Gregos e Judeus
Parte IV
A Europa e a Civilização Ocidental
Peter
Paul Rubens, retrato do médico português Ludovicus Nonnius, 1627, National
Gallery, Londres
(Luís
Nunes, médico português cristão-novo de Antuérpia (1553-1645). Autor de vários
livros, dos quais se destaca “Diaeteticon” (que provavelmente está a segurar);
um estudo sobre a importância da dieta como factor de boa saúde, baseado nos
hábitos alimentares dos antigos Gregos e Romanos. De realçar a presença do
busto de Hipócrates, o médico grego considerado o fundador da medicina)
Quando pensamos Europa,
pensamos civilização ocidental. A Europa, uma península da Euro-Ásia, emergiu
como entidade autónoma da Ásia. A ideia de Europa emergiu de uma conversação
entre várias vozes de diferentes tradições (por vezes com muita gritaria) que,
mercê de uma lenta evolução que se perde no tempo, resultou na partilha de um
conjunto de valores. Desses valores, intelectuais, espirituais e culturais e da
maneira como os guardámos e combinámos, resultou a identidade europeia. Uma
identidade definida, essencialmente, pelas tradições greco-romana e
judaico-cristã.
Tanto na cultura judaica, quanto na grega,
pulsavam valores e ideais ligados à liberdade individual, todavia
indissociáveis do respeito pela comunidade e pela família. É no encontro destes
dois mundos — o Hebraico e o Helenístico — que se situam as fundações da
civilização ocidental. E foi precisamente isto que a Cristandade fez, a começar
por Paulo. Mediando entre a Grécia e Israel, a Cristandade deu-nos a Cultura
Ocidental.
Al-Andaluz e a sabedoria dos clássicos
Contos
de Bayad e Riyad (Bayad toca alaúde para uma senhora), século XII, manuscrito
árabe, Biblioteca Apostolica Vaticana, Roma
Com a queda do Império Romano, a sabedoria
dos clássicos gregos e latinos foi abandonada. Seria recuperada para a
sociedade europeia pelos eruditos muçulmanos da Península Ibérica. Após as suas
incursões em França terem sido frustradas por Charles Martel, os muçulmanos de
Espanha decidiram focar a sua atenção no território conquistado a sul da
Península — al-Andaluz, que viria a atingir um elevado grau cultural e
tecnológico. Depois da Reconquista cristã, muito do conhecimento científico
desenvolvido pelos muçulmanos passou para a Europa ocidental através de
Espanha, como testemunha a Escola de Tradutores de Toledo.
Córdova, a cidade mais civilizada da Europa
Em 929 o emir Abd-al-Rahman III (890-961),
da dinastia omíada, assumiu o título de califa de Córdova, tornando-se
independente do califado de Bagdade. Naquela época, enquanto a população de
Paris rondava as 38 000 almas, a de Córdova atingia as 500 000. De acordo com
crónicas coevas, havia 700 mesquitas na cidade, uns 60 000 palácios, 70
bibliotecas, uma delas chegando a albergar 500 000 manuscritos, uma Escola de
Medicina, uma Escola de Tradutores e 900 banhos públicos. Córdova dispunha de
ruas pavimentadas e iluminação pública, convertendo-se na cidade mais
civilizada da Europa. Num clima que favorecia a convivência abraâmica, a
comunidade judia prosperou e teve um verdadeiro renascimento a nível das
ciências e das humanidades. A partir do século XI, Córdova desempenhou um papel
fulcral na história do Judaísmo, eclipsando gradualmente as academias da
Babilónia.
