DO
APOGEU À EXPULSÃO
1349,
Queimando judeus, Crónicas Europeias da Peste Negra
As matanças de Navarra de 1320
e 1328, a «peste negra» de 1348 e a guerra civil castelhana de 1366, provocaram
um surto de imigração dos reinos vizinhos para o nosso país, que viria a ter um
forte impacto na população judaico-portuguesa. Iniciados pelo clero de Sevilha,
os massacres atingiriam o seu pico de violência no Verão de 1391, nos reinos de
Castela e Aragão. Na sequência destes acontecimentos, em Portugal, a pedido de
Moisés Navarro II (dito Moisés de Leiria), que à altura desempenhava os cargos
de médico real e rabi-mor, D. João I fez proclamar uma bula do papa Bonifácio
IX que proibia os seus súbditos de maltratar os judeus ou profanar as suas
instituições.
D. João I, Mestre de Avis e
Rei de Portugal, séc. XV, Anónimo, MNAA
Com esta medida, D. João I, o
de Boa Memória, dissuadiu o clero e o
povo de seguirem o exemplo espanhol. Entretanto, o rabi-mor prestava auxílio
aos refugiados judaico-espanhóis, havendo muitos a renunciar ao baptismo a que
tinham sido forçados.
Em 1412 Castela promulga legislação
antijudaica, de tal forma severa e opressiva, que provoca uma nova vaga de
refugiados. Como consequência desta forte imigração, o número de comunidades
judaicas em Portugal quase quintuplicou no século XV.
Judiaria
de Castelo de Vide
Medidas impostas pelo Concílio
de Latrão relativamente aos judeus, como a separação dos bairros e o porte de
insígnia, foram frequentemente ignoradas em Portugal. As Cortes do reino,
reunidas em Elvas em 1361, obrigam D. Pedro I a dar força de lei à decisão da
Igreja; no reinado seguinte (D. Fernando I), pouca atenção lhe é dada; porém,
no tempo de D. João I, por um édito emitido em Braga a 3 de Setembro de 1400, a
lei da segregação é tornada obrigatória em todo o reino.
A separação residencial, no entanto, não
era necessariamente sentida como uma marginalização. Para já, porque havia
liberdade económica e os bairros habitados por judeus, na maior parte das
cidades portuguesas, estavam normalmente situados na proximidade das portas e
das vias de comunicação. Por exemplo, a Judiaria Grande de Lisboa estava a
alguns passos do Terreiro do Paço. Por outro lado, os muros dificultavam o
acesso a um espaço que se queria protegido, onde se desenvolvia uma vida
comunitária autónoma.
Figuras do Teatro Vicentino
– Dama e Fidalgo
A segregação da população
minoritária estava essencialmente relacionada com a preocupação, que era recíproca,
de evitar a convivência entre judeus e cristãos. Os estados portugueses de 1481
apresentavam o judeu como um sedutor, dizendo: «Vemos os judeus em cavalos e
muares ricamente ajaezados (…); trazem espadas douradas, toucas em rebuço, (…)
de modo que é impossível serem conhecidos. Entram assim nas igrejas e
escarnecem do Santo Sacramento e misturam-se com as cristãs em grave pecado
contra a santa fé católica.»
Abraão Saba, pregador refugiado
de Zamora, intimava os seus fiéis a recear as jovens cristãs que, passeando às
portas da judiaria, «se põem de emboscada na mira de almas
inocentes».
Mas era impossível impedir o convívio
entre as duas comunidades. As relações podiam ser de simples boa vizinhança, de
amizade, ou de amor. No Auto da Lusitânia
de Gil Vicente, ouvimos um cortesão apaixonado por uma judia:
“Cortesão:
Ó doce frol antre espinhas,/crede o amor sem mudança/que vos tenho e que vos
digo.”
