terça-feira, 7 de março de 2023

Gregos e Judeus - ParteIV

 



Gregos e Judeus

 

Parte IV

 

A Europa e a Civilização Ocidental



Peter Paul Rubens, retrato do médico português Ludovicus Nonnius, 1627, National Gallery, Londres

 

(Luís Nunes, médico português cristão-novo de Antuérpia (1553-1645). Autor de vários livros, dos quais se destaca “Diaeteticon” (que provavelmente está a segurar); um estudo sobre a importância da dieta como factor de boa saúde, baseado nos hábitos alimentares dos antigos Gregos e Romanos. De realçar a presença do busto de Hipócrates, o médico grego considerado o fundador da medicina)


     Quando pensamos Europa, pensamos civilização ocidental. A Europa, uma península da Euro-Ásia, emergiu como entidade autónoma da Ásia. A ideia de Europa emergiu de uma conversação entre várias vozes de diferentes tradições (por vezes com muita gritaria) que, mercê de uma lenta evolução que se perde no tempo, resultou na partilha de um conjunto de valores. Desses valores, intelectuais, espirituais e culturais e da maneira como os guardámos e combinámos, resultou a identidade europeia. Uma identidade definida, essencialmente, pelas tradições greco-romana e judaico-cristã.

 

     Tanto na cultura judaica, quanto na grega, pulsavam valores e ideais ligados à liberdade individual, todavia indissociáveis do respeito pela comunidade e pela família. É no encontro destes dois mundos — o Hebraico e o Helenístico — que se situam as fundações da civilização ocidental. E foi precisamente isto que a Cristandade fez, a começar por Paulo. Mediando entre a Grécia e Israel, a Cristandade deu-nos a Cultura Ocidental.


Al-Andaluz e a sabedoria dos clássicos



Contos de Bayad e Riyad (Bayad toca alaúde para uma senhora), século XII, manuscrito árabe, Biblioteca Apostolica Vaticana, Roma



     Com a queda do Império Romano, a sabedoria dos clássicos gregos e latinos foi abandonada. Seria recuperada para a sociedade europeia pelos eruditos muçulmanos da Península Ibérica. Após as suas incursões em França terem sido frustradas por Charles Martel, os muçulmanos de Espanha decidiram focar a sua atenção no território conquistado a sul da Península — al-Andaluz, que viria a atingir um elevado grau cultural e tecnológico. Depois da Reconquista cristã, muito do conhecimento científico desenvolvido pelos muçulmanos passou para a Europa ocidental através de Espanha, como testemunha a Escola de Tradutores de Toledo.


Córdova, a cidade mais civilizada da Europa

 

     Em 929 o emir Abd-al-Rahman III (890-961), da dinastia omíada, assumiu o título de califa de Córdova, tornando-se independente do califado de Bagdade. Naquela época, enquanto a população de Paris rondava as 38 000 almas, a de Córdova atingia as 500 000. De acordo com crónicas coevas, havia 700 mesquitas na cidade, uns 60 000 palácios, 70 bibliotecas, uma delas chegando a albergar 500 000 manuscritos, uma Escola de Medicina, uma Escola de Tradutores e 900 banhos públicos. Córdova dispunha de ruas pavimentadas e iluminação pública, convertendo-se na cidade mais civilizada da Europa. Num clima que favorecia a convivência abraâmica, a comunidade judia prosperou e teve um verdadeiro renascimento a nível das ciências e das humanidades. A partir do século XI, Córdova desempenhou um papel fulcral na história do Judaísmo, eclipsando gradualmente as academias da Babilónia.