Maimónides
[Moshe ben Maimon] (Córdova, 1135-Cairo (Fustat), 1204)
Maimónides representa a maior figura intelectual do judaísmo medieval. O seu pensamento assenta na afirmação da concordância entre fé e razão.
https://www.youtube.com/watch?v=r_Aj9vvvOSo
“Yigdal” (Credo de Maimónides) · Eduardo Paniagua · Jorge Rozemblum
Canto, shofar, quanum, viola, alaúde, darbuka e tar
(“Yigdal”
– “Deus é Grande”. Hino religioso que partilha com “Adon Olam”, de Shelomo ibn
Gabirol (Málaga, 1020-1059), um lugar de honra no início do ofício da manhã e
no final do ofício da tarde. Baseia-se nos treze artigos de fé (13 Credos)
formulados por Maimónides. Nesta interpretação, os primeiros três credos são
cantados seguindo uma melodia tradicional dos judeus de Tânger (norte de
Marrocos); os restantes credos seguem a melodia tradicional dos judeus
marroquinos.)
Grande admirador de
Aristóteles, Maimónides dominava disciplinas tão diversas como a filosofia e as
ciências, em particular as matemáticas, a astronomia e a medicina. Autor
prolífico, escreveu em árabe. As suas obras foram posteriormente traduzidas
para o hebraico e o latim.
Quando em 1148 o Sul de Espanha foi
conquistado pelos Almóadas, o ambiente de tolerância da sua cidade chegaria ao
fim, obrigando judeus e cristãos a emigrar, sob pena de serem forçados a
converter-se ao Islão, ou a morrerem pela sua fé. Já adulto, no exílio,
Maimónides estabeleceu-se no Cairo em 1166, onde viveu até ao fim da sua vida.
Lá foi rabino-mor da comunidade judaica e médico respeitado. Na sua qualidade
de médico, assistiu pessoalmente a al-Fadil, grão-vizir de Salahudin [Saladino]
e respectiva corte. Interessando-se pelos mistérios do corpo humano e da
medicina, investigou a relação da alma com o mal-estar físico.
Mishneh Torah, Introdução, fol. 11v-12, Escola de Iluminuras de
Lisboa, 1472,
British Library, Londres
A obra magna de Maimónides — “Mishneh
Torah” (um código da Lei Judaica e a única que escreveu em hebraico) — é uma
síntese magistral dos dois Talmudes. Introduzindo ordem nas compilações
talmúdicas, protestando contra a interpretação literal da Lei e conciliando a
religião judaica com a filosofia, Maimónides operou uma profunda revolução
intelectual no seio da sociedade judaica. Estudioso da obra de eruditos
muçulmanos, como al-Farabi, Ibn Sina [Avicena] ou Ibn Rushd [Averróis], o seu
pensamento abriu caminho para grandes filósofos da Cristandade medieval, como
Alberto Magno ou Tomás de Aquino.
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Alguns apontamentos sobre cultura europeia
Retrato
de Camões executado em vida do poeta. Cópia de um original desenhado por Fernão
Gomes (1548-1612). Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Camões é, por excelência, um vulto da
cultura ocidental. Conhecedor do texto bíblico — lembremos o soneto “Sete anos
de pastor Jacob servia” (Génesis 29) ou “Redondilhas de Babel e Sião” (Salmo
137) —, n’Os Lusíadas evidencia uma
superlativa erudição clássica. Num ensaio sobre os 450 anos de publicação da
obra, Carlos Maria Bobone considera «Os
Lusíadas como o poema que mostra o momento em que os mitos antigos deixam
de ser necessários, o momento do fim da mitologia. Tudo aquilo que os antigos
deuses tinham – os segredos dos ventos, dos mares, da guerra – fica nas mãos
dos portugueses, de tal modo que os deuses se extinguem na sua função. (…) o
poema pode ser entendido como uma elegia do mitológico, como o seu fim: esta é
a derrota dos deuses antigos às mãos da cristandade, por via do conhecimento.»
No célebre poema “Com que voz chorarei meu
triste fado”, Camões usa a palavra “fado” com o seu significado histórico, que
é o da sua raiz latina fatum: o
destino, a sina. O Fado como representação da Portugalidade, está associado a um quotidiano de lamentações,
pautado por trágicas histórias de amor.
Com
que voz chorarei meu triste fado,
que
em tão dura paixão me sepultou.