A
jovem finge que não entende:
“Lediça:
Assi has primas minhas/e toda essa vizinhança/todos tem amor comigo: Dom Isagaha
Barabanel e Rabi Abram Zacuto/e Donegal Coronel, e Dona Luna de Cosiel,/e todos
me querem muito. (…)”
Detalhe de página da 14ª
edição de “Guia dos Perplexos”, Maimónides
A esmagadora maioria da
população judaica portuguesa dedicava-se ao artesanato, sendo mais frequentes
as profissões de alfaiate, sapateiro, ferreiro e ourives. Havia ainda tecelões,
tosadores, carpinteiros, esmaltadores e todo o tipo de ofícios. Mas o saber
judaico no campo da medicina tinha nome além-fronteiras e era respeitado, tanto
por judeus, como por cristãos; os físicos e cirurgiões guiavam-se pela oração de
Maimónides, o célebre médico de Córdova: “D’us, enche a minha alma de
amor pela arte e por todas as criaturas. Afasta de mim a tentação de que a sede
do lucro e a procura da glória me influenciem no exercício da minha profissão.
Apoia a força do meu coração, para que ele esteja sempre pronto a servir o
pobre, o rico, o amigo e o inimigo, o justo e o injusto. (…)
Dá-me a força, a vontade e a oportunidade de aumentar cada vez mais os meus
conhecimentos, de modo a que deles beneficiem os que sofrem. Ámen.”
Livros de Jonas e Amos,
Bíblia de Lisboa
Eram os copistas e iluministas
que, com minúcia e arte, desenhavam as letras e iluminuras para os textos
sagrados. António Ribeiro dos Santos, um erudito contemporâneo do Marquês de
Pombal, regista na sua obra Memórias da
Literatura Sagrada dos Judeos Portuguezes, desde os primeiros tempos da
Monarchia até aos fins do século XV, um Código em pergaminho da Bíblia
escrito na Guarda em 1346, entretanto desaparecido; temos a Bíblia de Lisboa,
completada em 1482, que é o códice mais completo da Escola Medieval Portuguesa
de Iluminuras Hebraicas.
Facsimile do Pentateuco hebraico da oficina de Samuel
Gacon
O primeiro livro impresso em
Portugal é o Pentateuco – os cinco
livros de Moisés que compõem a Torá -, numa edição em hebraico da oficina
tipográfica de Samuel Gacon, em Faro, no ano de 1487. No mesmo ano é impresso o
primeiro livro em Lisboa: o Comentário ao
Pentateuco, do rabino medieval espanhol Nachmánides, também editado em
hebraico na oficina de Eliezer Toledano.
Almanach
Perpetuum, Abraão Zacuto
Da oficina de Samuel d’Ortas,
em Leiria, sai em 1496 a obra Almanach
Perpetuum (calendário astronómico perpétuo), traduzida do hebraico para
espanhol e latim por Mestre Vizinho, de um original anteriormente publicado em
Espanha que, juntamente com um astrolábio aperfeiçoado, ambos da autoria de
Abraão Zacuto, foram utilizados por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral nas
suas viagens.
Lisboa Renascentista,
Ribeira das Naus, António d’Holanda
Outros judeus dedicavam-se ao comércio, dos quais a maior parte eram mercadores
ambulantes que vendiam nas feiras, ou garantiam as trocas de produtos entre a
cidade e o campo. Em Lisboa e Évora, nos finais do século XV, havia grandes
importadores-exportadores, que para além de dominarem uma vasta rede comercial
com os seus correligionários do Magrebe e do Oriente e com algumas praças
comerciais europeias, formavam sociedades poderosas com mercadores italianos e
flamengos. Com a expansão marítima, desenvolveram ramos de comércio altamente
lucrativos, tais como a exportação do açúcar da Madeira, o comércio de ouro e
de escravos da Guiné.
O
Judeu, oficina de Vasco Fernandes, primeira
metade do séc. XVI, MNAA
Aos olhos do preconceito e da
intolerância o judeu é um ser infame, “assassino de Cristo”, devendo por isso
expiar a sua culpa. Uma das imposições a que estava sujeito eram os tributos, muito
superiores aos exigidos à restante população:
Judenga –
tributo de 30 dinheiros, por cabeça, por terem vendido Jesus por este preço;
Sisa
Judenga – tributo aos judeus;
Genesim –
imposto pago à Coroa pelas aulas de religião do rabi.
A educação religiosa das crianças
(geradora de um elevado grau de alfabetização) era uma responsabilidade
partilhada pelos pais e pela comunidade, e alvo de um imposto extraordinário.
Apesar da pesada carga fiscal, a gente de nação cuidava dos seus. A
caridade, como a assistência aos pobres ou o resgate de cativos, era realizada
a partir de donativos, cujo capital era aplicado em bens imobiliários.
