domingo, 31 de janeiro de 2021

O Pecado de Adão e Eva – Vergonha e Culpa

 



Uma Perspectiva Judaica



Adão, Eva e a serpente (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c. 1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina


“E o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: «De toda a árvore do jardim podes comer. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, morrerás!» (Génesis 2:16-17)



Mas, afinal, o que foi o primeiro pecado? O que era o bem e o mal da Árvore do Conhecimento? O conhecimento era assim tão mau que tivesse de ser proibido, ou só poderia ser adquirido através do pecado? Não é essencial ao ser humano conhecer a diferença entre o bem e o mal? Não quereria Deus que os humanos fossem cientes de uma das formas mais elevadas de conhecimento? Então porque quereria Ele que o fruto que o produz fosse proibido?

 

Não teriam Adão e Eva conhecimento do bem e do mal antes de terem comido o fruto proibido, justamente, porque foram criados “à imagem e semelhança de Deus”? O Judaísmo defende que sim, pelo menos potencialmente. Então, o que é que mudou depois de terem comido o fruto?

 

Estas são as perguntas colocadas pelo rabino Jonathan Sacks num comentário à parashat Bereshit — “The Art of Listening” —, sobre o episódio do pecado de Adão e Eva. Em artigo anterior abordámos o tema do pecado original, uma doutrina cristã a que este pecado está fortemente associado. Impõe-se, portanto, abordá-lo numa perspectiva judaica. No Judaísmo não há pecado original.




Adão, Eva e a serpente, Miscelânea Hebraica do Norte de França, c. 1280, folio 520v, British Library



A reflexão de Sacks assenta nas conclusões do filósofo medieval Maimónides, que abordou o tema persistentemente no tratado “Guia dos Perplexos” (Livro I, Capítulo II). Maimónides deduziu o seguinte: os primeiros humanos já tinham conhecimento do bem e do mal, antes de terem comido o fruto. O que eles adquiriram ao comer o fruto proibido foi o conhecimento de “coisas geralmente aceites”. Mas o que é que Maimónides quis dizer com “coisas geralmente aceites”? É geralmente aceite que matar é mau e a honestidade é boa.

 

Quereria Maimónides dizer que a moralidade é uma mera convenção? Certamente que não! O que ele quis dizer é que depois de terem comido o fruto, o homem e a mulher sentiram vergonha por estarem nus, e isso é uma mera convenção social, porque nem toda a gente se sente envergonhada com a nudez. Mas como é que equacionamos sentir vergonha por estar nu com “o conhecimento do bem e do mal”? Tem tudo a ver com aparências.




Adão, Eva e a serpente (detalhe). Pentateuco com comentários de Rashi, painel Bereshit, folio 1, séc. XV, Itália (Ferrara?), Colecção Harley, British Library



Viver em função das aparências, sujeita-nos a viver segundo as expectativas que os outros têm de nós, como parecemos (ou imaginamos parecer) aos olhos dos outros. E se parecemos mal, sentimos vergonha. A primeira reacção instintiva quando sentimos vergonha, é o desejo de nos tornarmos invisíveis. Por contraste, o sentimento de culpa não tem nada a ver com a percepção que os outros têm de nós. Não conseguimos escapar tornando-nos invisíveis ou fugindo. Para onde quer que formos a nossa consciência acompanha-nos sempre, independentemente da imagem que os outros têm de nós. Com este contraste em perspectiva, podemos agora compreender a história do primeiro pecado.

 

A serpente disse à mulher: «Deus sabe que no dia em que comerdes dele, vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal.» (Génesis 3:4-5) E o que aconteceu de facto: «E os olhos de ambos foram abertos e souberam que estavam nus.»; a Torah enfatiza a aparência da árvore: «A mulher viu que a árvore era boa para comer, desejável para os olhos e cobiçável para entender o bem e o mal». A emoção-chave desta história é a vergonha. Antes de comerem o fruto estavam nus, mas não se envergonhavam. Depois de o comerem sentiram vergonha e procuraram esconder-se. Cada elemento desta história — o fruto, a árvore, a nudez, a vergonha —tem a ver com uma cultura de vergonha centrada nas aparências.