Que
mor não seja a dor que me deixou
o
tempo, de meu bem desenganado
https://www.youtube.com/watch?v=hJRWAR_kNMo
“Com que voz” por Amália; poema de Camões; música de Alain Oulma
O Mito de Orfeu
Orfeu
rodeado de animais (mosaico), Época Romana, Museu Arqueológico Regional de
Palermo
Os gregos da era clássica
veneravam Orfeu como o músico mais dotado de todos os tempos. Quando tocava
lira, os pássaros interrompiam o seu voo para escutar e os animais selvagens
perdiam o medo. As árvores curvavam-se para captar as suas árias arrastadas
pelo vento. Orfeu casou com Eurídice, uma jovem tão encantadora que atraiu as
atenções de um homem chamado Aristeu. Quando ela repeliu as suas investidas,
ele perseguiu-a. Ao fugir dele, Eurídice calcou uma serpente que a mordeu e lhe
causou a morte. Orfeu ficou como louco. Pegando na lira, desceu aos Infernos a
fim de tentar trazê-la de volta consigo.
Jean-Baptiste
Corot, Orfeu levando Eurídice do Inferno (detalhe), 1861, Museum of Fine Arts,
Housto
Baseado no mito grego de Orfeu, “L’Orfeo” de Monteverdi é um drama musical estreado na corte de Mântua, no Carnaval de 1607.
Na Ária “Vi ricorda ò boschi ombrosi”, que
se tornaria muito popular entre os ouvintes de Monteverdi, Orfeu canta como era
infeliz antes de casar com Eurídice.
MONTEVERDI
// Ritornello [Gagliarda] & Aria “Vi ricorda ò bosch’ombrosi” by CLEMATIS,
Zachary Wilder
(No
vídeo, seguidamente à ária de Monteverdi, é executada uma peça instrumental de
Salomone Rossi, um compositor judeu italiano que trabalhou para a corte de
Mântua)
Maria, mãe de Jesus
Mariotto
Albertinelli, Visitação, 1503, Galerias Uffizi, Florença
A Visitação
de Albertinelli de 1503, é uma de muitas obras da arte europeia dedicada ao
episódio conhecido por Visitação. Refere-se à Visitação de Maria à sua prima
Isabel, quando Maria confirmou a sua gravidez a Isabel, a cuja casa numa cidade
da Judeia se dirigiu logo após a Anunciação, para a acompanhar no nascimento de
João Baptista (Lucas 1:39-50).
Este episódio é celebrado no esplendoroso Magnificat de Bach (com libreto em
latim, uma raridade na vasta obra do compositor luterano), estreado em Leipzig
no ano de 1723. Desta passagem do Evangelho segundo Lucas, consta o Cântico de
Maria (Lucas 1:46-50), um Magnificat pleno
de alegria, em que Maria rejubila por estar grávida. Podemos ouvi-lo na
lindíssima ária “Et exultavit spiritus meus”
Johann Sebastian Bach, Magnificat in D Major, BWV 243 - Aria: "Et exultavit spiritus meus" Magdalena Kožená with Marek Stryncl and Musica Florea
O sacrifício de Isaac/A crucificação de Jesus
Uma interpretação convencionalmente aceite
no Judaísmo sobre o episódio d’O sacrifício de Isaac, é a de que Abraão passa
por uma experiência dramática. O sacrifício não realizado é reduzido a uma
questão hipotética, para testar o fervor de Abraão, sem implicar Deus no acto
ritual. Todavia para os teólogos cristãos o sacrifício não realizado pressagia
a Paixão, o sofrimento e a crucificação de Jesus, definindo assim a natureza de
Deus. Em suma, o Judaísmo lê a história como um drama de um homem religioso,
enquanto o Cristianismo, concordando com esta leitura, vai mais longe, lendo-a
como parte de um drama do próprio Deus.
Maria (sopra la Carpinese), cantada durante a Paixão na ilha da Córsega, em língua
corsa (Corsu, uma língua românica que
tem fortes similaridades com o italiano), exprime a dor pungente de Maria
perante o sofrimento do filho, Jesus.