Maimónides [Moshe ben Maimon] (Córdova, 1135-Cairo (Fustat), 1204)

 

Maimónides representa a maior figura intelectual do judaísmo medieval. O seu pensamento assenta na afirmação da concordância entre fé e razão.



https://www.youtube.com/watch?v=r_Aj9vvvOSo

“Yigdal” (Credo de Maimónides) · Eduardo Paniagua · Jorge Rozemblum 

Canto, shofar, quanum, viola, alaúde, darbuka e tar 

(“Yigdal” – “Deus é Grande”. Hino religioso que partilha com “Adon Olam”, de Shelomo ibn Gabirol (Málaga, 1020-1059), um lugar de honra no início do ofício da manhã e no final do ofício da tarde. Baseia-se nos treze artigos de fé (13 Credos) formulados por Maimónides. Nesta interpretação, os primeiros três credos são cantados seguindo uma melodia tradicional dos judeus de Tânger (norte de Marrocos); os restantes credos seguem a melodia tradicional dos judeus marroquinos.)


  Grande admirador de Aristóteles, Maimónides dominava disciplinas tão diversas como a filosofia e as ciências, em particular as matemáticas, a astronomia e a medicina. Autor prolífico, escreveu em árabe. As suas obras foram posteriormente traduzidas para o hebraico e o latim.

 

     Quando em 1148 o Sul de Espanha foi conquistado pelos Almóadas, o ambiente de tolerância da sua cidade chegaria ao fim, obrigando judeus e cristãos a emigrar, sob pena de serem forçados a converter-se ao Islão, ou a morrerem pela sua fé. Já adulto, no exílio, Maimónides estabeleceu-se no Cairo em 1166, onde viveu até ao fim da sua vida. Lá foi rabino-mor da comunidade judaica e médico respeitado. Na sua qualidade de médico, assistiu pessoalmente a al-Fadil, grão-vizir de Salahudin [Saladino] e respectiva corte. Interessando-se pelos mistérios do corpo humano e da medicina, investigou a relação da alma com o mal-estar físico.



Mishneh Torah, Introdução, fol. 11v-12, Escola de Iluminuras de Lisboa, 1472,

 British Library, Londres



     A obra magna de Maimónides — “Mishneh Torah” (um código da Lei Judaica e a única que escreveu em hebraico) — é uma síntese magistral dos dois Talmudes. Introduzindo ordem nas compilações talmúdicas, protestando contra a interpretação literal da Lei e conciliando a religião judaica com a filosofia, Maimónides operou uma profunda revolução intelectual no seio da sociedade judaica. Estudioso da obra de eruditos muçulmanos, como al-Farabi, Ibn Sina [Avicena] ou Ibn Rushd [Averróis], o seu pensamento abriu caminho para grandes filósofos da Cristandade medieval, como Alberto Magno ou Tomás de Aquino.

 

****

 

Alguns apontamentos sobre cultura europeia



Retrato de Camões executado em vida do poeta. Cópia de um original desenhado por Fernão Gomes (1548-1612). Arquivo Nacional da Torre do Tombo.


     Camões é, por excelência, um vulto da cultura ocidental. Conhecedor do texto bíblico — lembremos o soneto “Sete anos de pastor Jacob servia” (Génesis 29) ou “Redondilhas de Babel e Sião” (Salmo 137) —, n’Os Lusíadas evidencia uma superlativa erudição clássica. Num ensaio sobre os 450 anos de publicação da obra, Carlos Maria Bobone considera «Os Lusíadas como o poema que mostra o momento em que os mitos antigos deixam de ser necessários, o momento do fim da mitologia. Tudo aquilo que os antigos deuses tinham – os segredos dos ventos, dos mares, da guerra – fica nas mãos dos portugueses, de tal modo que os deuses se extinguem na sua função. (…) o poema pode ser entendido como uma elegia do mitológico, como o seu fim: esta é a derrota dos deuses antigos às mãos da cristandade, por via do conhecimento.»


     No célebre poema “Com que voz chorarei meu triste fado”, Camões usa a palavra “fado” com o seu significado histórico, que é o da sua raiz latina fatum: o destino, a sina. O Fado como representação da Portugalidade, está associado a um quotidiano de lamentações, pautado por trágicas histórias de amor.


Com que voz chorarei meu triste fado,

que em tão dura paixão me sepultou.