D. Afonso V no assalto a
Arzila em 1471, Tapeçarias de Pastrana
Foi neste espírito que a confraria judaica de Lisboa não hesitou em
vender os seus bens fundiários, de modo a resgatar os 250 judeus que faziam
parte dos cativos de Arzila a serem vendidos como escravos nos mercados
portugueses, após a conquista daquela cidade africana, por D. Afonso V, em
1471.
D.
Afonso V, cópia de uma iluminura de Dário de Jörg von Bringen, MNAA
Foi também no reinado de D.
Afonso V que se deu o assalto à Judiaria Grande de Lisboa, em Dezembro de 1449.
O povo invadiu a judiaria, saqueou casas e matou vários judeus, num acto de
vingança por a justiça ter condenado alguns jovens a penas corporais, por estes
terem agredido judeus no mercado de peixe. A resposta do poder real foi dura:
os instigadores do motim foram publicamente açoitados, exilados ou executados.
O
reinado deste monarca foi o último período em que os judeus na Península
Ibérica gozaram de liberdade e prosperidade; estavam dispensados de usar o
sinal distintivo, eram livres de residir fora das judiarias e podiam mesmo
exercer cargos públicos. Quando D. Afonso V precisou de contrair um empréstimo para
suportar as despesas da guerra com Castela (1475-1479), recorreu às fortunas
dos judeus, conforme se lê na carta do recebedor-mor da verba, Pedro Estaço “nos
emprestimos ha a notar terem sido quasi todos realizados com judeos, sendo os
principaes os Palaçanos e os Abravaneis.”.
«Quando
morreu D. Afonso», escreve *Isaac Abravanel, «todo o
Israel ficou cheio de dor e de luto; jejuavam e choravam».
D. João II, Fundação da
Casa Ducal de Medinaceli
Após a expulsão de Espanha de
1492, uma grande parte dos desterrados cruzou a fronteira com Portugal;
estima-se que tenham entrado entre 30 mil a 50 mil pessoas, com os necessários
problemas humanitários de que daí advieram.
Coube a Dom Isaac Aboab, último Grande
Rabino de Castela, negociar com D. João II a entrada da gente hebraica em
Portugal. Às famílias mais ricas, que podiam pagar taxas elevadas, e aos
artífices, considerados úteis para as expedições marítimas, foi-lhes autorizado
fixar residência; aos demais apenas lhes foi permitida a entrada no país
mediante um imposto de oito cruzados por cabeça, e na condição de não
permanecerem mais de oito meses. Dentro desse prazo o rei comprometia-se a
fornecer-lhes navios para os transportar a outros destinos. Mas as condições
acordadas não foram cumpridas e os que se aventuraram a embarcar foram tratados
com grande crueldade; largados em qualquer porto ou praia deserta no Norte de África,
muitos conheceram o cativeiro.
Sobre este acontecimento disse Garcia de
Resende:
“Vimos a destruição/Dos judeus tristes,
errados,/Que de Castella lançados/
Fora, com grande maldição/Ao
reino de Fez passados./De mouros foram roubados,/
Deshonrados, abiltados;/Que
filhos, filhas, e mães lhes incestavam aquelles cães./Moças, e moços forçados.”
Quanto aos que ficaram, esgotado o prazo
estipulado, foram reduzidos à escravatura e por preço algum se lhes aceitava
resgate. Por ordem real, os pais perderam o direito aos filhos menores de oito
anos, que lhes foram arrancados, baptizados e, posteriormente, oferecidos por D.
João II a Álvaro de Caminha, senhor da ilha de São Tomé, com o fim de povoarem
aquela colónia africana. A maioria destas desafortunadas crianças perdeu a
vida: umas no decurso da viagem, outras devido ao clima daquela ilha tropical.
D. Manuel I (1469-1521)
D. Manuel I sobe ao trono em
1495 e consente em devolver a liberdade aos cativos, mediante o pagamento de 16
mil cruzados. A situação dos judeus acalma. Porém, a tranquilidade pouco dura.
O monarca deseja contrair matrimónio com D. Isabel, filha dos Reis Católicos,
mas a infanta não aceita vir para um país onde houvesse “hereges”. D. Manuel
responde com o Édito de Expulsão para judeus e muçulmanos, promulgado a 5 de
Dezembro de 1496.