Adão e Eva após a expulsão do Paraíso (detalhe), Haggadah de Sarajevo, Barcelona, c. 1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina



No Judaísmo Deus não é visto, é ouvido. Os primeiros humanos “ouviram a voz de Deus, que se movia no jardim”. Respondendo ao chamamento de Deus, o homem disse: “Ouvi a Tua voz no jardim e tive medo por estar nu, e escondi-me.” Quando Adão e Eva ouviram a voz de Deus no jardim “esconderam-se da presença de Deus entre as árvores do jardim”, uma reacção absolutamente desconcertante. Nós não nos podemos esconder de uma voz. Escondemo-nos, sim, na tentativa de não sermos vistos, uma reacção intuitiva à vergonha. Mas a Torah é o supremo exemplo de uma cultura de culpa, não de vergonha. Não é por nos escondermos que conseguimos escapar a um sentimento de culpa. A culpa não tem nada a ver com aparências, mas tudo com consciência, a voz de Deus no coração humano.


Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos



No conto “O Principezinho”, quando a raposa diz para o principezinho: — "Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.", Antoine de Saint-Exupéry captou admiravelmente a noção de que o essencial, o genuíno, “só se vê bem com o coração”, ao contrário daquilo que os olhos vêem, que pode ser enganador, uma ilusão de aparências.

 

***



Adão e Eva, Golden Haggadah c. 1330, Catalunha (Barcelona?), British Library



O pecado dos primeiros humanos foi o de terem seguido o olhar, em vez do ouvir. As suas acções foram determinadas pelo que viram, a beleza da árvore, e não pelo que ouviram, a palavra de Deus que lhes ordenou que não comessem do seu fruto. Como resultado da sua desobediência, eles adquiriram de facto o conhecimento do bem e do mal, mas do tipo errado. Adão e Eva adquiriram uma ética de vergonha, não de culpa; de aparências, não de consciência. Isto, segundo o rabino Jonathan Sacks, é o que Maimónides tinha em mente com a distinção entre verdadeiro-e-falso e “coisas geralmente aceites”.

 

“Não há sobre a terra alguém tão correcto que só faça o bem e não peque jamais”

 

Eclesiastes [Kohelet] 7:20



Como nos lembra Kohelet, somos todos pecadores. Faz parte da natureza humana. A nossa vida desenrola-se numa constante tensão entre a boa inclinação (yetzer hatov) e a má inclinação (yetzer harah), sendo que Deus nos deu a liberdade de escolher entre o bem e o mal, o livre arbítrio. Se escolhermos bem, estamos no bom caminho. Se escolhermos mal, estamos perdidos no caminho. Mas é sempre possível regressar ao bom caminho, fazer teshuvah. Para tanto, temos de afastar os ruídos indesejáveis que nos perturbam a atenção, criando silêncio na alma, para ouvirmos a voz de Deus.

 

No Yom Kippur, ou «Dia da Expiação», recitamos súplicas e orações para implorar o perdão de Deus. Durante o Viddui toda a congregação confessa uma longa série de pecados, batendo no coração, um gesto simbólico de compromisso num acto de reflexão de consciência. Podemos ter cometido determinado pecado, ou não, mas é suposto juntarmo-nos ao coro de vozes dizendo “Nós cometemos este pecado”. Podemos não ter difamado ninguém, mas fomos capazes de confrontar quem o fez? De uma maneira ou de outra, estamos todos implicados no comportamento dos outros. A nossa responsabilidade é simultaneamente individual e colectiva. Isto reflecte um tema central no Judaísmo: nós somos todos responsáveis uns pelos outros.




