as obras de
remodelação e restauro de imóveis, a elaboração de planos para a construção de
estradas... contrastam com a habitual gestão rotineira que Actas das sessões
camarárias doutros períodos registam.
O anticlericalismo, um dos traços da época, beneficiaria um
grupo de pessoas que mantinha com a Igreja Católica uma relação de
distanciamento. É neste clima que Samuel Schwarz trava conhecimento com a
comunidade.
Foto tirada por Samuel Schwarz
Museu Judaico de Belmonte | Fotografia de Frederic Brenner
Notas de rodapé:
...a-las(1) Um dia, no café,
ouvimos um não judeu dizer a uma criança que entrara: “O teu pai tem uma cauda
assim!”. E no braço indicava o que decidira ser o seu comprimento; ... miracle(2)
Sophie Darmaillacq, “Sur la piste des dernirers marranes”, Libération, Samedi
17, Dimanche 18, Novembre, 1990, p. 43; ...ao(3) Cf. Samuel Schwarz, Os
cristãos novos em Portugal no século XX, Lisboa, Empresa Portuguesa de livros
Lda, 1925, p. 9; ... velha(4) Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e
linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977, pp. 99 e 100; ... judeus.(5) Padre
Frei Francisco de Torrejoncillo, Centinella contra os judeos, Editora Coimbra,
1730, p. 116, 117; ...encia(6) Durante as sessões inquisitoriais era avaliado o
conhecimento que o cristão-novo possuía relativamente aos textos da “Avé
Maria”, “Padre Nosso”, “Salvé Rainha”, “Credo”, “Mandamentos da Lei de Deus”,
“Sacramentos”;
(…)
... fechada(9) José Mattoso, Suzanne Daveau,
D. Belo, Portugal - o sabor da Terra, Beira Baixa, Lisboa, Círculo de Leitores,
Pavilhão de Portugal/Expo 98, 1997, p. 371; ... arbítrio(10) António Joaquim
Moreira, Colecção de listas impressas e manuscriptas dos autos da Fé públicos e
particulares da Inquisição de Lisboa, B.N.L., Res. 863/66; ... Marrocos(11) Cf.
Tombo novo da Comenda de Santa Maria de Belmonte, feito no anno de 1745 de que
foi escrivão João Freire Corte Real da villa da Covilhã - Arquivo Municipal de
Belmonte; ... judaicas(12) Samuel
Schwarz, op. cit., p. XVII; ... 1910 (13)
Cf. Livro de Actas da Câmara Municipal de Belmonte, 1908-1914, sessão de 15 de
Outubro de 1910.
Trabalho de Maria Antonieta Garcia
Fontes das Fotografias/Imagens:
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