Consciente dos prejuízos desta medida, que
privaria Portugal do espírito empreendedor dos judeus, do seu saber científico
e artesanal, indispensáveis à expansão marítima, o rei multiplica obstáculos à sua
partida.
Édito
da Conversão de 1497
Surge assim a ideia de uma conversão forçada, só para os judeus (os
mouros foram poupados a esta barbárie, já que havia muitos cristãos cativos no
Norte de África);
este projecto provoca uma viva oposição do Conselho de Estado, nomeadamente do
seu presidente, o bispo do Algarve, D. Fernando Coutinho.
Certos cronistas judeus atribuem a ideia da
conversão forçada a Levi ben Shemtov, um pregador de Saragoça, recentemente
baptizado em Portugal, que se aliou a D. Manuel, e que lhe terá proposto um
processo em três fases: privar os judeus dos seus imóveis e objectos de culto;
tirar-lhes os filhos e eliminar a sua elite religiosa.
Subitamente tudo se desmorona: as orações
públicas são proibidas, as preciosas bibliotecas comuns ou privadas, as
sinagogas, bem como as casas de estudo, com todos os seus pertences, são
confiscadas. Os cemitérios são transformados em pastos e as suas lajes serão
usadas na construção; as de Lisboa vão para o Hospital de Todos-os-Santos.
No dia 19 de Março de 1497, em Pessach, as crianças com menos de 14 anos
foram arrancadas à chicotada dos braços de seus pais, num clima de demência colectiva
em que a multidão as arrastava para a igreja mais próxima, a fim de serem
baptizadas e entregues a famílias cristãs. Foi tal o horror, que houve cristãos
a esconderem crianças judias para as poupar àquele sofrimento.
A
– Estaus; B – Igreja de São Domingos; C – Hospital de Todos-os-Santos
(Olissipo, detalhe, Braun &
Hogenberg, 1598)
O rei,
que designara três portos para o embarque dos judeus que não queriam
converter-se – Lisboa, Porto e Setúbal -, convocou-os repentinamente para
Lisboa, onde deveriam comparecer no palácio d’ Os Estaus; depois, atrasou o embarque até passar o prazo previsto
para a expulsão e decretou que daí em diante eram seus escravos.
Abraão Saba (cujos filhos lhe foram tirados à
força), que foi um dos cerca de dez mil judeus encerrados no pátio do edifício,
relata que ficaram sem água nem comida durante quatro dias. Samuel Usque e
várias fontes cristãs afirmam que a violência aumentava para os que resistiam à
conversão, ao ponto de muitos terem sido borrifados com água, e ali mesmo
declarados cristãos – os chamados “baptizados em pé”.
O ilustre rabino Simão Meimi, recusando o
baptismo até ao fim, sucumbiu às torturas a que foi submetido. O próprio Abraão
Saba fez parte de um grupo de 40 resistentes que durante seis meses esteve preso n’Os Estaus, recusando sistematicamente o
baptismo. No início de 1498, D. Manuel decide deportá-los para o Norte de
África.
O astrónomo real Abraão Zacuto conseguiu
recuperar o seu filho já baptizado e emigrar para África, com um grupo de 27
pessoas que também tinham resistido ao baptismo.
Foram numerosos os que conseguiram emigrar,
mas mesmo entre os baptizados, muitos esperavam pelo momento oportuno para
fugirem do país. Graças a uma conversão geral compulsiva, Portugal pôs fim ao
Judaísmo, que passou à clandestinidade. Parafraseando o humanista português Jerónimo
Osório, a maioria tornou-se cristã por «um acto iníquo e injusto cometido
contra as leis e contra a religião».
Este artigo foi um presente da nossa
Sónia Craveiro,
a quem desde já agradeço o
carinho,
Muito obrigada
Beijinhos
*Isaac
Abravanel – consultar artigo no endereço abaixo:
Fontes:
WILKE,
Carsten L., HISTÓRIA DOS JUDEUS
PORTUGUESES, Edições 70;
GUARDA
HISTÓRIA E CULTURA JUDAICA MUSEU,
Edição Comemorativa do VIII Centenário da Cidade da Guarda;
MALKA,
Edmond, Fiéis Portugueses/Judeus na
Península Ibérica, Edições Acrópole;