O rei assírio Assurbanipal. Detalhe de relevo, Nínive, (actual Iraque), 645-635 AEC



Ainda em Yom Kippur, suavizamos a intensidade do tema da expiação com o tema do perdão. Da selecção da Bíblia Hebraica para a liturgia do serviço da tarde lemos o Livro de Jonas. Neste livro, Deus instrói o profeta Jonas a viajar para Nínive, onde deverá pregar ao povo para abandonar a vida pecaminosa a que estava entregue, ou arriscava o castigo Divino. Jonas, recusa-se a realizar a missão, foge e acaba no ventre

 

de um grande peixe, libertando-se ao fim de três dias. Só depois faz o que Deus lhe tinha pedido. O povo de Nínive arrepende-se e Deus, vendo a sua sinceridade, depressa lhe perdoa. Quando Jonas protesta, clamando que Deus lhe tinha facilitado a vida, Deus deixa claro que ama profundamente o povo de Nínive, que o considera inteiramente merecedor da misericórdia Divina.

 

Nesta história tocante, até porque Nínive era a capital da Assíria, o império que atacou o reino do norte de Israel e foi responsável pelas “tribos perdidas” de israelitas, a mensagem parece ser muito clara: se os teus piores inimigos podem ser perdoados pelos seus pecados, tu também podes.




Albrecht Dürer, Adão e Eva (gravura em cobre), 1504, Pierpont Morgan Library, Nova Iorque



A Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento, as duas árvores especiais que Deus colocou no Jardim do Éden, são elementos-chave no drama de Adão e Eva. Elas representam duas formas diferentes de conhecimento, duas formas distintas de pensamento. No pensamento judaico, este drama não é sobre sexo, pecado original, ou “a Queda”. É sobre outra coisa: o tipo de moralidade que queremos para conduzir as nossas vidas.

 

A primeira e fundamental lição sobre Adão e Eva é a de que cada um de nós é seu descendente directo. Aos olhos de Deus somos todos iguais. Ninguém é superior. Ninguém é inferior.

 

O Talmude contempla uma variedade de interpretações e midrashim sobre o drama de Adão e Eva. Numa leitura mais cuidada do texto, deparamo-nos com mais perguntas do que respostas. Mas, afinal, é isto mesmo o estudo da Bíblia. Não é sobre encontrarmos todas as respostas, é sobre a procura. Não é sobre o destino, é sobre a viagem. É sobre a procura de Deus e do Seu lugar nas nossas vidas.


Post Scriptum:






O rabino Jonathan Sacks faleceu no passado dia 7 de Novembro, deixando um imenso vazio. O seu impacto como educador, filósofo, rabi, professor, foi excepcional. Na forma como tornou acessível a comunicação de conceitos filosóficos de extrema complexidade. No empenho pelo enquadramento do bem comum entre o Judaísmo e as outras religiões. Na coragem em abordar temas controversos. Na defesa incansável dos valores morais do Judaísmo, como inspiração para a Humanidade.

O mundo vai sentir a falta dele. Eu vou sentir a falta dele.

Que a sua memória seja uma bênção.




Rabbi Sacks on The Mutation of Antisemitism 2017

 

Texto adaptado de “The Art of Listening”, do rabino Jonathan Sacks

https://rabbisacks.org/the-art-of-listening-bereishit-5776/



Este artigo foi elaborado por:

Sónia Craveiro

Desde já o meu obrigada

Beijinhos



Outras fontes:

 

Bíblia Hebraica, Editora & Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, Brasil

 

HURWITZ, Sarah, HERE ALL ALONG, Spiegel & Grau, New York

 

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de, “O Principezinho” (Capítulo XXI), Editorial Aster, Lisboa

 https://www.myjewishlearning.com/article/the-jewish-view-of-sin/

https://www.myjewishlearning.com/article/understanding-viddui/?utm_source=mjl_maropost&utm_campaign=MJL&utm_medium=email

 


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