Maria (sopra la Carpinese)
L'Arpeggiata
- Christina Pluhar, Barbara Furtuna (chant corse)
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Liberdade e Responsabilidade
Observa o rabi Benjamin Blech que, de uma
perspectiva judaica, falar do ideal de liberdade, ignorando a sua necessária parceria
com a responsabilidade, é ignorar o seu verdadeiro sentido. Comentando sobre o
Pessach, a Festa da Liberdade, Blech acrescenta que na realidade o Pessach é,
apenas, meia festa: a partir do momento em que celebramos a libertação da
escravidão no Egipto, começamos a contar os dias para a Festa de Shavuot,
quando no Monte Sinai o povo de Israel recebeu a Torah. Os dois festivais estão
indissociavelmente ligados. O primeiro fala de libertação de; o segundo de
liberdade para. Fomos libertos de uma vida de servidão, para nos colocarmos,
voluntariamente, à disposição para uma vida vinculada a restrições de rectidão
moral.
Como o historiador cristão Paul Jonhson
escreveu na sua elucidativa “História dos Judeus”, a versão bíblica de
moralidade foi um arranque muito pertinente para noções fundamentais do mundo
antigo daquele tempo. Ideias judaicas como “igualdade
perante a lei, divina e humana; a inviolabilidade da vida e a dignidade da
pessoa humana; a consciência individual e a redenção pessoal; a consciência
colectiva e a realidade pessoal, e muitos outros temas… constituem as
ferramentas fundamentais da mente humana.”
Democracia/Direitos Humanos
Na clássica Atenas, o
exercício da cidadania compreendia uma certa forma de participação política, um
exercício centrado nos deveres dos cidadãos para com a comunidade. Uma prática
assente na ideia demos kratos — com
uma tradução muito livre para “poder ao povo”. Na realidade, esta ideia de
participação cívica só se aplicava a homens gregos livres. Mulheres, escravos e
estrangeiros, não tinham parte nesse “poder”. Mas apesar das imperfeições, as
classes mais baixas tinham direitos.
Por contraste, em Esparta
reinava uma aristocracia militarista que submetia os hilotas, uma população
local escravizada, a chacinas periódicas, para lhes lembrar do seu estatuto
sub-humano.
Na Europa, a Democracia —
Liberdade sob a Lei —, expressa valores universais. Levando milénios a
amadurecer, só foi plenamente implementada no século XX. E até muito tarde,
quase até à primeira guerra mundial, o sufrágio era censitário e exclusivamente
masculino. Estruturada na ética judaico-cristã e na cultura clássica, a ideia
de Democracia conduziu a uma cultura distinta do Ocidente: a dignidade da
pessoa humana, o conceito de Direitos Humanos.
Este
artigo foi elaborado por,
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada
Fontes:
Luis
Nunes de Antuérpia (1553 - 1645) ou Ludovicus Nonnius https://arlindo-correia.com/201210.html
“Há
450 anos Luís de Camões deu Os Lusíadas à Língua Portuguesa e transformou-a”
por Carlos Maria Bobone https://observador.pt/especiais/ha-450-anos-luis-de-camoes-deu-os-lusiadas-a-lingua-portuguesa-e-transformou-a/
Seyyed
Hossein Nasr. Science and Civilization in Islam.
New
American Library. NY 1968. Introduction. In the Name of God Most Merciful and
Compassionate http://www.fordham.edu/halsall/med/nasr.html
Rabbi
Moshé ben Maimon, Rambam dit MAÏMONIDE
https://www.medarus.org/Medecins/MedecinsTextes/maimonide.html
The
Work of Maimonides: Passion & Compassion http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/loc/Passion.html
PHILIP,
Neil, Livro Ilustrado de Mitos e Lendas, editora Civilização, 1996
Paul Johnson On The Jews https://www.simpletoremember.com/jewish/blog/paul-johnson-on-the-jews/