Que mor não seja a dor que me deixou

o tempo, de meu bem desenganado


https://www.youtube.com/watch?v=hJRWAR_kNMo 

“Com que voz” por Amália; poema de Camões; música de Alain Oulma



O Mito de Orfeu


Orfeu rodeado de animais (mosaico), Época Romana, Museu Arqueológico Regional de Palermo


     Os gregos da era clássica veneravam Orfeu como o músico mais dotado de todos os tempos. Quando tocava lira, os pássaros interrompiam o seu voo para escutar e os animais selvagens perdiam o medo. As árvores curvavam-se para captar as suas árias arrastadas pelo vento. Orfeu casou com Eurídice, uma jovem tão encantadora que atraiu as atenções de um homem chamado Aristeu. Quando ela repeliu as suas investidas, ele perseguiu-a. Ao fugir dele, Eurídice calcou uma serpente que a mordeu e lhe causou a morte. Orfeu ficou como louco. Pegando na lira, desceu aos Infernos a fim de tentar trazê-la de volta consigo.



Jean-Baptiste Corot, Orfeu levando Eurídice do Inferno (detalhe), 1861, Museum of Fine Arts, Housto



     Baseado no mito grego de Orfeu, “L’Orfeo” de Monteverdi é um drama musical estreado na corte de Mântua, no Carnaval de 1607.

     Na Ária “Vi ricorda ò boschi ombrosi”, que se tornaria muito popular entre os ouvintes de Monteverdi, Orfeu canta como era infeliz antes de casar com Eurídice.



https://www.youtube.com/watch?v=_j11wAOG5zI

 

MONTEVERDI // Ritornello [Gagliarda] & Aria “Vi ricorda ò bosch’ombrosi” by CLEMATIS, Zachary Wilder

 

(No vídeo, seguidamente à ária de Monteverdi, é executada uma peça instrumental de Salomone Rossi, um compositor judeu italiano que trabalhou para a corte de Mântua)


Maria, mãe de Jesus


Mariotto Albertinelli, Visitação, 1503, Galerias Uffizi, Florença



     A Visitação de Albertinelli de 1503, é uma de muitas obras da arte europeia dedicada ao episódio conhecido por Visitação. Refere-se à Visitação de Maria à sua prima Isabel, quando Maria confirmou a sua gravidez a Isabel, a cuja casa numa cidade da Judeia se dirigiu logo após a Anunciação, para a acompanhar no nascimento de João Baptista (Lucas 1:39-50).

 

     Este episódio é celebrado no esplendoroso Magnificat de Bach (com libreto em latim, uma raridade na vasta obra do compositor luterano), estreado em Leipzig no ano de 1723. Desta passagem do Evangelho segundo Lucas, consta o Cântico de Maria (Lucas 1:46-50), um Magnificat pleno de alegria, em que Maria rejubila por estar grávida. Podemos ouvi-lo na lindíssima ária “Et exultavit spiritus meus”


Johann Sebastian Bach, Magnificat in D Major, BWV 243 - Aria: "Et exultavit spiritus meus" Magdalena Kožená with Marek Stryncl and Musica Florea



 https://www.youtube.com/watch?v=1ZVZB_EZlu8



O sacrifício de Isaac/A crucificação de Jesus


     Uma interpretação convencionalmente aceite no Judaísmo sobre o episódio d’O sacrifício de Isaac, é a de que Abraão passa por uma experiência dramática. O sacrifício não realizado é reduzido a uma questão hipotética, para testar o fervor de Abraão, sem implicar Deus no acto ritual. Todavia para os teólogos cristãos o sacrifício não realizado pressagia a Paixão, o sofrimento e a crucificação de Jesus, definindo assim a natureza de Deus. Em suma, o Judaísmo lê a história como um drama de um homem religioso, enquanto o Cristianismo, concordando com esta leitura, vai mais longe, lendo-a como parte de um drama do próprio Deus.


     Maria (sopra la Carpinese), cantada durante a Paixão na ilha da Córsega, em língua corsa (Corsu, uma língua românica que tem fortes similaridades com o italiano), exprime a dor pungente de Maria perante o sofrimento do filho, Jesus.


Maria (sopra la Carpinese)


https://www.youtube.com/watch?v=bpZK_QTOtBk

L'Arpeggiata - Christina Pluhar, Barbara Furtuna (chant corse)



****

Liberdade e Responsabilidade


     Observa o rabi Benjamin Blech que, de uma perspectiva judaica, falar do ideal de liberdade, ignorando a sua necessária parceria com a responsabilidade, é ignorar o seu verdadeiro sentido. Comentando sobre o Pessach, a Festa da Liberdade, Blech acrescenta que na realidade o Pessach é, apenas, meia festa: a partir do momento em que celebramos a libertação da escravidão no Egipto, começamos a contar os dias para a Festa de Shavuot, quando no Monte Sinai o povo de Israel recebeu a Torah. Os dois festivais estão indissociavelmente ligados. O primeiro fala de libertação de; o segundo de liberdade para. Fomos libertos de uma vida de servidão, para nos colocarmos, voluntariamente, à disposição para uma vida vinculada a restrições de rectidão moral.

 

     Como o historiador cristão Paul Jonhson escreveu na sua elucidativa “História dos Judeus”, a versão bíblica de moralidade foi um arranque muito pertinente para noções fundamentais do mundo antigo daquele tempo. Ideias judaicas como “igualdade perante a lei, divina e humana; a inviolabilidade da vida e a dignidade da pessoa humana; a consciência individual e a redenção pessoal; a consciência colectiva e a realidade pessoal, e muitos outros temas… constituem as ferramentas fundamentais da mente humana.”



Democracia/Direitos Humanos


     Na clássica Atenas, o exercício da cidadania compreendia uma certa forma de participação política, um exercício centrado nos deveres dos cidadãos para com a comunidade. Uma prática assente na ideia demos kratos — com uma tradução muito livre para “poder ao povo”. Na realidade, esta ideia de participação cívica só se aplicava a homens gregos livres. Mulheres, escravos e estrangeiros, não tinham parte nesse “poder”. Mas apesar das imperfeições, as classes mais baixas tinham direitos.

 

     Por contraste, em Esparta reinava uma aristocracia militarista que submetia os hilotas, uma população local escravizada, a chacinas periódicas, para lhes lembrar do seu estatuto sub-humano.

 

     Na Europa, a Democracia — Liberdade sob a Lei —, expressa valores universais. Levando milénios a amadurecer, só foi plenamente implementada no século XX. E até muito tarde, quase até à primeira guerra mundial, o sufrágio era censitário e exclusivamente masculino. Estruturada na ética judaico-cristã e na cultura clássica, a ideia de Democracia conduziu a uma cultura distinta do Ocidente: a dignidade da pessoa humana, o conceito de Direitos Humanos.



Este artigo foi elaborado por,

Sónia Craveiro

 

Muito obrigada


 

Fontes:

Luis Nunes de Antuérpia (1553 - 1645) ou Ludovicus Nonnius https://arlindo-correia.com/201210.html

“Há 450 anos Luís de Camões deu Os Lusíadas à Língua Portuguesa e transformou-a” por Carlos Maria Bobone https://observador.pt/especiais/ha-450-anos-luis-de-camoes-deu-os-lusiadas-a-lingua-portuguesa-e-transformou-a/

Seyyed Hossein Nasr. Science and Civilization in Islam.

New American Library. NY 1968. Introduction. In the Name of God Most Merciful and Compassionate http://www.fordham.edu/halsall/med/nasr.html

 

Rabbi Moshé ben Maimon, Rambam dit MAÏMONIDE https://www.medarus.org/Medecins/MedecinsTextes/maimonide.html

The Work of Maimonides: Passion & Compassion http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/loc/Passion.html

PHILIP, Neil, Livro Ilustrado de Mitos e Lendas, editora Civilização, 1996

Paul Johnson On The Jews https://www.simpletoremember.com/jewish/blog/paul-johnson-on-the-jews/

Sem comentários:

Enviar um comentário